Lavínia, filha de Latino, rei do Lácio, estava prometida há muito tempo para Turno, rei dos rútulos. As coisas já estavam preparadas para este arranjo quando ocorreram alguns fatos agourentos que levaram o velho rei, pai de Lavínia, a inquirir os oráculos. Estes foram categóricos: Lavínia devia casar-se não com Turno, mas com um estrangeiro que muito em breve deveria aportar àquelas praias, fugido de uma grande desgraça em sua própria pátria.
Enéias era este homem, e Tróia, sua antiga pátria. A partir de sua chegada os ânimos foram se acirrando até estourar a guerra definitiva entre o troiano Enéias e o rútulo Turno, passando ambos a disputar, pela força das armas, a mão de Lavínia e o controle do reino do pai desta. Os combates se acirraram, e num primeiro momento a vantagem pendeu para Turno.
Enéias, entretanto, viu-se obrigado a certa altura a se afastar dos acampamentos troianos, o que ensejou a audácia do audaz Turno a pôr um cerco sobre as muralhas troianas. Esta não era a primeira vez que os troianos viam-se sitiados atrás de muralhas, e a lembrança que guardavam da primeira ainda lhes era sobremaneira funesta, pois terminara com a ruína completa de sua pátria, a desgraçada Tróia. Por esta razão, havia um sentimento de muita apreensão entre os sitiados: estaria prestes a desabar sobre os troianos uma segunda desgraça, tão ou mais horrível do que a primeira?
Uma medida, então, era imprescindível: furar o bloqueio e chamar Enéias de volta ao campo de batalha antes que a derrota troiana se desse sob as mãos do implacável Turno. E é neste instante que entram em cena dois jovens guerreiros predestinados à glória — embora votados, também, a uma funesta imortalidade.
Enquanto os chefes troianos discutiam em seus baluartes sobre o destino do acampamento, Niso, guerreiro experiente, ainda que jovem, e Euríalo, um rapaz ainda inexperiente, mas muito admirado por suas qualidades de lealdade e valentia, montavam guarda no acampamento. De repente Niso voltou-se para o amigo e disse, como quem tem uma boa idéia:
— Euríalo amigo, percebeu como a guarda inimiga parece descuidada? Não parecem acreditar muito que possamos escapar desta entalada.
— Sim, Niso, já havia percebido — respondeu Euríalo, animando-se.
— Pois bem, estive pensando numa coisa: já que eles demonstram tão pouco cuidado com a possibilidade de alguma artimanha nossa, pensei em romper suas fileiras durante a noite e, escondido pela negra escuridão, ir em busca de nosso comandante Enéias; é a única maneira que temos de aterrorizá-los, fazendo com que levantem imediatamente o cerco. O que acha disto?
Euríalo, inflamado pelo ímpeto juvenil, quis imediatamente associar-se ao projeto.
— Irei contigo! — disse ele, vermelho de excitação.
— Eu não disse isto — retrucou Niso. — Disse que eu irei; você deve permanecer aqui neste mesmo lugar, montando guarda.
— Nada disto, irei com você, já está decidido!
— Euríalo, afoito, você é muito jovem e inexperiente. Além do mais você tem uma mãe para cuidar, que deixamos em Acesta, está lembrado?
— Em vão você profere essas palavras: já disse que estou decidido e a todo argumento que você apresentar oporei sempre a mesma resolução.
Niso, arrependido já de ter revelado seu plano, não teve outro jeito senão ir junto com o amigo pedir licença aos chefes para tentarem a arriscada empresa.
A princípio, Iulo, filho de Enéias, recusara veementemente tal proposta, por julgá-la demasiado arriscada. Mas diante da insistência, acabou por ceder.
— Prezo mais a glória do que a própria vida — dissera Euríalo, confiante. -Apenas peço que dêem toda proteção à minha mãe no caso de que um desastre ocorra, inviabilizando a missão.
— Não se preocupe — respondeu Iulo. — Sua mãe passará a ser a minha própria.
Desta forma Niso e Euríalo deixaram o acampamento ainda naquela mesma noite em demanda de Enéias. Quando chegaram à linha de frente dos rútulos, os encontraram ainda adormecidos, com as taças de vinho viradas sobre o chão.
Naquela época as leis da guerra não viam como infamante o ato de se tirar a vida de soldados adormecidos; por isto Niso e Euríalo não se envergonharam de ir enterrando suas espadas no peito dos soldados inimigos, tantos quantos fossem encontrando. Logo o chão estava coberto de cabeças cortadas, e um rio de sangue escorria dos pescoços dilacerados, ensopando a relva.
— Vamos Euríalo, já limpamos o caminho! — disse baixinho o seu amigo.
— Estou indo… — ciciou Euríalo, que em má hora tivera a idéia de levar consigo um elmo dourado e de altas plumas que havia retirado da tenda de Messapo, comandante dos rútulos.
Niso ia à frente, enquanto Euríalo seguia seus passos logo atrás; assim atravessaram as linhas inimigas sem serem incomodados, protegidos pelo manto escuro da noite, até que o dia começou a amanhecer. De repente, surgiu-lhes pela frente, de modo abrupto, uma coluna inimiga de trezentos homens, liderada por Volceno. Ainda assim não teriam sido avistados, não fora o elmo reluzente que o imprudente Euríalo havia posto sobre a cabeça.
— Alto lá, vocês dois! — gritou o comandante inimigo.
Niso e Euríalo, flagrados, dispararam bosque adentro. Mas, na corrida, acabaram por se separar. Niso conseguiu livrar-se da perseguição e já retornava feliz para o acampamento, quando se deu conta da ausência do amigo.
— Euríalo, cadê você? — gritava com as mãos em concha.
Não houve resposta. Niso, então, retornou para dentro do bosque à procura de Euríalo.
Jamais seria capaz de abandoná-lo, mesmo sob o risco da própria vida.
Andou bastante até escutar o ruído de algumas vozes. Eram vozes iradas, e mais de uma vez ele percebeu, misturada a elas, o estalo inequívoco de uma bofetada.
Afastando as ramas de uma árvore, divisou, então, seu amigo Euríalo amarrado e cercado por diversos inimigos. A sua frente Volceno, ameaçador, repetia:
— Vamos, cão frígio, diga onde está o outro!
Outra bofetada atingiu a face de Euríalo. O jovem, embora deitando sangue abundante pelo nariz, permanecia de cabeça ereta, afrontando o inimigo.
— Basta, não temos mais tempo a perder! — disse Volceno, sacando sua espada.
Niso, neste momento, vendo que tudo estava perdido para Euríalo — e mesmo para si —
remeteu uma prece para a Lua, dizendo:
— Diana, deusa da Lua, se alguma vez lhe foram agradáveis minhas ofertas, faz com que meus dardos atinjam com precisão o peito dos inimigos de Euríalo.
Sacando, então, do arco, arma e insígnia da deusa da Lua e da Caça, começou a disparar as suas setas com maravilhosa precisão. Um a um dos inimigos caíram, sem que os homens de Volceno pudessem identificar de onde partiam os certeiros dardos, pois Niso movimentava-se por entre o bosque com a rapidez de um felino.
Sulmon, um dos soldados inimigos, caiu do cavalo com um dardo espetado no coração, bem à frente de Volceno; da boca do moribundo escorreu um sangue negro e espesso. Logo em seguida outro soldado foi abatido diante dos olhos do atônito comandante: é Tago, que recebeu direto nas têmporas o dardo afiado de Niso. O desgraçado soldado também caiu no chão, quase em cima do outro, e como caiu, ficou, sem nunca mais poder levantar-se para a luta, com o dardo atravessado na cabeça.
Volceno, então, tomado pela ira, disse para Euríalo:
— Antes que eu pereça pela arte deste cão, você, maldito, pagará pelos dois! Niso, vendo que a hora fatal de seu amigo chegara, lança-se, então, à frente da coluna, de espada em punho.
— Não, maldito, poupe-o! — gritou Niso, disposto a tudo. — Ele é inocente, não tem culpa de nada. Liberta-o e vem me enfrentar, você e quantos mais quiserem!
Volceno, vendo os dois troianos à sua mercê, ergueu sua espada e disse ao pobre Euríalo:
— Você primeiro — e lhe enterrou no peito, até o cabo, o gume afiado do seu bronze. A lâmina saiu pelas costas de Euríalo, cuja cabeça pendeu para a frente; seu grito de dor foi abafado pelo bronze que lhe perfurou os pulmões.
Volceno retirou em seguida a espada do peito de Euríalo, já caído morto ao chão. Niso, cego de ódio, investiu, então, contra os soldados — mas seus olhos estavam voltados apenas para o cruel Volceno, que protegido pelos seus, limpava a espada nas roupas da própria vítima.
O fiel amigo de Euríalo sabia que seu fim também estava próximo; ciente disto, arremessou-se para a frente com todo o ímpeto, pois sabia que não haveria meios de fugir. Seu corpo já estava recoberto de dardos e de feridas abertas, e um mar de homens abatidos estava já às suas costas quando finalmente alcançou o matador de seu amigo, num pulo surpreendentemente rápido para um homem em seu estado.
— Agora morra você também, canalha! — disse Niso, enterrando sua espada tinta de sangue na boca de Volceno, perfurando-lhe os lábios e os dentes, que saltaram em cacos para os lados. O fio da espada saiu na nuca de Volceno, e antes que ele tombasse sobre o chão, Niso retirou o ferro. Volceno caiu e ainda ficou um tempo escoicinhando o chão, até que finalmente sua alma exausta lhe abandonou o corpo para sempre.
Niso, crivado de dardos, aproveitou o estupor que a morte do comandante provocou em seus soldados e correu até onde estava o corpo de seu amigo morto.
— Euríalo, amigo… Aqui está a glória que juntos buscamos! — disse num fio de voz, e caiu de braços sobre o corpo do amigo, já sem vida.
Os soldados de Volceno aproximaram-se, irados, e enfiaram suas lanças nas costas de Niso, unindo assim os corpos dos amigos numa mesma e gloriosa morte. A missão de Niso e Euríalo falhara; no dia seguinte Turno avançaria até as muralhas troianas com as cabeças dos dois infelizes jovens espetadas em compridos chuços. Enéias somente muito mais tarde chegaria de volta, pelo mar, para abater Turno e os inimigos dos troianos.
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