O Pomo da Discórdia

— Isso é que é festa de casamento! — disse o cavalo Bálios a seu amigo Xantos, também um eqüino. — Que alegria nos rostos, que harmonia vibrando no ar!

— E, não resta dúvida. Isto é, pelo menos por enquanto… — respondeu Xantos, que guardava um ar de dúvida em meio ao alarido dos festejos.

— Como assim? — quis saber Bálios, arreganhando seus grandes dentes amarelos.

— Bem, se ela chegar, como imagino que deve estar para acontecer, você logo entenderá o que quero dizer… — respondeu o segundo cavalo, balançando a cauda e a grande cabeça.

Xantos referia-se a Discórdia, a única deusa que não fora convidada para as maravilhosas núpcias de Tétis com Peleu, rei de Ftia e futuro pai do grande herói Aquiles, que se realizava naquele momento em frente à caverna do centauro Quíron.

“Quem, aquela víbora da Discórdia?”, dissera Tétis, ao ser sugerido o nome da desagradável divindade para integrar a lista dos convidados. “Nem morta esta praga colocará os pés na minha festa!”, esbravejara a mais bela das nereidas a Júpiter.

Graças a isto a festa transcorrera até ali em maravilhosa harmonia. Por tudo só havia sorrisos, brindes e congratulações.

— Querida Tétis! — dissera Vênus, abraçando-a, banhada em riso. — Sua festa não poderia estar mais encantadora!

Peleu, por sua vez, recebia os efusivos cumprimentos de Apolo, o qual dedilhara momentos antes a sua afinada lira em homenagem aos noivos.

Quanto aos dois cavalos falantes que abrem esta narrativa, eram o presente que Netuno, o deus dos mares, havia ofertado ao novo casal. Ambos se mantinham juntos, a observar deliciados toda aquela alegria.

— Verdadeiramente uma festa divina! — disse Bálios a Xantos, num transporte de entusiasmo.

Este, no entanto, continuava a fremir desconfiadamente as suas narinas, com a intuição peculiar que têm os animais para farejar as grandes catástrofes.

— Vênus amada, venha até aqui! — disse Juno, esposa de Júpiter, que estava numa conversa animada com Minerva, a deusa que nascera da cabeça do pai dos deuses.

— Queridas, há quanto tempo! — exclamou a deusa do amor, parecendo felicíssima ao rever suas amigas. — Nossa, nunca as vi tão belas! — acrescentou enfaticamente.

— Ora, você é que está simplesmente deslumbrante! — disse Minerva, arregalando seus belos olhos, ao mesmo tempo em que ajeitava melhor a alça direita do seu peplo recamado de motivos guerreiros.

Enquanto essa encantadora troca de elogios prosseguia, algo de estranho, ocorria sobre as cabeças das deusas. Uma grande sombra ocultara o sol, tornando a atmosfera gélida e opressiva.

O cavalo Bálios, contudo, fora o único a perceber a estranha mudança. Em vão, porém, procurou divisar no céu a misteriosa nuvem.

— Não é nuvem — disse seu colega Xantos, com a placidez dos profetas quando vêem confirmar-se as suas mais negras profecias. — É ela.

Sim, pairando acima das três amigas, lá estava a terrível deusa Discórdia, tornada invisível por suas artes mágicas. Os dois cavalos, no entanto, podiam vê-la perfeitamente, com os emaranhados cabelos de serpente presos por uma tiara ensangüentada encobrindo seu olhar desvairado. Ao mesmo tempo, de sua boca escorria uma espuma abundante que ela limpava a intervalos com as mãos de unhas tintas de sangue.

— Ora vejam, que detestáveis hipócritas… — grunhiu a repulsiva criatura, fazendo esgares de ódio que excediam em horror aos da temível Górgona. — Quem ouve pensa que são as menos vaidosas das criaturas!

— Não, não, queridas! — teimava Vênus — Vocês estão absolutamente imbatíveis!

— Argh, puáá! — fez a abominável deusa, cuspindo para baixo uma baba vermelha e espessa. — Vamos acabar já com este fingimento todo.

Imediatamente a Discórdia, sedenta por uma disputa, sacou de suas vestes uma maçã dourada que reluziu em suas mãos. Com a mais afiada de suas unhas inscreveu, então, no fruto, a seguinte frase: À mais bela.

— Muito bem, agora veremos até onde irão as tais cortesias — disse, perfidamente, largando o fruto descuidadamente no meio das deusas.

Vênus, Juno e Minerva ainda estavam trocando animados elogios, sentadas cada qual em um balanço de flores, quando a primeira escutou um ruído aos seus pés. Tum-tum-tum-tum.

— O que é isto…? — disse a deusa do amor, atraída pelo ruído fofo do pomo rolando na relva.

Juno ergueu seus olhos e viu o fruto faiscar nas mãos de Vênus.

— Que maravilha é esta que aí tens? — disse a esposa de Júpiter. Mas Vênus estava inteiramente absorta na contemplação do esplêndido

fruto.

Minerva, por sua vez, deu um pulo de seu balanço e também foi ver mais de perto o que era aquilo que tanto brilhava.

— Uma maçã de ouro! — exclamou, aproximando o rosto.

— Esperem, há algo escrito nela — disse Vênus, girando o fruto na mão. Um brilho intenso banhou o rosto das duas.

— A mais bela! — gritaram as três, enlevadas. Durante alguns minutos estiveram mergulhadas num estupor, até que Minerva finalmente quebrou o silêncio:

— Mas… de onde veio isto, afinal? As três perscrutaram tudo ao redor, mas sem poder divisar ninguém, a não ser os dois cavalos, que de longe as observavam com as orelhas em pé.

Quando Vênus baixou os olhos de volta, entretanto, só encontrou um vazio entre os dedos, pois Juno já havia se apoderado avidamente do fruto.

— A mais bela…! — repetia ela, como que enfeitiçada.

— Sim, mas não traz o nome da eleita? — disse Minerva.

— Ora, querida, e precisa? — disse Vênus.

— Claro que não — disse Juno apoderando-se vivamente da jóia. — Está claro que foi endereçada a mim.

Vênus e Minerva num primeiro momento, perderam a voz, enquanto Juno. esfregava em suas vestes o fruto, parecendo prestes a dar-lhe uma dentada.

— Só um momento, meu amor — disse Vênus, raptando o pomo das mãos de Juno. —

Quem tiver o bom senso de procurar direito o nome da homenageada irá logo descobrir que só pode ter sido enviado a mim.

As três então se reuniram avidamente em torno do pomo, tentando divisar cada qual o seu nome:.

— Ali está! — gritou Juno. — Vejam se não é a minha inicial gravada nitidamente.

Não, não era, contestaram decididamente as outras.

— Pfff… E apenas uma falha do fruto — disse Minerva com um muxoxo de desdém.

Enquanto a disputa prosseguia, a perversa Discórdia esfregava ao alto as suas grandes mãos, cheia de satisfação.

— Basta, suas idiotas! — bradou Vênus, mandando às favas o resto de sua boa educação.

— Como ousam atribuir a si uma homenagem que está claramente dirigida a mim?

— Atrevida! — rugiu Minerva. — Cale a boca e devolva já o meu fruto!

A disputa se acendera definitivamente. Os olhos das três agora despediam chispas de puro ódio enquanto o pomo passava de mão em mão a cada descuido, o que só servia para inflamar ainda mais os ânimos. Ao mesmo tempo os dois cavalos continuavam a observar a disputa, que estava prestes a degenerar numa troca de tapas.

— Vamos avisá-las do que realmente se passa — disse Bálios ao seu colega eqüino.

— Está louco? — disse Xantos, valorizando sempre a prudência. — Se em briga de mortais não convém meter a colher, o que dirá de uma briga de deusas? Além do mais, sabe-se lá que castigo poderá nos impingir aquela megera, causadora de toda a discórdia.

E assim transcorreu o restante da festa, num clima de rancor indisfarçado. O fel já havia sido deitado na taça do hidromel e agora só restava todos regressarem desconsolados para suas casas. Quanto às deusas, teve início naquele dia uma desavença que se estendeu por vários anos, até que um dia Júpiter resolveu pôr um fim à amarga querela.

— Mercúrio, venha cá! — disse o deus supremo a seu filho dileto.

— Pois não, meu pai — respondeu o jovem dos pés ligeiros.

— É chegada a hora de pormos um fim nesta briga insensata que até hoje só nos trouxe desgostos.

— O senhor refere-se à disputa pelo pomo dourado? — disse Mercúrio.

— Exatamente — disse Júpiter. — Quero que você conduza as três pretendentes até o alto do monte Ida para que Páris, filho de Príamo, decida de uma vez a quem pertence este berloque maldito.

Páris era um jovem pastor, filho do poderoso rei de Tróia, o qual fora abandonado às feras por seu pai logo ao nascer devido a uma funesta profecia que o apontava como causador da futura ruína da sua pátria. O menino, no entanto, sobrevivera, tendo sido primeiro alimentado por uma ursa e logo depois criado por um casal de pastores.

— Está bem, meu pai — disse Mercúrio, ajeitando já as suas sandálias aladas. — Mais alguma coisa?

— Está dito tudo — disse o deus supremo, pondo fim à conversa.

No mesmo dia, Mercúrio reuniu-se às três querelantes, que, mesmo emburradas umas com as outras, resolveram acatar judiciosamente a ordem de Júpiter.

Em breve chegaram ao alto do monte Ida, onde encontraram o jovem Páris apascentando seu rebanho. O jovem levara até ali uma vida sem grandes emoções, e neste dia mostrava-se especialmente aborrecido.

— A verdade é que esta calma toda começa já a me irritar… — disse ele, erguendo os olhos para o alto, depois de observar pela milésima vez as expressões sempre inalteravelmente aborrecidas do seu gado. De repente, porém, quando desceu os olhos de volta à Terra, viu postadas diante de si as figuras majestosas das três divindades mais belas do Olimpo e do divino mensageiro de Júpiter.

— Pelos deuses! — exclamou Páris, assombrado. — Estarei sonhando? Mercúrio então adiantou-se, dizendo:

— Ó jovem Páris, você foi agraciado com uma honra que raras vezes terá cabido a um simples mortal.

— Que honra, ó mensageiro divino? — exclamou o pastor, assombrado.

— Meu pai decidiu, em sua soberana onipotência, que você será árbitro de uma árdua disputa, que tanta inquietude tem trazido ao antes ameno Olimpo.

Mercúrio então contou toda a história, que Páris acompanhou boquiaberto. As três deusas, a cada passo do relato, sentiam renovar-se em seus peitos as chagas da velha contenda, olhando umas para as outras com renovado ódio.

— Mas que justiça poderei dispensar eu, pobre pastor, a três deusas que por definição são sábias e justas?

Mercúrio deu um leve pigarro, algo desconcertado, interrogando o pastor:

— Júpiter confia no seu discernimento, e se lhe entregou esta tarefa é porque tem razões de sobra para pensar assim. Não cabe a você, pobre mortal, vasculhar os argumentos da divindade suprema! — acrescentou Mercúrio, pondo um fim nas recusas de Páris.

Páris, então, não tendo outro jeito, pensou um pouco e disse consigo: “Já sei como farei para contentar a todas e não incorrer na cólera de nenhuma!”

— Vou dividir o pomo em três — anunciou, aliviado. — Desta forma farei justiça à beleza de todas.

Mas nenhuma delas aceitou essa solução conciliatória. “Como?! E admitir que não sou a mais bela?”, pensaram ao mesmo tempo as três deusas, iradas. Além do mais, revelou-se impossível repartir o pomo dourado. Não vendo outra solução, Páris decidiu escutar os argumentos de cada uma das deusas, em separado. Primeiro chamou Juno, que se apresentou repleta de argumentos.

— Um dos atributos da beleza é ser justa, meu jovem — disse a esposa de Júpiter, que achava-se um exemplo de Justiça, sentando-se ao lado de Páris. -Por isto confio no seu julgamento.

O pastor, agora investido da autoridade de juiz, decidiu agir como tal, fazendo ouvidos moucos à lisonja da deusa. Juno, então, decidiu recorrer logo às suas razões:

— Sou esposa do soberano do Olimpo, lembre-se sempre disto, meu jovem. Por isto, posso oferecer-lhe o que nenhuma das outras jamais poderá. Saiba, pois, que farei de você soberano de toda a Ásia e o homem mais rico do mundo. Todas as cabeças se curvarão assim que for anunciada, por arautos magnificamente trajados, a sua augusta presença, e a sua vontade será tão importante que antes mesmo de manifesta será adivinhada por seus fidelíssimos súditos.

Páris escutou os argumentos de Juno com toda atenção e reverência; mas em seu íntimo já havia decidido que não cederia nem a honras nem a riquezas. “Tão somente Têmis, a deusa da justiça, irá inspirar os termos de meu julgamento”, pensou o rapaz. Por isto, mandou chamar logo Minerva, não sem antes garantir àquela que partia que a mais cristalina justiça seria o farol cintilante de seu julgamento.

A deusa da guerra aproximou-se em seguida, e num passo firme foi logo dizendo:

— Belo pastor, bem sei que seu julgamento haverá de me ser favorável. Por isto afirmo que muito em breve você será pastor não mais de vacas ou de carneiros, mas dos mais bravos soldados que jamais um comandante guiou neste mundo. Ao menor comando que sair dos seus lábios, legiões inteiras de guerreiros levantar-se-ão como um único homem.

Mas Páris não desejava comandar exércitos, contentando-se em guiar com clareza e retidão os seus próprios instintos. Assim, depois de dispensar gentilmente a deusa da guerra, pediu que Vênus viesse até si para fazer a sua defesa.

A deusa do amor, mais ousada que todas, tomou então nas mãos o rosto do jovem Páris e o aproximou tanto do seu que os lábios quase se tocaram.

— Veja como sou bela — disse a deusa, com uma entonação absolutamente irresistível.

— E no entanto tive de admitir, desde a primeira vez em que o vi, que minha beleza finalmente encontrara um símile digno dela, meu belo rapaz. Certamente, se eu fosse um homem, aspiraria a ter o encanto dos seus belos traços — completou a sedutora deusa, percorrendo com o dedo o desenho do rosto de Páris.

— Suas palavras não poderiam deixar, generosa deusa, de confirmar a beleza inteira da sua formosa natureza — disse Páris, procurando ser gentil diante de tamanho elogio. — Mas receio que excedam um pouco à verdade.

— Não, jovem encantador, digo apenas o que meus olhos podem confirmar — ajuntou Vênus, pronta para expor seu argumento principal. — Venho, no entanto, oferecer a você um amor que excederá a qualquer outro que homem algum jamais aspirou.

Páris bebia insensivelmente as palavras da deusa.

— Existe uma rainha mais bela que todas e que, a exemplo de mim, é também filha de Júpiter. Esta mulher foi gerada pela belíssima Leda, filha do rei da Etólia, e é hoje esposa de Menelau, rei de Esparta.

— Mas quem é ela, ó deusa? — disse o pastor, incrédulo.

— Ora, meu tolo efebo, estou falando da bela Helena, a mulher mais cobiçada de toda a Hélade! — disse a deusa, triunfante. — Se me der o pomo, farei com que ela se renda totalmente aos seus encantos. Você será, assim, o homem mais feliz a pisar sobre a Terra e invejado mesmo pelos deuses!

— Confesso que não sei de quem se trata… Mas não posso negar que já sinto meu peito incendiado por algo que não sei ainda definir — disse Páris, confuso.

Mal sabia, contudo, o jovem pastor, que Cupido, o filho de Vênus, estivera o tempo todo oculto atrás de uma árvore e que, a um sinal de sua mãe, havia acertado uma de suas flechas certeiras bem no seu coração.

— Mas ela é casada… — disse Páris, agoniado. — Como poderei esperar que ela deixe esposo, reino e súditos para ficar comigo, um pobre e ignaro pastor?

— Nada temas, meu tolo — disse Vênus com o mais sedutor de seus sorrisos. — Não é a própria deusa do amor quem se propõe a ser a fiadora e garantia do seu amor?

Páris, então, completamente rendido às razões da deusa, outorgou-lhe finalmente o prêmio do pomo dourado. Mal sabia, porém, que com isto iria acender a ira das outras duas deusas, Juno e Minerva, e que sua funesta paixão pela bela Helena seria o estopim da mais terrível guerra que a Antiguidade conheceria.


QUER VIRAR ESCRITOR?
PARTICIPE DO UNIVERSO ANTHARESSAIBA COMO CLICANDO AQUI.

Introdução à Mitologia Grega - Universo Anthares

Introdução à Mitologia Grega - Universo Anthares

[…] O Pomo da Discórdia […]

Comments are closed.