Príamo, o mais poderoso dos reis de Tróia, tendo já sido abençoado pelos deuses com o nascimento de seu filho Heitor, estava às vésperas de ser pai outra vez.
— Hécuba querida — disse o rei à sua esposa -, alegre sua alma, pois parece que já não tarda o nascimento de nosso segundo filho, que os deuses haverão de fazer tão formoso quanto nosso amado primogênito!
A rainha, no entanto, acordara naquela manhã terrivelmente angustiada. -Príamo, meu esposo e senhor! — disse ela, agarrada aos ombros do soberano. — Tive um sonho funesto que nada pressagia de bom quanto ao novo nascimento! O rei, apreensivo, tomou as faces da rainha em suas mãos.
— Hécuba, querida, acalme-se e conte-me tudo! — disse ele com decisão, pois temia muito os presságios funestos.
A rainha, então, após enxugar as lágrimas que banhavam seu rosto, falou:
— Sonhei, meu esposo, que, no lugar de um belo menino, me saía das entranhas uma tocha, uma imensa tocha de labaredas ardentes!
— Como pode ser?! — exclamou Príamo, aterrado.
— E isto não é tudo! — acrescentou Hécuba, cujos lábios tremiam convulsa-mente. —
Sonhei ainda que esta tocha ganhava vida e que alastrava suas terríveis flamas por todo o nosso reino, a ponto de só restarem ruínas após a sua passagem.
Príamo desvencilhou-se involuntariamente dos braços hirtos de sua esposa e dirigiu-se até a janela dos aposentos reais.
— É um aviso dos deuses! — disse ele, baixando a cabeça, como quem recebe dos deuses imortais um terrível e inapelável decreto. — Só pode ser…
Hécuba, no entanto, arrependida já de sua confissão e temendo as conseqüências de seu ato, tentou minimizar a situação:
— Príamo, querido, acalme-se… — disse ela, pondo-se em pé. — Talvez não passem de tolas premonições!
Mas era tarde, o rei já estava convencido de que aquele sonho era um aviso claro de que as Parcas sinistras tramavam algo terrível para si e seu reino. No mesmo instante foi consultar seu oráculo e ouviu dele a confirmação daquele terrível presságio. O novo bebê seria, de fato, a causa da ruína de sua Tróia amada e de todos os seus cidadãos, caso vivesse.
— Só o sacrifício dessa criança evitará essa horrenda tragédia! — exclamara o adivinho, que pela primeira vez Príamo via proferir seu vaticínio de olhos esgazeados.
No dia seguinte a criança nasceu, forte e saudável. Contudo, nem bem saíra do ventre materno e foi arrancada dos braços de Hécuba por seu esposo, que surdo ao seu pranto a deixou desfalecida sobre o leito. Enquanto carregava a criança para um destino que somente ele, Príamo, conhecia, seus olhos estudavam as feições do garoto. Era um belo menino, não havia como negar, e o rei sentiu seu coração apertar-se dentro do peito. “É meu sangue, também, que corre neste pequenino corpo!”, pensava, enquanto percorria os corredores gelados do seu palácio com seu pequeno fardo ainda manchado do sangue da batalha que travara pela vida.
“Não, não, desgraçado Príamo… Deves dar a este inocente o destino cruel que nos livrará a todos de um mal ainda maior…”, pensou novamente, e com tanta força que temeu que suas últimas palavras reverberassem nas paredes imensas e nuas que levavam para fora do palácio real:
“Um mal ainda maior… AINDA MAIOR… !”
Lá fora o aguardava o pastor Agelau, encoberto por um manto negro e vergado por uma chuva torrencial que o vento lhe atirava em cima com toda a fúria.
— Aqui está! — disse o rei, mirando o queixo do miserável pastor.
— Perdão, Alteza — disse o pobre homem, tomando o pequeno embrulho nas mãos vacilantes -, mas não quer refletir melhor sobre o destino que quer dar a este inocente?
— Cale a boca, maldito! — rugiu Príamo, temeroso de que sua consciência o obrigasse a retroceder. — Sabe bem o dever que lhe imponho, e o que lhe espera caso não o cumpra com todo o rigor.
Agelau introduziu, então, o pequenino embaixo de seu manto coberto de furos e lançou-se à estrada, que a chuva e a neblina misturavam com a floresta. Assim, o pastor escalou até o alto do monte Ida, conforme as instruções que recebera do rei, e tão logo alcançou seu destino sentou-se sob uma grande árvore, descobrindo novamente o rosto do garoto.
— Ainda… vive… Ainda… vive… — disse o bom homem, num tom baixinho e quase sem fôlego, como se temesse que de tão perto das nuvens Láquesis, a Parca que corta o fio da vida humana, o pudesse escutar. “Agora, entretanto, devo abandoná-lo!”, pensou agoniado.
E assim fez. No fim do dia, entretanto, consumido pelo remorso, Agelau decidiu retornar ao local e, ao fazê-lo, deparou-se com uma cena espantosa.
— Por Júpiter, será isto possível? — exclamou.
Uma ursa enorme e marrom, deitada placidamente, amamentava o garoto!
— Só pode ser um sinal dos deuses de que não desejam mais a sua morte! -ponderou ele, contente.
Após perceber o afastamento da ursa, correu então até o bebê, colocou-o num cesto e levou-o para casa. Sua esposa ficou tão feliz com o novo filho que resolveu batizá-lo ali mesmo:
— Se chamará Páris, posto que veio num cesto! — exclamou ela, pois “Páris” significava
“cesto” na língua dos antigos gregos.
O menino Páris virou em breve um belo rapaz e tornou-se pastor, tal como aquele que julgava ser o seu pai. Durante toda a sua juventude vagou pelos campos e encostas tangendo seus bois e levando uma vida amena, até o dia em que conheceu Enone, uma ninfa dos rios. Com ela manteve um relacionamento intenso, embora não pudesse dizer que a amava, pelo menos não tanto a ponto de poder retribuir o sentimento intenso que esta lhe devotava. Assim, prosseguiu em sua vida despreocupada, promovendo lutas entre os seus touros, a ponto de tornar este passatempo a principal ocupação de sua vida.
Estava nisto quando um dia viu chegar um soldado do rei Príamo, rei este que o jovem Páris nem desconfiava ser seu verdadeiro pai.
— Jovem pastor, o rei de Tróia nos mandou aqui para que levemos até ele o melhor touro do rebanho.
— Por quê? — disse Páris, temendo que levassem justo o seu animal preferido.
— O rei pretende fazer um sacrifício funerário em honra de seu filho morto — disse o emissário.
Páris levou o soldado até o rebanho e, com efeito, viu-o escolher justamente o touro de sua predileção. Em desespero, o jovem pediu então ao soldado que lhe permitisse ir junto, para ver se conseguia recuperá-lo nos jogos que se realizariam concomitantemente com a cerimônia expiatória.
— Como quiser — disse o emissário, que já ia conduzindo o touro pela estrada.
Assim que chegaram em Tróia, Páris foi correndo se inscrever em todas as modalidades de competição, na esperança de sair vitorioso ao menos em uma delas. Foi recebido com escárnio, porém, pelos outros competidores, pois eram todos filhos das melhores famílias. Entre eles, inclusive, estavam vários irmãos de Páris.
— Quem é este pastorzinho atrevido que ousa nos desafiar deste modo? -disse Deífobo, o mais encolerizado de seus irmãos.
Ninguém sabe dizer direito, senão que é um pobre pastor.
— Não se preocupe, Deífobo — disse um dos competidores. — Já na primeira disputa será esmagado como um piolho.
Páris, no entanto, acostumado às duras lides do campo, derrotou com facilidade o seu adversário da disputa de pugilato. E assim, sucessivamente, foi derrotando a todos nas demais modalidades, a ponto de encolerizar definitivamente o seu invejoso irmão:
— Basta, tocador de bois! — disse Deífobo a Páris, ao final da última disputa, sacando das dobras de sua túnica um afiadíssimo punhal. — Vai pagar agora por seu infame atrevimento!
Páris, desarmado, viu-se obrigado a buscar refúgio no templo de Júpiter, como última alternativa para salvar sua vida. Ao entrar lá, porém, encontrou Cassandra, também sua irmã, fazendo suas ofertas ao pai dos deuses. Esta mulher recebera de Apolo o dom da profecia, mas como desprezara o amor daquele deus, viu retirado de si o dom da persuasão, de modo que toda profecia que saía de seus lábios, apesar de verídica, não era jamais crida por ninguém.
— Você… ! — disse Cassandra, reconhecendo logo no rapaz que entrara esbaforido o seu irmão funesto.
Páris, no entanto, como não a conhecia, pediu-lhe apenas que o socorresse, pois jovens perversos queriam privá-lo de sua vida. Mas nesse instante Deífobo e seus sequazes já haviam também adentrado o templo.
— Cassandra, afaste-se deste patife! — bradou o homicida, num terrível transporte de cólera. — Ele é um farsante, que por meio das fraudes mais vis pretende ter vencido o torneio instituído por nosso pai!
Justo no instante, porém, em que Deífobo estava prestes a enterrar o punhal no peito de Páris, ouviu-se um grito vindo da multidão que a tudo assistia, estupefata.
— Pare, Deífobo, filho de Príamo! Este que aí está não é outro senão Páris, sangue do seu sangue, em honra do qual se realizam estes jogos!
Era Agelau, o pai adotivo de Páris, que havia acompanhado todos os passos do jovem desde a sua saída dos amenos pastos até a sua vitória na última competição.
— O que diz este velho louco? — exclamou Deífobo, cuja mão continuava a apertar o ferro fatal com todas as suas forças, a ponto dos ossos dos dedos estarem prestes a romper a pele que os envolvia.
— Sim, Deífobo, acalme a sua cólera, pois este que aqui está é Páris, filho de nosso pai Príamo e nossa mãe Hécuba — disse Cassandra, interpondo-se entre o punhal e o irmão ameaçado.
Suas palavras, entretanto, por força da maldição que pesava sobre ela, não foram ouvidas.
— Cale-se, tola Cassandra! — gritou Deífobo. — Haverá aqui alguém ainda disposto a dar ouvido a seus disparatados delírios?
Num último recurso, então, o pastor Agelau sacou de sua túnica um chocalho que Hécuba, a mãe de Páris, pusera em suas mãos tão logo ele nascera.
— Levem-no até a rainha e lhes digo se sua mãe não será capaz de reconhecer o próprio filho numa única olhada.
Deste modo Páris foi levado à presença do rei e da rainha. E, de fato, tão logo Hécuba pôs os olhos em Páris sentiu seu sangue correr célere por todo o corpo.
— O que vejo, Príamo, meu esposo, diante de meus olhos? — disse a rainha, quase desfalecendo.
— Eis seu filho, que julgavas erroneamente morto! — disse Agelau, estendendo a Hécuba o chocalho.
Príamo, a seu turno, apesar de encolerizado com a desobediência do pastor, cedo viu este sentimento desaparecer por completo de seu peito, por força do orgulho que agora de si transbordava. Aquele bravo e destemido jovem, que vencera todas as competições, era seu filho.
E que belo rapaz, digno da descendência sua e de Hécuba! E apesar de toda a oposição que os sacerdotes moveram para que Príamo se desvencilhasse daquele filho amaldiçoado, nada pôde mover o rei outra vez a levantar a mão contra seu próprio sangue.
— Que Tróia venha abaixo! — rugiu ele, sobrepondo o pai ao soberano. -Que não reste amanhã uma única coluna em pé no meu reino, mas nem hoje nem nunca mais alguém ousará levantar um dedo contra este meu filho que vi de repente retornar do Hades sombrio para os meus braços.
E assim Páris tornou-se outra vez filho de Príamo, apesar de todas as funestas previsões que mais tarde o confirmariam como o causador da destruição do poderoso reino de Tróia, também dito reino de Ílion.
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