Prometeu – Mitologia Grega

Eu já mencionei Prometeu, filho de Jápeto e Clímene. Esse jovem Titã inteligente tinha todos os atributos mais encantadores. Ele era forte, bonito de doer, fiel, leal, discreto, modesto, engraçado, atencioso, bem-educado e, de modo geral, a companhia mais atraente e cativante que poderia haver. Todo mundo gostava dele, mas era Zeus quem gostava mais. Quando a agenda repleta de Zeus permitia, os dois iam caminhar juntos pelo campo, conversando sobre tudo e sobre nada – fortuna, amizade e família ou guerra e destino, além de muitas das coisas bobas e inconsequentes de que os amigos falam.

Nos dias anteriores à posse do dodecateon, Prometeu – que gostava tanto de Zeus quanto Zeus gostava dele – começou a notar uma mudança no amigo. O deus parecia rabugento e irritável, menos inclinado a caminhadas, menos bobo e brincalhão, com mais tendência ao mau humor e a rompantes de petulância indignos do deus majestoso, bem-humorado e autocontrolado que Prometeu conhecia e amava. Ele atribuiu isso aos nervos e tratou de ficar fora do caminho.

Certa manhã, mais ou menos uma semana depois da grande cerimônia, Prometeu, que gostava de dormir na grama comprida, em algum lugar dos prados perfumados da Trácia, foi acordado de súbito por alguém que beliscava persistentemente seus dedos dos pés. Abriu os olhos e viu o Rei dos Deuses animado e rejuvenescido pulando para cima e para baixo à sua frente, como uma criança impaciente na manhã de seu aniversário. A melancolia de Zeus tinha se dissipado como a névoa no topo de uma montanha, e toda a jovialidade característica a ele tinha voltado, dez vezes mais forte.

— Levante, Prometeu! Acorda, de pé!

— Ahn?

— Hoje, vamos fazer uma coisa notável, uma coisa que será aplaudida pelo mundo durante milênios. Vai repercutir pelas eras, será a…

— Caçar ursos, é?

— Ursos? Eu tive uma ideia muito extraordinária. Vamos!

— Aonde estamos indo?

Zeus não respondeu, mas, pondo um braço em torno de Prometeu, levou-o à força por entre os campos num silêncio pontuado por ocasionais acessos de riso excitado. Se Prometeu não conhecesse bem o seu amigo, acharia que ele estava bêbado de néctar.

— E essa ideia? Talvez você possa começar pelo começo…

— Ótimo, sim. O começo. Certo. O começo é exatamente onde devíamos começar. Sente-se aqui. — Zeus indicou uma árvore caída e ficou andando de um lado para outro enquanto Prometeu examinava a casca da árvore para ver se havia formigas, antes de se sentar. — Agora. Pense em como tudo começou. En arché en Chaos. No início, era o Caos. Do Caos, veio a Primeira Ordem: Érebo, Nix, Hemera e a geração deles, seguida da Segunda Ordem, nossos avós Gaia e Urano, certo?

Prometeu assentiu, cauteloso.

— Gaia e Urano — continuou Zeus —, que, por sua vez, deslancharam sobre a criação a catastrófica aberração que são vocês, os Titãs…

— Epa!

— E, em seguida, vieram todas aquelas ninfas, os espíritos, infinitas divindades menores e monstros, animais, sei mais o quê e, finalmente, o apogeu. Nós. Os deuses. Céu e Terra aperfeiçoados.

— Depois de uma guerra longa e sangrenta contra a minha raça. Que eu o ajudei a vencer.

— Sim, claro. Mas o resultado final… Está tudo muito bem. Paz e prosperidade por toda parte. Mas mesmo assim…

Zeus caiu num silêncio tão longo que Prometeu se sentiu obrigado a quebrá-lo.

— Você não está dizendo que tem saudade da guerra, está?

— Não, não é isso… — Zeus continuou a andar de um lado para outro em frente a Prometeu, como um professor ensinando numa classe de um só aluno. — Você deve ter notado que andei um tanto irritado ultimamente.

Vou dizer por quê. Sabe como, algumas vezes, eu gosto de voar sobre o mundo sob a forma de águia?

— Procurando ninfas.

— Este mundo — Zeus continuou, fingindo não ter ouvido — é extraordinariamente lindo. Cada coisa em seu lugar: rios, montanhas, pássaros, bichos, oceanos, bosques, planícies e cânions… Mas, sabe, quando eu olho para baixo, me vejo sentindo pena de como ele está vazio.

— Vazio?

— Ah, Prometeu, você não tem nenhuma ideia de como é tedioso ser um deus em um mundo completo e acabado.

— Tedioso?

— É, chato. Já há algum tempo me dei conta de que estou entediado e solitário. Digo “solitário” num sentido amplo. No sentido cósmico. Estou cosmicamente solitário. Será que é assim que vai ser para sempre, agora? Eu, em um trono no Olimpo, raios no colo, enquanto todo mundo se inclina e se ajoelha, canta louvores e pede favores? Eternamente? Qual é a graça?

— Bem…

— Fale a verdade, você também detestaria…

Prometeu comprimiu os lábios e pensou um pouco. Era verdade que ele nunca invejara o trono imperial nem todas as suas amolações e os encargos do amigo.

— Suponha — disse Zeus —, suponha que eu queira começar uma nova série.

— Nos Jogos Píticos?

— Não, não uma série esportiva. Uma raça, uma nova espécie. Uma nova ordem de seres. Como nós em cada detalhe, eretos em duas pernas…

— Uma cabeça?

— Uma cabeça. Duas mãos. Parecidos conosco em todos os detalhes, e teriam… Você é o intelectual, Prometeu, como se chama aquela nossa característica que nos eleva acima dos animais?

— Nossas mãos?

— Não, a parte que nos diz que existimos, que nos torna cientes de nós mesmos?

— Consciência.

— É isso. Essas criaturas teriam consciência. E linguagem. É claro que não seriam uma ameaça para nós. Eles viveriam aqui embaixo na terra e usariam sua inteligência para cultivar, se alimentar e se virar sozinhos.

— Então… — Prometeu franziu a testa em concentração enquanto tentava formar uma imagem coerente na cabeça. — Uma raça de seres como nós?

— Exatamente! Mas não tão grandes quanto nós. E seriam criação minha. Bem, criação nossa.

— Criação nossa?

— Você é bom com as mãos. Outro Hefesto. Minha ideia é que você modelaria essas criaturas em… em barro, por exemplo. Elas deveriam ser formadas à nossa imagem, anatomicamente corretas em cada detalhe, mas numa escala menor. Depois, nós poderíamos animá-las, dar vida a elas, replicá-las, soltá-las na natureza e ver o que acontece.

Prometeu ponderou essa ideia.

— E nós vamos nos comunicar com eles, falar com eles, andar por aí com eles?

— A ideia é exatamente essa. Ter uma espécie inteligente, bem, semi-inteligente, para nos louvar e nos adorar, para brincar conosco e nos divertir. Uma raça subserviente, de miniaturas em adoração.

— Machos e fêmeas?

— Ah, céus, não, só machos. Você pode imaginar o que Hera diria…

Prometeu podia muito bem imaginar qual seria a reação de Hera se o mundo ficasse subitamente cheio de outras mulheres com quem seu marido errante pudesse se envolver. Ele viu que Zeus estava muito empolgado com esse esquema grandioso. Quando o deus colocava alguma coisa na cabeça, Prometeu sabia, mesmo uma coisa tão nova e estranha como essa, nem mesmo os Hecatônquiros e Gigantes juntos seriam capazes de demovê-lo.

Não que Prometeu fosse contra a ideia. Era uma experiência empolgante, decidiu ele. Brinquedos para os imortais. Pensando bem, era uma ideia realmente encantadora. Ártemis tinha seus cães, Afrodite, suas pombas, Atena, sua coruja e sua serpente, Poseidon e Anfitrite, seus golfinhos e suas tartarugas. Até Hades tinha um cachorro – embora fosse completamente repulsivo. Era no mínimo adequado que o chefe dos deuses projetasse seu próprio tipo especial de bicho de estimação, mais inteligente, leal e cativante do que os outros.

Sova e cozimento

A história não tem um consenso sobre quando e onde, exatamente, Prometeu e Zeus foram buscar a melhor argila para realizar o plano. Fontes primitivas, como o viajante Pausânias, no século II d.C., alegavam que o local foi Panopeu, na Fócida. Estudiosos posteriores disseram que os dois viajaram para o leste da Ásia Menor, até as terras férteis que ficam entre os rios Tigre e Eufrates. O saber mais recente sustenta que a busca os levou para além do Nilo, cruzando o equador e acabando na África Oriental.

Seja lá onde for, eles, por fim, encontraram o que Prometeu declarou ser o local perfeito: um rio de cujas margens escorregadias vazava exatamente o tipo de lama e minerais que ele queria para dar consistência, textura, durabilidade e cor.

— Essa argila é boa — disse ele a Zeus. — Não, nem pense em ficar aí sentado. Eu preciso trabalhar em paz e livre de qualquer distração. Mas, antes de ir embora, vou precisar de um pouco de sua saliva.

— Como é?

— Se essas criaturas vão viver e respirar, elas precisam de alguma coisa sua na composição.

Zeus viu justiça no argumento e ficou satisfeito em pigarrear e encher um poço seco com seu cuspe divino.

— Vou precisar enfileirar meus bonequinhos de argila, um a um, nas margens do rio para que assem ao sol — explicou Prometeu. — Volte lá pelo cair da tarde, e eles deverão estar prontos.

Zeus gostaria de ficar espiando, mas conhecia o suficiente sobre temperamento artístico para deixar Prometeu trabalhar. Subindo sob a forma de uma águia, ele foi embora voando, deixando o amigo sozinho com sua arte.

Prometeu começou hesitante, primeiro fazendo rolos de argila, cada um com aproximadamente quatro podes de comprimento. Em cima desses rolos, ele grudou uma bola de argila umedecida com saliva, como cabeça. Era uma questão de desembaraçar, torcer e ajustar, amassar e massagear, puxar, examinar e pinçar, até que surgiu alguma coisa parecida com uma pequena versão de um Titã. Zeus não tinha exagerado quando comparou Prometeu a Hefesto – ele realmente era habilidoso. De fato, o que ele exibia agora, enquanto pressionava e dava forma, era mais do que habilidade: era arte.

Ao misturar a argila com pigmentos diferentes, ele construiu uma série diversa e colorida de criaturas masculinas naturais. Seu primeiro esforço tinha sido um pequeno ser cuja pele combinasse bem com a pele beijada de sol dos deuses. Em seguida, ele fez uma pele negra brilhante, depois, outra que era mais um marfim cremoso com subtom cor-de-rosa, depois, vieram bonecos âmbar, amarelos, bronze, vermelhos, verdes, bege, roxos vivos e do azul mais brilhante.

Um conjunto reduzido

Na caída da noite, Prometeu se levantou e se espreguiçou com um bocejo e aquele gemido especial de cansaço e satisfação que segue uma longa sessão de trabalho concentrado.

O sol da tarde tinha aquecido seu trabalho até uma consistência leve, maleável, conhecida no mundo da cerâmica como “louça de queijo”. O tempo usado por Prometeu foi preciso, porque, se as criaturas finalizadas tivessem sido expostas ao calor mais forte do meio-dia, elas teriam secado ao ponto de “louça de biscuit”, fazendo com que ficassem quebradiças e frágeis demais para suportar qualquer modificação de última hora, que seu patrão real e divino certamente exigiria. Orelhas mais compridas, o dobro de genitais, esse tipo de coisa. Os deuses são, acima de tudo, seres caprichosos.

E, a não ser que seus próprios ouvidos o enganassem, lá vinha agora o Rei dos Deuses, atravessando o matagal em ruidosa conversa com alguém. Prometeu conseguiu perceber uma voz feminina, baixa e comedida. Zeus tinha trazido Atena, sua filha preferida.

— Seu pai, o deus imperador, o mundo conhece. — Prometeu conseguia ouvi-lo dizer. — Zeus, o todo-poderoso, sim. Zeus, o conquistador de tudo, certamente. Zeus, o onisciente, é claro. Zeus, o…

— Zeus, o modesto?

— Zeus, o criador, então. Não tem uma pegada?

— Uma boa pegada.

— Então, a margem do rio deve estar bem ali. Vamos chamá-lo. Ei, Prometeu!

Japins-soldados que estavam chocando subiram como um foguete, gritando alarmados.

— Prometeeeeu!

— Aqui! — gritou Prometeu. — Mas cuidado, porque…

Tarde demais.

Irrompendo por entre as árvores para a clareira, Zeus, em seu entusiasmo, tinha pisado na fileira dos bonecos maravilhosamente fabricados que secavam na ribanceira. Num grito de fúria e desespero, Prometeu correu para avaliar o dano.

— Seu pateta desajeitado! — berrou ele. — Você os destruiu. Veja!

Ninguém mais na criação podia se safar falando com Zeus dessa maneira. Atena ficou pasma ao ver seu pai baixar a cabeça num humilde pedido de desculpas.

Mas, num segundo exame, as coisas não estavam assim tão ruins quanto Prometeu temia. Só três dos bonecos estavam além de qualquer conserto. Ele os apanhou na lama, a argila esmagada ainda com as impressões dos enormes dedos dos pés de Zeus.

— Ah, bem — disse Zeus alegremente —, o resto está bom, isso mais que basta. Vamos adiante, está bem?

— Mas olhe estes! — lamentou Prometeu, segurando as estatuetas esmagadas e estragadas. — A verdinha, a violeta e a azul eram exatamente as minhas preferidas.

— Ainda temos a preta, a marrom, a marfim, a amarela, a avermelhada e tal. Isso basta, não?

— Eu realmente adorava aquele tom de azul-cobalto.

Atena olhava para os bonecos intactos que jaziam brilhando aos raios do sol poente.

— Ah, Prometeu, eles são perfeitos — disse ela, na voz suave que chamava mais atenção do que os rugidos e gritos dos demais olímpicos.

Prometeu se animou imediatamente. Um elogio de Atena significava tudo.

— Bem, eu realmente botei meu coração e minha alma neles.

— Belo trabalho, realmente, muito bom — declarou Zeus. — Formados pelo grande Titã, com a argila de Gaia, eles foram aglutinados pela minha saliva real e cozidos pelo sol, e serão trazidos à luz pelo delicado sopro da minha filha.

Fora Métis, sempre dentro de Zeus, a estimular nele a ideia de que deveria ser Atena a trazer essas criaturas à vida. Ela sopraria em cada um, literalmente os inspirando com algumas de suas grandes qualidades de sabedoria, instinto, astúcia e sensatez.

Encontra-se um nome

Ajoelhando-se na ribanceira do rio, Atena soprou seu doce hálito quente em cada uma das pequenas estátuas. Quando acabou, levantou-se para se unir a Prometeu e a seu pai, observando para ver o que iria ocorrer.

Tudo aconteceu um tanto lentamente.

No início, um dos bonecos mais escuros estremeceu e soltou um tipo de gemido arfante.

Na outra extremidade da fila, um amarelo se contorceu e deu uma tossidinha.

Dentro de segundos, todos os pequenos seres estavam vivos e se mexendo. Poucos momentos depois, eles experimentavam seus membros, olhos e outros sentidos, olhando uns para os outros, cheirando o ar, conversando e gritando. Após algum tempo, estavam de pé, e até davam seus primeiros passos cambaleantes.

Zeus tomou as duas mãos de Prometeu e dançou com ele, rodando, rodando.

— Olhe! — gritou ele. — Olhe! Não são lindos? São maravilhosos, muito maravilhosos!

Atena levou um dedo aos lábios.

— Shhh! você os está assustando. — Apontou para baixo, para os homenzinhos minúsculos que agora olhavam para cima com ares de medo e consternação. O mais alto deles não chegava nem à altura do joelho dela.

— Tudo bem, pequeninos — disse Zeus, inclinando-se e dirigindo-se a eles com uma voz que esperava ser tranquilizadora. — Não precisam ficar com medo!

Mas o colossal som ribombante que emergiu pareceu alarmar ainda mais as criaturinhas, e elas começaram a agitar os braços e a rodopiar, alarmadas.

— Vamos nos reduzir ao tamanho deles — sugeriu Prometeu. Enquanto falava, ele se encolheu até ficar apenas uns trinta centímetros, mais ou menos, mais alto do que sua criação. Zeus e Atena fizeram o mesmo.

Com abraços, sorrisos e palavras suaves, os seres assustados e aturdidos foram lentamente pacificados e se tornaram amigos. Eles se aglomeraram em torno dos três imortais, inclinando-se e prostrando-se.

— Não há necessidade de mesuras — disse Prometeu, tocando um deles, e se maravilhando com a textura e a vida que conseguia sentir batendo lá dentro. O hálito de Atena tinha transformado a argila nessa carne quente, intensa. Os olhos de todos eles estavam brilhantes de vida, energia e esperança.

— Com licença — corrigiu Zeus —, mas as mesuras são super necessárias. Somos os deuses deles, e eles não podem se esquecer disso.

— Não sou o deus deles — contrariou Prometeu, olhando para os seres com um sentimento intenso de amor e orgulho. — Sou amigo deles. — Ajoelhou-se para ficar mais baixo que eles. — Vou ensiná-los a pastorear, a moer o trigo e o centeio, para que façam pão. A cozinhar, a forjar instrumentos…

— Não! — Zeus deu um rugido repentino que botou as assustadas criaturas em movimento de pânico outra vez. O rugido de Zeus foi respondido por um grande ribombar de trovão no céu. — Você pode ficar amigo deles o quanto quiser, Prometeu, e eu não tenho dúvidas de que Atena e todos os outros deuses também ficarão. Mas uma coisa eles nunca poderão ter. Jamais. É o fogo.

Prometeu encarou o amigo, atônito.

— Mas… por que jamais?

— Com o fogo, eles poderão crescer e nos desafiar. Com o fogo, poderão achar que são nossos iguais. Eu sinto isso e sei disso. Eles nunca deverão receber o fogo. É meu decreto.

Um longo ressoar de trovão à distância reafirmou suas palavras.

— Mas — Zeus agora sorriu — tudo o mais no mundo é deles para aproveitar. Eles podem viajar para qualquer canto. Podem navegar os mares de Poseidon, buscar a ajuda de Deméter para semear e cultivar alimento, aprender com Héstia as artes de manter a casa, descobrir como cuidar dos animais para ter leite, peles e trabalho, e aprender com Ártemis as artes da caça. Hermes pode ensinar a eles a astúcia, Apolo pode instruí-los nas artes da música e do conhecimento. Atena os ensinará a serem sábios e contentes. E Afrodite compartilhará com eles as artes do amor. Serão livres e felizes.

— Como os chamaremos? — perguntou Atena.

— “Aquilo que está abaixo” — declarou Zeus, depois de pensar um pouco. — “Anthropos.”

Bateu palmas, e o amontoado de humanos feitos à mão se tornou uma centena, e a centena se tornou uma horda, e a horda, sempre se expandindo para fora, se tornou uma multidão, até que a população humana, chegando agora às centenas de milhares, estava a caminho de encontrar um lar em cada canto do mundo.

E, desse modo, a raça primitiva dos homens passou a existir. Pode-se dizer que Gaia, Zeus, Apolo e Atena foram seus progenitores, tanto quanto Prometeu, que talhou a humanidade de quatro elementos: Terra (a argila de Gaia), Água (o cuspe de Zeus), Fogo (o sol de Apolo) e Ar (o hálito de Atena). Eles viveram e prosperaram, ilustrando o melhor de seus criadores. Mas algo estava faltando. Algo muito importante.

A Idade de Ouro

Alma Mater, a abundante Mãe Terra, tornada fértil por Deméter, era um doce paraíso para os primeiros homens. Eles não conheciam a doença, a pobreza, a fome ou a guerra. A vida era um idílio de inocência e de leves trabalhos pastoris. Era um tempo de adoração feliz, de familiaridade e até de amizade com as divindades que se moviam entre eles em feitios e dimensões fáceis, não assustadoras. Zeus e outros deuses, Titãs e imortais, tiveram um enorme prazer em se misturar, parecendo crianças, com os encantadores homúnculos que Prometeu tinha feito de argila.

Talvez esses primeiros dias de maravilhosa simplicidade e bondade universal tenham sido apenas imaginados para que pudéssemos ter um ponto alto de perfeição paradisíaca contra o qual julgar os tempos baixos, degradados, que vieram depois. Os gregos tardios decerto acreditavam que a Idade de Ouro realmente existiu. Ela estava sempre presente no pensamento deles e em sua poesia, e deu a eles a aspiração de um sonho de perfeição, uma visão mais concreta e materializada do que as nossas próprias ideias de um homem primitivo grunhindo em cavernas. Ideais platônicos e formas perfeitas talvez fossem a expressão intelectual da memória daquela raça saudosa.

Era natural que, de todos os imortais, o que mais amava a humanidade fosse seu artista-criador, Prometeu. Ele e seu irmão Epimeteu agora passavam mais tempo morando com os homens do que no Olimpo com seus companheiros imortais.

Entristecia Prometeu o fato de ele só ter podido criar homens, porque sentia que, à sua raça clonada de só um sexo, faltava variedade, tanto em seu aspecto, disposição e personalidade quanto em sua incapacidade de procriar e gerar novos tipos. Seus humanos eram felizes, sim; mas, para Prometeu, uma existência tão segura, sem desafios e não desafiadora não tinha graça. Para se aproximar do status divino que sua criação merecia, a humanidade precisava de mais alguma coisa. Precisava do fogo. Fogo realmente quente, feroz, cintilante, flamejante, para torná-la capaz de derreter, ferver, fundir, fornir, assar, tostar, grelhar, moldar e forjar; e eles precisavam também de um fogo interior, criativo, um fogo divino, para capacitá-los a pensar, imaginar, ousar e fazer.

Quanto mais observava e se misturava com sua criação, mais Prometeu se tornava convencido de que o fogo era exatamente o necessário. E ele sabia onde encontrá-lo.

O talo de funcho

Prometeu avaliou as coroas gêmeas do Olimpo que se elevavam sobre ele. O pico mais alto, Mytikos, chegava a quase dez mil podes de altura nas nuvens. Ao seu lado, uns cem ou duzentos metros mais abaixo, mas muito mais difícil de alcançar, ficava a rochosa parte de trás de Stefani. Para o oeste, assomavam as alturas do Skolio. Prometeu sabia que os raios do sol poente encobririam essa subida – a mais difícil de todas – dos deuses em seus tronos, acima, de modo que começou a perigosa subida, confiante em que alcançaria o cume sem ser visto.

Prometeu jamais desobedecera a Zeus antes. Pelo menos, não em nada grande. Nos jogos e nas corridas, nas lutas e nas competições para ganhar o coração das ninfas, ele tinha livremente burlado e provocado seu amigo, mas jamais o desafiara abertamente. A hierarquia do panteão não era uma coisa que pudesse ser perturbada sem consequências sérias. Zeus era um amigo querido, mas era, acima de tudo, Zeus.

Mesmo assim, Prometeu estava determinado em seu propósito. Por mais que tivesse sempre amado Zeus, descobriu que amava mais a humanidade. A empolgação e a resolução que sentia eram mais fortes do que qualquer receio da ira divina. Detestava irritar o amigo, mas, quando precisou fazer uma escolha, não houve alternativa.

À hora em que ele escalou a parede perpendicular do Skolio, os portões ocidentais já tinham se fechado atrás do carro do sol de Apolo, e a montanha inteira estava envolta na escuridão. Bem agachado, Prometeu contornou os afloramentos aguçados que coroavam o anfiteatro, parecido com uma tigela, de Megala Kazania. À frente, ele podia ver o Platô das Musas, cintilando com lampejos dançantes de luz atirados pelos fogos da forja de Hefesto várias centenas de podes adiante.

Do outro lado do Olimpo, os deuses estavam jantando. Prometeu podia ouvir a lira de Apolo, o som da flauta de Hermes, o riso rouco de Ares e os rosnados dos cães de Ártemis. Abraçando as paredes externas da forja, o Titã se esgueirou até o pátio da frente. Assustou-se ao virar a esquina e ver, estirada e nua no chão, a enorme figura de Brontes roncando ao lado do fogo. Prometeu recuou para a sombra. Ele sabia que os Ciclopes ajudavam Hefesto, mas que eles pudessem dormir no local, isso era surpreendente.

Bem na entrada da forja, ele viu uma planta narthex, algumas vezes chamada de sílfio ou funcho gigante (Ferula communis) – não exatamente aquele vegetal bulboso que usamos hoje para dar um agradável sabor de anis ao peixe, mas um parente bastante próximo. Prometeu se inclinou e apanhou um exemplar longo, vigoroso. Bem apertado dentro dele havia um miolo grosso, fibroso. Ele retirou as folhas do talo, esticou-se e o passou pelo adro por cima da forma adormecida de Brontes, na direção do fogo. O calor que emanava da fornalha foi suficiente para fazer com que a ponta do talo pegasse fogo imediatamente. Prometeu o puxou de volta, com o maior cuidado, mas não conseguiu evitar que uma fagulha caísse diretamente sobre o torso de Brontes. A pele do peito do Ciclope chiou e sibilou, e ele acordou com um rugido de dor. Enquanto Brontes olhava, zonzo, para o peito, tentando entender de onde vinha aquela dor e o que ela podia significar, Prometeu puxou o talo e fugiu.

O dom do fogo

Prometeu escalou o rochedo de volta para o Olimpo, com o talo de funcho entre os dentes, o miolo queimando lentamente. A cada cinco minutos, mais ou menos, ele o retirava da boca e soprava com delicadeza, cuidando da brasa. Ao chegar, por fim, à segurança do vale, se dirigiu para o assentamento humano em que ele e seu irmão estavam morando.

Sem dúvida, seria possível dizer que Prometeu devia ter tido a astúcia de ensinar os homens a bater pedras ou esfregar gravetos, mas temos de lembrar que o fogo que Prometeu roubou era fogo do céu, fogo divino. Talvez ele tivesse pegado a centelha interior, que acendia no homem a curiosidade inicial para esfregar gravetos e bater as pedras.

Quando ele mostrou aos homens o demônio cintilante que pulava e dançava, eles inicialmente gritaram de medo e se afastaram das chamas. Mas logo a curiosidade sobrepujou seus temores, e eles começaram a se deliciar com esse novo brinquedo, substância, fenômeno mágico – chame como quiser. Aprenderam com Prometeu que o fogo não era inimigo deles, mas um amigo poderoso que, uma vez domesticado, tinha dez mil milhares de usos.

Prometeu foi de vila em vila demonstrando técnicas para elaborar ferramentas e armas, queimar potes de barro, preparar carnes e assar massas de cereais. Tudo isso liberou uma avalanche de vantagens, elevando o homem acima da presa animal, que não tinha como reagir a lanças e flechas com ponta de metal.

Não demorou muito para Zeus, por acaso, olhar do Olimpo para baixo e ver pontos de luz alaranjada dançando na paisagem à toda volta. Imediatamente, soube o que tinha acontecido. Nem precisou que lhe dissessem quem fora o responsável. Sua zanga foi imediata e terrível. Jamais se tinha testemunhado uma fúria tão onipotente, tumultuosa, apocalíptica. Nem mesmo Urano, na agonia de sua mutilação, fora tomado de uma raiva tão vingativa. Urano tinha sido rebaixado por um filho de quem ele não gostava, mas Zeus tinha sido traído pelo amigo que ele mais amava. Nenhuma traição podia ser mais terrível.