As Punições de Zeus – Mitologia Grega

O presente

A ira de Zeus foi tão avassaladora que o Olimpo inteiro temeu que Prometeu fosse ser explodido com uma força tal que seus átomos jamais se reuniriam outra vez. É possível que tal destino tivesse recaído sobre o antes favorecido Titã, não fosse a presença sábia e estabilizante de Métis dentro da cabeça de Zeus, aconselhando-o a adotar uma vingança mais sutil e mais digna. A intensidade do ódio dele não diminuiu de jeito algum, mas ficou mais focada, canalizada em linhas mais claras de desforra. Ele deixaria Prometeu de lado por enquanto e liberaria sua fúria cósmica sobre o homem, esse homem impudente, insignificante, a criatura com quem ele se deliciara tanto e pela qual agora não sentia nada além de rancor e desprezo.

Durante uma semana inteira, observado por uma Atena séria e preocupada, o Rei dos Deuses andou de um lado para outro em frente a seu trono, pensando em como os humanos pagariam por ousarem se apropriar do fogo, por suporem que podiam imitar os olímpicos. Uma voz dentro dele parecia sussurrar que, não importa como ele se vingasse, a humanidade continuaria sempre a subir, até um dia chegar ao nível dos deuses – ou, talvez ainda mais terrível, até que ela não precisasse mais dos deuses e se sentisse livre para abandoná-los. Nada de adoração, nada de preces elevadas ao Olimpo. A perspectiva era blasfema e absurda demais para Zeus levar em consideração, mas o fato de que essa ideia escandalosa pudesse até mesmo entrar em sua mente só serviu para alimentar sua raiva.

Está pouco claro se o magnífico esquema finalmente posto em operação foi ideia dele ou de Métis, ou até mesmo de Atena, mas era, achou Zeus, um plano e tanto. Havia nele uma simetria áurea que agradava muito a sua mente grega. Ele mostraria a Prometeu e, com todos os diabos, mostraria à humanidade.

Primeiro, ele mandou que Hefesto fizesse o que Prometeu tinha feito: moldasse um ser humano com argila umedecida com seu cuspe. Mas esse ser teria a figura de uma jovem fêmea. Tomando sua mulher Afrodite, sua mãe Hera, sua tia Deméter e sua irmã Atena como modelos, Hefesto amorosamente esculpiu uma mulher de maravilhosa beleza, na qual Afrodite então soprou a vida e todas as artes do amor.

Os demais deuses se juntaram para equipar essa garota exclusivamente para o mundo. Atena a treinou em artes domésticas, bordado e tecelagem, e a vestiu com uma gloriosa túnica prateada. As Cárites foram encarregadas dos acessórios, colares, broches e pulseiras da mais fina pérola, ágata, jaspe e calcedônia. As Horas trançaram flores em torno de seu cabelo, até que ela estava tão linda que todos os que a viram prenderam a respiração. Hera a dotou de pose e serenidade. Hermes ensinou-lhe oratória e as artes do engano, da curiosidade e da esperteza. E deu a ela um nome. Como tinha recebido de cada deus um talento ou uma realização notável, ela se chamaria “todos os dons”, que, em grego, é PANDORA.

Hefesto conferiu um dom a mais a essa maravilha com quem Zeus se presenteou. Era um recipiente cheio de… segredos.

Agora, você provavelmente deve achar que eu vou dizer que o recipiente era uma caixa ou talvez uma arca de algum tipo, mas, na verdade, era um tipo de frasco de cerâmica esmaltada, hermético, conhecido nas terras gregas como pithos.

— Eis aqui, minha querida — disse Zeus. — Mas veja, isso é puramente decorativo. Você não deve abri-lo nunca. Entendeu?

Pandora sacudiu sua linda cabeça.

— Nunca — ela sussurrou com grande sinceridade. — Nunca!

— Boa menina. É o seu presente de casamento. Enterre-o bem fundo embaixo de seu leito matrimonial, mas você não pode abri-lo. Jamais. O que ele contém… bem, não importa. Não é nada que possa lhe interessar.

Hermes tomou Pandora pela mão e a levou até a pequena casa de pedra onde moravam Prometeu e o irmão dele, Epimeteu, bem no centro de uma próspera cidade humana.

Os irmãos

Prometeu sabia que Zeus tentaria algum tipo de retaliação por sua desobediência. Assim, avisou seu irmão Epimeteu que, enquanto ele estava fora ensinando às novas vilas e cidades recém-surgidas a arte do fogo, não deveria de jeito algum aceitar qualquer presente do Olimpo, não importava sob que disfarce este se apresentasse.

Epimeteu, que sempre agia primeiro e pensava nas consequências depois, jurou obedecer ao irmão mais perspicaz.

Só que nada podia prepará-lo para o presente de Zeus.

Epimeteu atendeu a uma batida à porta certa manhã e encontrou a alegre face sorridente do mensageiro dos deuses.

— Posso entrar? — Hermes se afastou para revelar, aninhando nos braços um frasco de cerâmica, a criatura mais linda que Epimeteu jamais vira. É claro que Afrodite era linda, mas remota e etérea demais para ser considerada qualquer outra coisa que não um objeto de veneração e reverência distantes. Do mesmo modo, Deméter, Ártemis, Atena, Héstia e Hera. A beleza delas era majestosa e inatingível. A beleza das ninfas, oréades e Oceânides, embora bastante encantadoras, parecia superficial e infantil ao lado da doçura enrubescida da visão que agora olhava para ele tão tímida, tão cativante, tão adorável.

— Podemos entrar? — repetiu Hermes.

Epimeteu engoliu em seco e deu um passo para trás, abrindo inteiramente a porta.

— Conheça sua futura esposa — disse Hermes. — O nome dela é Pandora.

Quando é um frasco

Epimeteu e Pandora se casaram logo. Epimeteu tinha uma suspeita de que Prometeu – que estava longe, ensinando a arte de fundir bronze para o povo de Varanasi – não aprovaria Pandora. Um casamento rápido antes da volta de seu irmão parecia uma boa ideia.

Epimeteu e Pandora estavam muito apaixonados. Isso não se podia negar. A beleza e as realizações de Pandora eram tais que o encantavam todos os dias, e, por sua vez, sua capacidade fácil de viver sempre no momento e nunca se afligir com o futuro dava a ela uma sensação de que a vida era uma aventura leve e adorável.

Mas uma coceirinha a provocava, uma mosquinha voava em torno dela, um vermezinho estava enterrado lá dentro.

Aquele frasco.

Ela o guardou numa prateleira no quarto dos dois. Quando Epimeteu perguntou o que era, ela riu.

— É só uma bobagenzinha que Hefesto fez para me lembrar do Olimpo. Não tem valor nenhum.

— Mas é bonito — disse Epimeteu, sem pensar mais no assunto.

Uma tarde, quando o marido estava fora praticando arremesso de disco com os amigos, Pandora se aproximou do frasco e correu o dedo em volta da beirada da tampa fechada. Por que Zeus mencionara que não havia nada de interessante dentro? Ele jamais diria isso se realmente não houvesse. Ela indagou-se sobre a lógica disso.

Se você der um frasco vazio a um amigo, você nunca vai se preocupar em mencionar que o frasco está vazio. Seu amigo poderá um dia olhar lá dentro e constatar isso sozinho. Então, por que Zeus se dera ao trabalho de repetir que esse frasco não continha nada de interessante? Só podia haver uma explicação. Havia alguma coisa de grande interesse lá dentro. Alguma coisa de valor ou poder. Alguma coisa encantadora ou encantada.

Mas não – ela tinha jurado jamais abri-lo.

— Promessa é promessa — ela disse a si mesma, e imediatamente se sentiu virtuosa. Acreditava que era seu dever resistir ao encanto do frasco, que agora realmente parecia estar cantando para ela da maneira mais cativante. Era muito chato ter um objeto tão sedutor em seu quarto, onde ele podia provocá-la e tentá-la a cada manhã e a cada noite.

A tentação perde muito de seu poder quando retirada da vista. Pandora foi até o pequeno jardim dos fundos e – ao lado de um relógio de sol que um vizinho tinha lhe dado de presente de casamento – cavou um buraco e enterrou o frasco bem fundo. Calcou a terra e rolou o pesado relógio de sol em seu pedestal por cima do esconderijo. Pronto!

Durante toda a semana seguinte, ela ficou tão alegre, irrequieta e feliz como ninguém jamais o foi. Epimeteu se apaixonou ainda mais e convidou os amigos para festejar e escutar a canção que ele tinha composto em honra a ela. Foi o último festival que a Idade de Ouro presenciaria.

Naquela noite, talvez um tanto ruborizada com todos os elogios que fluíam tão livremente em sua direção, Pandora custou a dormir. Através da janela de seu quarto, a lua brilhava sobre o jardim. O ponteiro do relógio solar reluzia como uma lâmina de prata e, mais uma vez, ela achou que tinha ouvido a música do frasco.

Epimeteu dormia feliz ao seu lado. Os raios de lua dançavam no jardim. Sem conseguir se conter, Pandora pulou do leito matrimonial e saiu para o jardim, rolou de volta a base do relógio de sol e raspou a terra, antes de ter tempo para se dizer que essa era a coisa errada a fazer.

Puxou o frasco de seu esconderijo e torceu a tampa. O selo de cera cedeu e ela o abriu inteiramente. Houve um rápido agito, um furioso bater de asas e uma selvagem rotação e rodopio nos ouvidos dela.

Ah! Gloriosas criaturas aladas!

Mas não… elas não eram nem um pouco gloriosas. Pandora deu um grito de dor e medo quando sentiu alguma coisa feito couro passar por seu pescoço, seguida de uma picada dolorosa, aguda e terrível, como se algum ferrão ou mordida tivesse perfurado sua pele. Cada vez mais formas em voo zuniram para fora do pote – uma grande nuvem delas, tagarelando, gritando e uivando em seus ouvidos. Através do nevoeiro rodopiante dessas horríveis criaturas, ela enxergou o rosto de seu marido que saiu para ver o que estava acontecendo. Ela estava branca de horror e medo. Com um grande grito, Pandora reuniu coragem e força para fechar a tampa e selar o frasco.

No muro do jardim, sob a forma de um lobo, Zeus observava, sorrindo o mais terrível e malvado sorriso. Como uma nuvem de gafanhotos, as criaturas gritavam e gemiam, arranhavam o ar e rodeavam o jardim abaixo num grande remoinho, antes de alçar voo e se espalhar por cima da cidade, pelo campo e pelo mundo todo, estabelecendo a pestilência onde quer que o homem habitasse.

E o que eram essas formas? Eram mutantes, descendentes dos filhos escuros e maus de Nix e Érebo. Eles nasceram de Apate, o Engano; Geras, a Velhice; Oizus, a Miséria; Momo, a Acusação; Queres, a Morte Violenta. Eram brotos de Ate, a Ruína, e de Éris, a Discórdia. Seus nomes eram: PONOS, a Privação; LIMOS, a Fome; ALGOS, a Dor; DISNOMIA, a Anarquia; PSEUDÓLOGOS, as Mentiras; NEIKEA, as Brigas; ANFILOGIAS, as Disputas; MACAS, as Guerras; HISMINAS, as Batalhas; ANDROCTASIAS e FONOS, os Homicídios e os Assassinatos.

Doença, Violência, Engano, Miséria e Necessidade tinham chegado. Jamais deixariam a Terra.

O que Pandora não sabia era que, quando fechou a tampa do frasco tão apressadamente, aprisionou para sempre a última filha de Nix. Uma criaturinha final foi deixada para trás batendo as asas desesperadamente no pote para sempre. Seu nome era ÉLPIS, Esperança.

A arca, as águas e os ossos de Gaia

Desse modo, a Idade de Ouro chegou a um fim rápido e terrível. Morte, doença, pobreza, crime, fome e guerra eram agora uma parte inevitável e eterna do destino da humanidade.

Mas a Idade de Prata, como essa época viria a ser conhecida, não foi de desespero completo. Era diferente da nossa, já que tinha deuses, semideuses e monstros misturados à humanidade, cruzando conosco e inteiramente envolvidos nas nossas vidas. Com o fogo ao lado do homem e, agora, mulheres, para permitir a propagação, além de um sentimento pleno de família e completude, alguns males do frasco de Pandora foram contrabalançados. Zeus olhou para baixo e viu isso. Dentro dele, a voz de Métis parecia sussurrar que ele não podia fazer nada para impedir que a humanidade algum dia andasse sobre suas próprias pernas, mais do que só no sentido literal. Isso o perturbou profundamente.

Por enquanto, as pessoas estavam devidamente cheias de reverência pelos deuses e usavam sua recém-descoberta afinidade com o fogo para enviar oferendas queimadas ao Olimpo, como um sinal de sua obediência e devoção.

Pandora, a primeira mulher, teve vários filhos com Epimeteu, incluindo uma filha, PIRRA. Prometeu também teve um filho, chamado DEUCALIÃO, possivelmente com a própria mãe, Clímene, ou, a se acreditar em outras fontes, com HESÍONE, uma Oceânide.

E, assim, a raça de homens e mulheres se multiplicou.

Prometeu, cujo dom de previsão nunca o deixou, estava muito consciente de que a raiva de Zeus ainda não tinha sido apaziguada. Ele preparou Deucalião para os mais terríveis tipos de retaliação divina. Quando o menino tinha idade suficiente, ele lhe ensinou a arte de trabalhar a madeira. Juntos, construíram uma arca enorme.

Os irmãos Titãs ficaram felicíssimos quando seus filhos Pirra e Deucalião se apaixonaram e se casaram. Prometeu e Epimeteu, agora, podiam se considerar patriarcas de uma nova dinastia humana independente. Entretanto, sempre havia à espreita a ameaça do Trovejador, cismando em seu trono olímpico.

O tempo passou e a humanidade continuou a procriar e a se espalhar, aos olhos de Zeus, mais como uma praga do que como os amados brinquedinhos que ele antes adorara. A desculpa de que ele precisava para aplicar uma segunda punição à humanidade foi dada por um de seus primeiros governantes, LICAÃO, Rei da Arcádia – filho de Pelasgos, que batizou o povo de mesmo nome. Esse Pelasgos tinha sido um dos bonecos de argila originais feitos por Prometeu e animados por Atena. Pelasgos era o que poderíamos considerar, do ponto de vista étnico, helênico, com pele, cabelos e olhos amarronzados. Os gregos posteriores consideravam esse povo, sua língua e suas práticas bárbaros; e, como vamos ver, essa primeira raça não estava destinada a popular o Mediterrâneo durante muito tempo.

Licaão, fosse para testar a onisciência e discriminação de Zeus, fosse por outros motivos brutais, matou e assou a carne de seu próprio filho, NÍCTIMO, e a serviu ao deus, que viera como convidado a um festim em seu palácio. Zeus ficou tão revoltado com esse indizível ato de rudeza que trouxe o garoto de volta à vida e transformou Licaão num lobo.[81] Níctimo teve pouco tempo para reinar no lugar de seu pai, entretanto, já que seus quarenta e nove irmãos devastaram a terra com tal violência e se comportaram de modo tão asqueroso que Zeus decidiu que era hora de terminar toda a experiência humana. Para isso, reuniu as nuvens numa tempestade tão intensa que a terra foi inundada e todo o povo da Grécia e do mundo mediterrâneo se afogou.

Todos, menos Deucalião e Pirra, que – graças à perspicácia de Prometeu – sobreviveram os nove dias de água alta a bordo de sua arca de madeira, que flutuou em segurança na enchente. Como bons sobreviventes, mantiveram a arca bem provida de alimentos, bebidas e algumas ferramentas e artefatos úteis, de modo que, quando o dilúvio finalmente baixou e a embarcação pôde se assentar no monte Parnaso, eles conseguiram sobreviver na lama e no lodo pós-diluviano.

Depois que o mundo secou o suficiente para que Pirra e Deucalião (que, dizia-se, tinha oitenta e dois anos nessa época) viajassem em segurança montanha abaixo, eles foram para Delfos, que fica no vale do Parnaso. Lá, consultaram o oráculo de Têmis, a Titânide profetisa cuja qualidade especial era saber a coisa certa a se fazer.

— Ó Têmis, Mãe da Justiça, da Paz e da Ordem, instrua-nos, suplicamos — clamaram eles. — Estamos agora sozinhos no mundo e temos idade avançada demais para encher de descendência este mudo vazio.

— Filhos de Prometeu e Epimeteu — entoou o oráculo. — Ouçam a minha voz e façam o que eu mandar. Cubram a cabeça e atirem os ossos de sua mãe por cima do ombro.

O casal, perplexo, não conseguiu que o oráculo proferisse nem mais uma palavra.

— Minha mãe era Pandora — disse Pirra, sentando-se no chão. — E devo supor que ela se afogou. Onde posso encontrar os ossos dela?

— Minha mãe era Clímene — disse Deucalião. — Ou, se acreditarmos em fontes variantes, a Oceânide Hesíone. De qualquer modo, elas são ambas imortais, portanto estão vivas e certamente pouco dispostas a nos dar seus ossos.

— Temos de pensar — falou Pirra. — Os ossos da nossa mãe. Será que isso poderia ter outro significado? Os ossos da nossa mãe. Ossos maternos… Pense, Deucalião, pense!

Deucalião cobriu a cabeça com um pano dobrado, sentou-se ao lado da esposa, cuja cabeça já estava coberta, e ponderou sobre o problema com a testa franzida. Oráculos. Eles sempre fingiam e tergiversavam. Apanhou tristemente uma pedra e a jogou rolando pela encosta. Pirra agarrou o braço dele.

— Nossa mãe!

Deucalião olhou para ela, espantado. Ela tinha começado a bater no solo com as palmas da mão.

— Gaia! Gaia é a mãe de todos nós — gritou ela. — Nossa Mãe Terra! Estes são os ossos da nossa mãe, olhe… — Ela começou a juntar pedras no chão. — Vamos!

Deucalião levantou-se e esgaravatou em torno, coletando rochas e pedras. Partiram pelos campos abaixo de Delfos, jogando-as por cima dos ombros, como tinham sido instruídos, mas sem ousar olhar para trás até que tivessem coberto muitos stadia.

Ao se voltarem, o que viram encheu o coração deles de alegria.

Do chão onde as pedras de Pirra tinham caído, surgiram meninas e mulheres, centenas delas, sorrindo, saudáveis, inteiramente formadas. Da terra onde caíram as pedras de Deucalião, cresceram meninos e homens.

E foi assim que os antigos pelasgos se afogaram no Grande Dilúvio, e o mundo mediterrâneo foi repovoado por uma raça nova descendente, através de Deucalião e Pirra, de Prometeu, Epimeteu, Pandora e – mais importante, claro – Gaia.

E é isto o que somos: uma combinação de previsão e impulso, de todos os dons e da terra.

Morte

Nossa raça humana, agora satisfatoriamente composta igualmente por homens e mulheres, procriou e se espalhou pelo mundo, construindo cidades e estabelecendo Estados-nação. Navios, charretes, chalés, castelos, cultura, comércio, comerciantes, mercados, agricultura, finanças, armas e trigo. Em resumo, começou a civilização. Foi uma era de reis, rainhas, príncipes e princesas, de caçadores, guerreiros, pastores, ceramistas e poetas. Uma era de impérios, escravos, guerras, comércio e tratados. Uma era de oferendas votivas, sacrifícios e adoração. Cidades, grandes e pequenas, escolheram seus deuses e deusas preferidos para serem divindades guardiãs, patronas e protetoras. Os próprios imortais não tinham vergonha de descer a suas cidades sob suas próprias formas ou sob a forma de humanos e animais, para fazer o que quisessem com os humanos que lhe apetecessem ou para punir aqueles que os tinham provocado e recompensar aqueles que os tinham bajulado. Os deuses nunca se cansavam de lisonjas.

Talvez o mais importante seja que a praga de sofrimentos saída do frasco de Pandora garantiu que, desse ponto em diante, a humanidade teria de enfrentar a inevitabilidade da morte sob todas as suas formas. Morte súbita, morte lenta e demorada, morte por violência, por doença, por acidente, por assassinato e por decreto divino.

O deus Hades descobriu, para sua grande alegria – ou o mais próximo de alegria a que esse deus macambúzio conseguia chegar –, que cada vez mais as sombras de seres humanos mortos começavam a chegar ao seu reino subterrâneo. A Hermes, foi atribuído um novo papel – o de Arquipsicopompo, ou “chefe dos condutores de almas” –, um dever que ele desempenhava com sua vivacidade e humor travesso costumeiros. Entretanto, à medida que a população humana crescia, só aos mortos mais importantes era concedida a honra de uma escolta pessoal de Hermes; o resto era levado por Tânatos, a sombria, ameaçadora figura da Morte.

No instante em que os espíritos humanos partiam dos corpos, Hermes ou Tânatos os levavam à caverna subterrânea onde o rio Estige (Ódio) se encontrava com o rio Aqueronte (Angústia). Ali, o ameaçador e silencioso Caronte estendia a mão a fim de receber seu pagamento para transportar as almas através do Estige. Se o morto não tivesse pagamento a oferecer, teria de esperar cem anos nas margens, antes que o desagradável Caronte consentisse em levá-lo. Para evitar esse limbo, tornou-se costume entre os vivos depositar algum dinheiro, em geral um óbolo, na língua do morto, para pagar o barqueiro e garantir uma passagem segura e rápida. Depois de pegar a taxa, Caronte punha a alma morta a bordo e empurrava com uma estaca sua canoa cor de ferrugem sobre as negras águas estigianas para o local do desembarque, o lugar de reunião do inferno. Uma vez morto, nenhum mortal podia voltar ao mundo superior. Os imortais, se provassem qualquer porção de comida ou bebida no Hades, estavam fadados a voltar para o reino infernal.

E qual era seu destino final? Parece que isso dependia do tipo de vida que tivera o morto. No início, o próprio Hades era o árbitro, mas, nos últimos anos, ele delegou a Grande Pesagem a dois filhos de Zeus e EUROPA – MINOS e RADAMANTO, que, depois de suas próprias mortes, foram nomeados, com seu meio-irmão ÉACO, Juízes do Mundo Inferior. Eles decidiam se o indivíduo tinha tido uma vida heroica, média ou perversa e passível de punição.

Os heróis e aqueles considerados extremamente justos (além dos mortos que tivessem algum sangue divino) viam-se transportados para os Campos Elísios, que ficavam em algum lugar no arquipélago conhecido como Ilhas Afortunadas, ou Ilhas dos Abençoados. Não há nenhum consenso real de onde elas pudessem ficar, na verdade. Talvez sejam o que hoje chamamos de Canárias, talvez os Açores, as Pequenas Antilhas ou até as Bermudas.

Descrições posteriores colocam os Campos Elísios dentro do próprio reino de Hades. Nesses relatos, as almas que reencarnavam três vezes, levando em cada ocasião uma vida heroica, justa e virtuosa, ganhavam uma transferência do Elísio para as Ilhas dos Abençoados.

A maioria inocente, cujas vidas não tinham sido nem especialmente virtuosas, nem especialmente perversas, poderia ficar estacionada por toda a eternidade no Campo de Asfódelos, cujo nome derivava das flores brancas que atapetavam suas pradarias. Essas almas tinham garantida uma vida pós-morte bastante agradável: antes de chegarem, bebiam das águas do esquecimento do rio Lete, de modo que podiam passar uma eternidade alegre e branda, sem preocupação com memórias perturbadoras da vida terrena.

Mas e os pecadores – os devassos, blasfemos, perversos e dissolutos –, o que acontecia com eles? Os menos importantes esvoaçavam nos saguões de Hades eternamente, sem sentimentos, força ou qualquer consciência real de sua existência, mas os mais profanos e imperdoáveis eram levados para o Campo de Punição, que ficava entre o Campo de Asfódelos e as profundidades abissais do próprio Tártaro. Ali, eram aplicadas torturas adequadas a seus crimes com severidade diabólica, por toda a eternidade. Vamos encontrar alguns desses pecadores mais famosos adiante. Nomes como SÍSIFO, ÍXION e TÂNTALO ainda ressoam através dos tempos.

Embora Homero descreva os espíritos dos que se foram como mantendo o rosto e a aparência que tinham em vida, relatos alternativos contam sobre um horroroso demônio, chamado EURÍNOMOS, que encontrava os mortos e, como as Erínias, tirava a carne de seus ossos. Outros poetas sugerem que as almas do mundo inferior tinham a capacidade da fala e gostavam de relatar as histórias de suas vidas uns para os outros.

Hades era o mais ciumento de todos numa família ciumenta. Ele não suportava perder sequer uma alma de seu reino. Cérbero, o cachorro de três cabeças, patrulhava os portões. Foram poucos, muito poucos, os heróis que enganaram ou ludibriaram Tânatos e Cérbero, conseguiram visitar o reino de Hades e voltar vivos para o mundo de cima.

E, assim, a morte se tornou uma constante na vida humana, como continua até hoje. Mas temos de saber que o mundo da Idade de Prata era muito diferente do nosso. Os deuses, semideuses e todos os tipos de imortais ainda andavam entre nós. Relacionamentos de tipo pessoal, social e sexual com os deuses eram tão normais entre os homens e mulheres da Idade de Prata quanto o relacionamento entre máquinas e assistentes de Inteligência Artificial é para nós, hoje. E, ouso dizer, muito mais divertidos.

Prometeu acorrentado

Zeus observou, fervendo de fúria, a sobrevivência de Pirra e Deucalião e o surgimento de uma nova raça de homens e mulheres a partir das pedras da terra. Ninguém, nem mesmo o Rei dos Deuses, podia interferir com a vontade de Gaia. Ela representava uma ordem mais antiga, mais profunda e mais permanente do que a dos olímpicos, e Zeus sabia que não tinha força para evitar o repovoamento do mundo. Mas podia, pelo menos, voltar sua atenção para Prometeu. Amanhecia no dia em que Zeus resolveu que o Titã deveria pagar por sua traição. Olhou para baixo do Olimpo e o viu na Fócida, ajudando na construção de uma nova cidade – como sempre, se metendo nos assuntos dos homens.

A humanidade tinha se propagado num piscar de olhos imortais, que chamaríamos de vários séculos. Tudo isso enquanto Prometeu, com paciência titânica, encorajava o espalhamento da civilização entre a Humanidade 2.0 – mais uma vez, ensinando às pessoas todas as suas artes, habilidades e práticas de agricultura, fabricação e construção.

Zeus adotou a forma de uma águia, arremeteu para baixo e se empoleirou nas madeiras de um templo semiconstruído que seria dedicado a ele mesmo. Prometeu, que estava esculpindo cenas da vida do jovem Zeus no frontão, olhou para cima e soube imediatamente que o pássaro era seu velho amigo. Zeus assumiu seu próprio formato e inspecionou a escultura.

— Se aquilo ali era para ser Adamanteia comigo, as proporções estão todas erradas — disse.

— Licença poética — replicou Prometeu, cujo coração batia rápido. Era a primeira vez que se falavam desde que Prometeu roubara o fogo.

— Chegou a hora de você pagar pelo que fez — anunciou Zeus. — Veja, eu posso chamar os Hecatônquiros para carregá-lo à força para o seu destino ou você pode escolher se inclinar ante o inevitável e vir sem estardalhaço.

Prometeu largou o martelo e o cinzel e limpou as mãos num pedaço de couro.

— Vamos lá — disse.

Não conversaram nem pararam para descanso ou refresco até alcançarem o sopé da cordilheira do Cáucaso, que separa os mares Negro e Cáspio. Ao longo do trajeto, Zeus quis dizer alguma coisa, teve vontade de pegar o amigo pelos ombros e abraçá-lo. Um pedido de desculpas lacrimoso lhe teria permitido perdoá-lo e fazer as pazes com ele. Mas Prometeu permaneceu silencioso. O sentimento abrasador em Zeus, de ter sido tratado iniquamente e de ter sido mal aproveitado, explodiu outra vez.

— Além disso — o deus disse a si mesmo —, grandes governantes não podem ser vistos exibindo fraqueza, especialmente quando se trata de traição por parte daqueles próximos a eles.

Prometeu abriu os olhos e olhou para cima. Ele viu os três Ciclopes de pé em uma grande encosta inclinada da rocha que formava o lado da montanha mais alta.

— Sei que você é bom em escalar encostas de montanhas — falou Zeus, com o que ele esperava ser um sarcasmo gelado, mas que saiu, até para seus ouvidos, como um murmúrio amuado. — Então, suba.

Quando Prometeu alcançou o lugar onde estavam os Ciclopes, eles o amarraram, acorrentaram e estiraram de costas, martelando suas algemas na rocha com poderosas estacas de ferro inquebrável. Duas lindas águias voaram do céu e deslizaram próximo a Prometeu, bloqueando a luz do sol. Ele podia ouvir o ar quente eriçando as penas delas.

Zeus gritou para ele:

— Você vai ficar acorrentado nessa rocha para sempre. Não há esperança de fuga ou perdão por toda a eternidade. Todos os dias, essas águias virão arrancar seu fígado, exatamente como você arrancou meu coração. Elas o comerão à frente dos seus olhos. Como você é imortal, o fígado crescerá de volta todas as noites. Essa tortura jamais cessará. A cada dia, a agonia parecerá maior. Você não terá nada além de tempo para pensar na enormidade do seu crime e na loucura de suas ações. Você, que foi chamado “previsão”, não demonstrou nenhuma ao desafiar o Rei dos Deuses. — A voz de Zeus ressoou pelos cânions e ravinas. — E aí? Não tem nada a dizer?

Prometeu suspirou.

— Você está enganado, Zeus — disse ele. — Eu pensei muito sobre minhas ações, e com muito cuidado. Pesei o meu conforto contra o futuro da raça dos homens. Agora, vejo que vão florescer e prosperar independentemente de qualquer imortal, inclusive você. Saber isso é um bálsamo para qualquer dor.

Zeus olhou demoradamente para seu ex-amigo antes de falar:

— Você não merece águias — declarou ele, com uma frieza horripilante. — Que sejam abutres.

As duas águias imediatamente se transformaram em abutres fedorentos, feios, que rodearam uma vez o corpo estirado antes de caírem sobre ele. Suas garras afiadas como navalhas cortaram o ventre do Titã e, com horrendos guinchos de triunfo, começaram a se fartar.

Prometeu, o principal criador, defensor e amigo da humanidade, nos ensinou, roubou para nós, se sacrificou por nós. Todos nós temos nosso quinhão do fogo de Prometeu, sem o qual não seríamos humanos. É justo lamentar por ele e admirá-lo, mas, ao contrário dos deuses ciumentos e egoístas, ele jamais pediria para ser adorado, louvado e reverenciado.

E talvez você possa se alegrar ao saber que, apesar da punição eterna a que ele estava condenado, um dia surgiria um herói poderoso o suficiente para desafiar Zeus, desamarrar o defensor da humanidade e libertá-lo.