O Rapto de Helena

— Helena… Helena… Helena…!

Dia após dia, o jovem Páris, filho de Príamo, rei de Tróia, sussurra este nome, com a mesma persistência de um antigo coro trágico.

Este nome, na verdade, não lhe sai da cabeça desde o dia em que concedera a Vênus o pomo da Discórdia, recebendo desta, em troca, a promessa de que seria amado pela mulher mais bela da face da Terra.

— Ela será sua, eu lhe garanto! — lhe dissera a deusa com toda a força de sua sedutora argumentação. — Por você ela deixará marido, posição e riqueza. Que outra prova maior de amor poderia exigir um mortal?

Páris está imerso nestes pensamentos quando ouve um arauto declarar a seu pai que Menelau, rei de Esparta, está prestes a chegar a Tróia.

— Menelau chegará? — exclama ele, involuntariamente.

— Sim, meu filho — diz Príamo, voltando-se para ele. — O oráculo de Delfos determinou que ele venha até nós para reaver os ossos de dois de seus soldados que aqui pereceram durante a expedição que Hércules fez à nossa pátria.

A notícia é importante demais para que Páris possa conter sua curiosidade.

— Ele virá sozinho, meu pai? — diz o jovem, fixando o grande tapete sob os seus pés.

Ali está representada Europa, nua e aflita, que Júpiter, sob a forma de um magnífico touro branco, rapta virilmente para dentro do mar.

— Trará apenas uma pequena comitiva — diz simplesmente o rei.

Páris compreende então que não será ainda desta vez que saciará a sede dos seus olhos.

Mas já será alguma coisa poder conhecer o homem que o destino investiu na condição de rival.

No dia seguinte chega o visitante com sua comitiva. O rei troiano o recebe com toda a pompa. Junto ao anfitrião estão seus filhos, Heitor, Deífobo e Páris. Este último não pode deixar de arregalar os olhos quando é finalmente apresentado a Menelau. O jovem sente que a palma de sua mão está suada quando o cumprimenta.

— Um filho que, sem dúvida, faz jus ao próprio pai, ó Príamo audaz! — diz Menelau, cujas palavras são sempre sinceras.

Páris abaixa a cabeça, um tanto encabulado, pois sabe que tem diante de si o homem que em breve deverá atraiçoar. Enquanto Menelau conversa com seu pai, Páris estuda-lhe melhor as feições, detendo-se em seus olhos de pupilas cristalinamente azuis. “Talvez haja nelas um pálido reflexo da efígie da mulher que um dia será minha!”, pensa o rapaz, com a ingenuidade própria da juventude.

Durante os próximos dias Páris faz-se, então, anfitrião perfeito do rei espartano, ajudando-o a encontrar rapidamente os ossos dos seus soldados.

— Se não fosse a sua ajuda, hospitaleiro filho de Príamo — diz-lhe, ao fim da visita, Menelau —, não sei se teria obtido sucesso em minha missão. Por isso quero que você vá até o meu reino o mais breve possível, para que eu possa retribuir à altura o tratamento que me dispensou.

Essa oportunidade não tarda muito, pois algum tempo depois Príamo organiza uma expedição com destino à terra de Menelau, liderada por seu primo Enéias.

— Páris — diz o rei troiano —, quero que vá com meu primo a Esparta retribuir a visita que Menelau nos fez. Aproveite também a ocasião para trazer consigo minha irmã Hesíone, que lá se encontra há muitos anos.

Finalmente a ocasião se apresenta! Páris sente suas pernas vacilarem, e é a custo que as palavras de assentimento saem de sua boca:

— A sua vontade, meu pai, será sempre o leme dos meus atos.

Alguns meses depois, Páris, juntamente com Enéias, está prestes a partir. Do alto das naves, ambos comandam os últimos preparativos. Mas embora toda a balbúrdia do embarque, não é ela o bastante para impedir que se faça ouvir uma voz feminina que brada em terra, com todas as suas forças:

— Páris, meu irmão! Desista desta funesta expedição, pois ela será primeiro passo de nossa ruína!

— Vejam só! — diz um dos membros da expedição. — É Cassandra, a profetisa que os deuses privaram do dom da persuasão.

Um grasnar insolente de risos espalha-se no ar como um bando de aves barulhentas.

Porém é logo reduzido ao silêncio pela voz poderosa de Páris.

— Silêncio, rufiões! Partamos logo de uma vez! — diz o filho de Príamo, do alto da proa de sua embarcação. — Quanto a você, minha irmã, serene sua alma, pois são bons ventos que nos levam até a pátria do generoso Menelau.

E, sem mais dizer, partem todos rumo a Esparta.

Alguns dias depois, na terra de Menelau, todos já estão na expectativa da chegada do filho de Príamo. O rei já concluiu todos os preparativos para receber à perfeição os seus hóspedes.

— Helena querida — diz ele à sua amada esposa -, é preciso que os recebamos como nunca antes visitante algum foi recebido. Façamos com que sua estada em nossa pátria seja lembrada ainda por muitos séculos como exemplo de cortesia e amizade.

Helena recolhe-se celeremente aos seus aposentos.

— Preciso, então, fazer-me ainda mais bela, se tal será a importância de nosso hóspede.

Pois o que dirão da esposa de Menelau, se não sabe estar à altura da cortesia de seu marido?

Assim pensa Helena, desnudando-se inteira diante do grande espelho que enfeita seu quarto. Depois de admirar um quadro que somente o seu marido Menelau tem o privilégio de contemplar, faz com que uma delicada esponja percorra suas formas perfeitas, embebendo sua pele de um aromático perfume. Isto feito, veste seus melhores trajes e enfeita-se com as jóias mais faiscantes que olho humano algum ousou contemplar.

Agora Helena está sentada, enquanto compõe sua maravilhosa cabeleira, cujos fios parecem ter sido descosidos da própria Noite e tecidos outra vez sobre a sua encantadora cabeça.

Abaixo deles fulguram duas esmeraldas, que despedem o brilho intenso de duas estrelas, e logo em seguida, abrigada sob a arcada perfeita de um nariz aquilino, está harmoniosamente posta uma boca úmida, de lábios naturalmente escarlates.

Algumas horas mais tarde Menelau manda que a chamem, pois os visitantes já se aproximam do porto com seus imponentes barcos.

— Importa muito, minha amada, que os recebamos tão logo pisem o solo de nossa pátria

— diz-lhe o esposo, que enverga seu traje mais esplêndido.

O cais está todo embandeirado. Músicos e povo estão misturados aos membros das melhores famílias. E adiante de todos está o casal real, Menelau e Helena.

— Eis que chegam, cara Helena! — diz o rei, cujos olhos luzem de expectativa. A rainha, contudo, apesar de compartilhar da curiosidade de seu marido, está um tanto confusa com o alarido que a plebe promove ao redor, tirando-lhe a vista dos navios. Volta-se, então, para ver no rosto de seu esposo a satisfação que toda aquela alegre balbúrdia lhe traz. “Menelau é de fato um homem nobre!”, pensa ela, enquanto admira as feições radiantes do rei. Envolvida, porém, com todos aqueles acontecimentos, não percebe que oculto atrás de uma das colunas do ancoradouro está Cupido, o filho de Vênus. Ele esquadrinha atentamente as menores reações da esplendorosa rainha.

— Se não fossem as ordens expressas de minha mãe, eu a faria apaixonar-se por mim, divina Helena! — diz o irrequieto arqueiro, também fascinado pela beleza daquela mortal.

Nesse instante os visitantes desembarcam e se aproximam do local onde Menelau e sua esposa estão. Contudo, antes mesmo que lá cheguem, os olhos ansiosos de Páris já encontraram os olhos serenos de Helena. A claridade insolente do dia que a cerca desaparece, então, diante do fulgor quase sobrenaturalmente divino que emana de si.

Páris a reconhece imediatamente como a mulher de sua vida.

“Eis Helena!”, exclama interiormente o recém-chegado. “A mulher que povoou todos os meus sonhos é, então, infinitamente mais bela do que eu esperava!”

De repente, porém, ele descobre que tem diante de si o seu anfitrião.

— É com prazer infinito que meus olhos contemplam outra vez você, jovem filho de Príamo! — diz Menelau, estendendo-lhe generosamente os dois sólidos braços.

Páris, desconcertado, retribui as palavras do rei com um agradecimento improvisado.

Enquanto isto, Helena aguarda a sua vez de cumprimentar o jovem, que até então não lhe provocara mais que uma natural admiração. Entretanto, o deus do amor já assesta a sua pontaria para o coração da rainha.

— Conhece já o amor, encantadora rainha — diz Cupido, esticando ao máximo a corda de seu certeiro arco. — Chegou, porém, a hora de conhecer a quintessência do amor!

Tão logo os olhos de Helena pousam nos olhos de Páris, uma flecha certeira que leva inscrita a palavra “paixão” vara implacavelmente o seu coração.

“Vênus soberana, o que sinto… ?”, pensa Helena, aturdida. Uma chama ardente sobe do seu peito e tinge de vermelho suas faces quando seus olhos fitam pela primeira vez os olhos chispantes de Páris.

— Uma honra nunca imaginada me chega agora como uma dádiva dos deuses: a de poder contemplar neste instante a mais sublime rainha de quantas a Hélade inteira pôde gerar…!

— diz Páris, curvando sua cabeça, num estratagema sutil que lhe permite recobrar um pouco o autocontrole.

“Oh, Júpiter supremo! Como ocultar doravante o amor divino que brilha em meus olhos, sem que mil outros olhos profanos o devassem?”, pergunta-se Páris, aflitamente feliz com este novo e doce dilema.

Helena, a seu turno, está como que imersa num sonho e, sentindo agora que suas cores lhe fogem do rosto, abaixa também a cabeça. Quando a ergue novamente está misteriosamente sentada numa grande mesa, em algum lugar que lhe parece vagamente familiar. Reconhece a voz de seu esposo, que parece mencionar o seu nome. Quando se volta assustada para o lado, porém, quem seus olhos encontram é aquele mesmo jovem que a atordoara. Sim, ele está sentado entre ela e Menelau, que entretém uma conversa animada com Enéias, o companheiro de viagem que Páris trouxe consigo de Tróia.

— Uma viagem é sempre um enigma, meu caro rei — diz uma voz indistinta. Como quem desperta de um sonho, Helena vê rostos vagos começarem a se desenhar à sua frente.

Comensais e glutões de toda espécie, que interesses políticos obrigam o soberano a manter em sua mesa, ali estão alegremente refestelados, erguendo brindes diversos, mas que no fundo são sempre os mesmos, pensando: “Felizes de nós, que privamos da mesa do rei!”. O resto do banquete passa-se como num sonho acordado, e é a custo que Helena consegue voltar seu rosto para o lado, pois sabe que encontrará aqueles mesmos olhos que a enfeitiçaram. No entanto, pode sentir o tempo todo aquela presença viril, e cada vez que a voz de Páris soa é como se fosse dirigida a ela própria.

Ao final da recepção, Helena está exausta e vai direto para os seus aposentos.

— Então, o que achou de nossos convidados? — pergunta-lhe Menelau, enquanto observa as escravas despirem-na.

— Enéias parece ser um homem muito determinado — diz a rainha, com um ar distraído.

— E o que achou do filho de Príamo? — retorna Menelau.

— Não reparei… Talvez um tanto inexpressivo — gagueja Helena, deitando-se logo em seguida.

Os dias passam, e a rainha faz de tudo para não cruzar com o forasteiro, até que um dia as Parcas decidem armar-lhe uma cilada, que porá por terra todas as suas defesas.

— Helena querida, tenho de partir imediatamente — diz o seu esposo numa manhã.

— O que diz? — exclama a bela Helena, ao mesmo tempo apreensiva e involuntariamente feliz.

— Catreu, meu avô, faleceu. Devo partir ainda hoje para assistir aos seus funerais.

Em seguida ele a abraça fortemente.

— Confio que saberá entreter os nossos hóspedes de tal modo que não sintam a minha ausência!

— Volte logo, meu marido — responde Helena, sabedora de que, se assim não for, dificilmente poderá resistir à terrível tentação que se avizinha.

Antes do final do dia o rei já singra os mares em direção a Creta, enquanto a noite desce seu manto sobre Esparta. Helena está sozinha no palácio. Os dedos de suas mãos entrelaçam-se convulsamente, enquanto ela observa da janela um céu carregado de nuvens. De repente, sente que às suas costas alguém se aproxima. Ela não precisa voltar-se para saber quem é.

— Você! — exclama ela, fingindo-se surpresa ao fitar o rosto de Páris.

— Peço licença, amável rainha, mas preciso muito lhe falar — diz o jovem, alterado.

— A hora talvez não seja a mais propícia, jovem imprudente… — diz ela, com um meio sorriso, sem saber se leva a mal a pequena audácia do estrangeiro.

Ele, no entanto, não retribui o sorriso.

— Imprudência… Talvez seja isto mesmo, encantadora rainha. Os fados me obrigam agora a fazer uso desta perigosa palavra.

— Que diz? — fala ela, retomando sua apreensão.

— Não, imprudência não… Ousadia, talvez seja o termo apropriado, pois sem ela o amor será sempre uma palavra vã!

Helena põe-se em pé, retrocedendo alguns passos.

— Estrangeiro, você abusou dos dons de Baco? — diz ela.

— Não, divina rainha… Bebi foi a beleza de seus encantos… E esta embriaguez está prestes a me levar ao último extremo da ousadia e, quem sabe, mesmo, da perversidade.

Helena reconhece, então, que chegou a hora tão temida.

— Vamos, procure se acalmar— diz ela, mais para si mesma do que para ele.

— Deixe-me falar-lhe — diz ele, surdo a tudo e avançando na direção da rainha. Helena baixa seus olhos, corando terrivelmente. Páris, a seu turno, percorre com os olhos todo o aposento.

— O que procura? — diz Helena, ao erguer novamente a cabeça.

— Não procuro, bela Helena… Eu temo… — diz ele, enigmaticamente.

— Não entendo… — sussurra a rainha, negaceando levemente a cabeça.

— Oh, como temo… — diz o jovem com o rosto aceso. — Temo os olhos de todos! Eu os vejo por toda a parte, me observando, me inquirindo, me espionando…

A rainha está agora aturdida, e sua mão cobre seu rosto. De repente, porém, ela sente que algo a afasta num brusco repelão. Por um breve instante enfurece-se com o visitante, até descobrir que não fora ninguém, senão ela mesma, quem afastara a própria mão. Ao mesmo tempo algo dentro dela a obriga a fixar as feições daquele homem.

— São meus olhos, jovem Páris… São meus próprios olhos, feitos em mil, que incessantemente lhe buscam! — diz, enquanto seus braços descaem lentamente, ao longo do corpo.

— Então… sente o mesmo que eu? — sussurra ele, tentando abafar a custo o seu entusiasmo.

Um silêncio afirmativo ilumina os olhos de Helena. Então ele acrescenta, num jato:

— Helena, Helena… Só haverá esta oportunidade, Helena amada… Durante alguns instantes ambos se estudam avidamente. Então, bruscamente, as bocas de ambos colam-se num sôfrego beijo.

— Sim… eu te amo… Páris adorado… — diz ela, rendida de vez àquele irreprimível desejo. Depois de trocarem mil beijos, Páris toma a cabeça da rainha em suas mãos.

— Helena, adorada! Venha comigo para Tróia! — diz, inflamado.

— Não posso! — exclama ela, tentando desvencilhar-se daquelas mãos firmes. Mas ela sabe que seu destino já está selado.

— Serás, doravante, Helena de Tróia! — diz Páris, feliz, pois já leu nos olhos da amada que nada a impedirá de unir-se a dele.

Durante toda a noite fazem-se, então, os preparativos para a fuga. Helena, quase histérica, tem a cabeça em fogo.

— Vênus suprema, proteja-me da fúria de Menelau! — diz ela, enquanto encaixota seus pertences com a ajuda de suas escravas, que também irão consigo.

— Levemos também os tesouros do reino! — exclama Páris, num gesto de tresloucado entusiasmo que Helena a princípio refuta. Porém, cedendo logo às instâncias de seu amante, reconsidera.

— Um crime… dois crimes… Ora, avante! — exclama a bela Helena, num delírio febril.

Assim, antes que Apolo rompa os portões do dia com seus cavalos de fogo, partem de Esparta os navios, levando consigo as riquezas do reino e a maior delas, Helena. A rainha sabe que deixa tudo para trás, em nome de uma paixão. Mas agora que deu o primeiro e fatal passo está disposta a tudo.

— Seja o que Júpiter, meu pai, e Vênus protetora determinarem… — diz ela, aninhada nos braços de Páris, um Páris mais forte, que tomou agora consciência do seu destino.

Enquanto isto, Cassandra, a profetisa cuja voz ninguém ouve, está caída diante dos degraus do templo de Júpiter, em Tróia. Chove, e suas vestes estão em tiras. A cinza que recobre a sua cabeça lhe escorre pelo rosto, dando-lhe o aspecto de uma louca.

— Ai de ti, Tróia infeliz! — exclama ela, com os lábios colados nos degraus frios da escada. — Eis que se aproxima a hora de sua perdição!

Um riso sarcástico ainda fica pairando longo tempo no ar, depois que o último ébrio passa por ela, aos tropeços.


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