Dido e Enéias

I — A FUGA DE DIDO

Dido, filha de Belo, rei de Tiro, era casada com Siqueu, o homem mais rico de todo o reino. Ela o amava com todo o amor que Vênus pode inspirar a uma mulher. Os dois viveram felizes durante alguns anos, mas um dia os deuses decidiram que era hora de começarem as tribulações em sua, até então, amena vida.

Belo, rei de Tiro, faleceu e subiu ao trono seu filho Pigmalião, irmão de Dido. O novo rei era o mais perverso dos homens, e tão logo empunhou o cetro tratou de tramar a morte do marido de Dido, a fim de lhe tomar as riquezas.

Assim, planejou um dia um encontro com Siqueu num templo dedicado a Hércules. Ao chegar lá, encontrou o cunhado prosternado diante do altar. Sem dar-lhe qualquer chance de reação, cravou-lhe um punhal nas costas.

— Um rei não governa senão com muito ouro — disse o pérfido Pigmalião, justificando-se cinicamente perante os deuses.

Durante muito tempo este cruel assassinato permaneceu ignorado por Dido, até que um dia o espectro de seu marido Siqueu lhe apareceu num sonho, revelando o autor do seu assassínio e indicando a ela o lugar onde se ocultavam suas imensas riquezas.

— Vamos, querida esposa — disse a sombra esmaecida -, tome o tesouro e parta o quanto antes desta terra, pois o punhal do seu irmão já se apresta na sua direção.

A apavorada Dido acordou muito assustada e tratou logo de providenciar secretamente a sua fuga. Como houvesse também muitas outras pessoas fartas de suportar a tirania do cruel Pigmalião, juntaram-se elas à viúva de Siqueu e partiram todos da antiga pátria, que desde então se lhes tornara funesta.

II — A FUGA DE ENÉIAS

Tróia, a pátria de Enéias, estava em chamas. O herói, tomando a sua espada, acorreu até o palácio de Príamo para tentar defender o rei e sua pátria.

Ondas de gregos, sedentos das vidas e dos tesouros que a cidade ocultava, entravam pelas portas da muralha, que o próprio Netuno, deus dos mares, erguera por ocasião da fundação da cidade. Enéias, com a espada molhada do sangue inimigo, tentava inutilmente contê-los, mas a fúria dos homens de Agamenon era infinitamente maior, e o próprio rei Príamo acabou morto, junto com seus filhos.

De repente, porém, a deusa, sua mãe, lhe apareceu em meio ao combate.

— Vamos, meu filho, abandone esta luta inútil — disse-lhe Vênus, com ar severo. —

Não há mais nada a ser feito aqui. Tome os seus deuses e a sua família e parta daqui o quanto antes. Um destino maior lhe está reservado em outras terras.

Em meio à confusão, o filho de Vênus colocou às costas seu velho pai Anquises, tomando também Iulo, seu pequeno filho, pela mão, e partiu em meio aos combates. A deusa protetora não permitiu que nenhuma mão se erguesse contra eles, e assim deixaram os três os limites da antiga pátria, que desde então se lhes tornara funesta.

III — DIDO E O COURO DE BOI

A jovem Dido chegou com os demais companheiros a uma região isolada, situada na costa da África. Ali fundou uma colônia de tírios, que passaria a se chamar Cartago. Tão logo desembarcou, a exilada Dido procurou os nativos do lugar e lhes dirigiu estas humílimas palavras:

— Eis aqui uma desvalida, perseguida pelo infortúnio, que vem pedir apenas um pedaço de terra para poder viver em paz com seus antigos súditos.

Depois de encetar demoradas negociações, conseguiu obter autorização dos donos do lugar para se apossar de uma estreita faixa de terra, “suficiente para abarcar um couro de boi”.

Se os nativos tivessem um pouco mais de perspicácia teriam pensado melhor antes de atender a um pedido aparentemente tão singelo. Mas agora já era tarde: os exilados começavam a desembarcar animadamente, enquanto Dido, confiante, dirigia-se até os chefes locais.

— Eis aqui o couro de boi de que lhes falei — disse a rainha, depondo no chão a pele que, mesmo espichada, não era o bastante para abarcar mais que oito homens em pé, e muito bem espremidos.

Os nativos descerraram seus lábios escuros e seus dentes brancos faiscaram ao sol escaldante da inclemente Líbia.

Então a rainha chamou um de seus comandantes, estendendo-lhe o seu punhal de cabo de marfim com lindas incrustações a ouro. Ato contínuo, arrancou um fio comprido de seus dourados cabelos, que pendeu de seus dedos como um raio faiscante do grande astro que empresta ao dia a sua luz, e disse ao servidor:

— Agora corta este couro em tiras ainda mais finas que este fio de cabelo e depois estende-as por toda esta extensão que puderes, não esquecendo de as unir, por fim, num amplo quadrado.

Tais foram as ladinas palavras que partiram dos lábios de Dido, rainha dos tírios, e a partir daquele instante, rainha dos cartaginenses.

A nova cidade passou a se chamar Birsa (ou “couro”), em cujo centro estava erguida a cidadela de Cartago, que logo se tornou um dos lugares mais prósperos e florescentes de todo o mundo.

IV — ENEIAS CHEGA A CARTAGO

Enéias, como todo homem predestinado, era perseguido por sonhos divinos. Após navegar por muitos anos, um destes lhe avisou que um lugar chamado Hespéria seria o local para onde deveria rumar para fundar a nova Tróia.

Mas antes de chegar lá, teve de repetir as aventuras que Ulisses e os Argonautas já tinham vivido anteriormente: o ataque das odiosas Harpias, os sorvedouros fatais de Cila e Caríbdis e o ataque inesperado do gigante Polifemo, que mesmo cego quase destroçou a sua frota.

Quando chegou, finalmente, à costa africana, a frota troiana deparou-se com uma terrível borrasca, quase em frente a Cartago. Juno, rival de Vênus, que protegia Enéias, estava decidida a liquidar com ele, e eis por quê: sendo Juno padroeira de Cartago, sabia perfeitamente, na sua condição de deusa, que Enéias estava predestinado a fundar futuramente um grande império — o maior que o mundo veria — e que sua cidade amada estava destinada, cedo ou tarde, a ser subjugada por ele.

Mas Vênus, após muitas instâncias feitas a Júpiter, conseguiu salvar Enéias e fazer com que sua frota fosse dar nos costados da cidade de Dido.

V — DIDO CONHECE ENÉIAS

Enéias e seus homens desembarcaram em Cartago. Após perambularem pelos arredores, foram finalmente recebidos pela rainha. Em momento algum Dido sentiu-se atraída pelo forasteiro. Ela só tinha olhos para seu marido morto, e era proverbial em todos os portos da região a sua fama de recato e puritanismo. Vários pedidos de casamento haviam sido feitos inutilmente àquela poderosa rainha, que havia expandido seu reino graças ao seu tirocínio e às inesgotáveis riquezas que havia trazido de Tiro, ao ponto de torná-lo a maior potência econômica e militar da região.

A rainha nem por isto deixou de tratar os hóspedes com toda a fidalguia que mereciam, pois lembrou-se que um dia, também, já tivera contra si os fados funestos, não passando, como aqueles que agora arribavam às suas costas, de uma miserável errante dos mares.

Durante o banquete que lhes serviu, teve Dido a oportunidade de conhecer melhor seus hóspedes, em especial o valoroso Enéias, que ocupou quase todo o tempo do encontro a relatar as suas desditas, passatempo insuperável que fazia as delícias de todas as cortes daquela época.

Sim, é inegável que o relato do herói troiano impressionou-a profundamente. Mais de uma vez as lágrimas lhe desceram pelo rosto como pérolas que deslizam por um tecido aveludado. Mas quem lhe provocou a paixão que a consumiria, desgraçando-a para toda a vida, foi não Enéias, mas seu filhinho, o pequeno Iulo.

VI — A ARTIMANHA DE VÊNUS

Vênus assistira à chegada à ilha do seu protegido com muito temor.

“Juno não descansará enquanto não destruir Enéias”, pensou a deusa, roendo suas divinas unhas. “Talvez venha mesmo a instilar no coração da rainha, que até agora tem se mostrado uma soberana cordata e amável, um ódio funesto e profundo, a fim de levar Enéias, filho de Anquises, à mais negra ruína!”

Decidida, então, a impedir o pior, chamou logo seu filho Cupido.

— Cupido querido, preciso mais uma vez de seus préstimos.

O jovem rebento surgiu carregando suas flechas dentro da dourada aljava.

— Quero que alvejes sem piedade o coração de Dido, para que ela se tome de amores por meu favorito Enéias.

O divino garoto, de louros cachos, tomou, então, a forma de Iulo, o filho de Enéias, e postou-se perto da rainha durante o banquete do qual já falamos. Quando o grande troiano encerrou o longo excurso das suas desditas, o pequeno Iulo — na verdade, o solerte Cupido sob a forma daquele — pulou para os braços da rainha. Esta, encantada, como toda mulher, fez-lhe carícias de todo jeito, mas, ao descuidar-se um pouco, acabou alvejada pela seta que o moleque trazia oculta nas vestes.

Pronto! Eis aí Dido, a recatada rainha, tomada de amores pelo forasteiro e pronta para marchar rumo ao martírio.

— Agora precisamos quebrar sua última resistência — disse Vênus, entretendo seus macios e longilíneos dedos por entre os caracóis de seu eficiente rebento.

VII — UMA GRUTA SOB O TEMPORAL

Na manhã seguinte, a rainha organizou uma grande caçada pelos arredores montanhosos de Cartago; conduzindo um grande cortejo, do qual faziam parte Enéias e alguns de seus próceres, chegou enfim aos cumes rochosos onde se desenrolaria a grande diversão.

— Aqui não faltará prazer a você nem a qualquer dos seus — disse Dido a Enéias, que procurava distrair com estes entretenimentos o amor que consumia seu peito com um furor cada vez maior.

Vênus, a este tempo, já havia feito um novo pedido a Júpiter, para que lançasse seus raios sobre toda a região bem no momento em que a caçada estivesse no auge. O senhor dos trovões, algo aborrecido, acabou cedendo a mais este capricho da volúvel divindade.

A tarde, de início tremendamente escaldante, fazia prever para breve uma tempestade: nuvens de uma cor azuladamente metálica surgiram de repente no horizonte, e logo Bóreas furioso começou a soprar com toda a força o alento de seus pulmões. Arvores foram derrubadas, galhos voaram para todos os lados, e um rumor de pés correndo para todos os lados precedeu o desabar da terrível tormenta. Logo a chuva descia dos céus. Tírios e troianos procuravam abrigo, e a rainha Dido, como que impulsionada por uma mão invisível, viu-se logo separada de todos.

— Oh, não, e esta agora! — disse ela, ávida por encontrar um abrigo. Avistou, então, uma gruta salvadora, bem no topo do morro onde estava.

Para lá rumou, escalando a íngreme subida cheia de barro molhado. Dido agarrava-se aos galhos das árvores para poder subir, mas sempre que estava para alcançar a entrada da gruta perdia o equilíbrio e descia rolando pelo barro encharcado até voltar ao ponto de onde saíra, qual uma desastrada Sísifo do sexo feminino. Na quarta tentativa, entretanto, descobriu que suas vestes estavam em trapos e que seu corpo estava recoberto por uma capa de lama. Nem bem ergueu-se, porém, viu a chuva desnudar-lhe inteira daquela veste natural e pouco consistente, revelando a toda a natureza o seu corpo completo e irremediável.

— Oh, deuses! — clamou ela.

Seu lamento pareceu ter sido ouvido, pois logo alcançou o topo, desta vez sem perder o equilíbrio. Seu corpo, no entanto, estava, além de nu e encharcado, coberto de feridas provocadas pelos galhos e espinhos das árvores.

Descalça e nua, assim ela avançou até a entrada da gruta. Mas ao chegar lá encontrou já um habitante, que tratava de limpar do corpo a sujeira que se pegara à sua pele. Era, claro, Enéias, que ainda não dera pela presença da rainha.

Dido imediatamente recobriu com as mãos as suas vergonhas, mas, coisa estranha, não pôde mover os seus pés — e assim permaneceu parada diante daquele homem belo que prosseguia, diante de seus olhos, a fazer sua metódica higiene.

A chuva continuava a cair implacavelmente, e os ruídos dos trovões sacudiam a gruta inteira. Tudo começava a escurecer, tanto lá fora quanto ali dentro, e não foi sem uma pequena lástima que viu as formas do amado Enéias desaparecerem aos poucos, engolidas pela escuridão da gruta. Mas ainda havia um consolo: de vez em quando algum relâmpago, que não era tão raro que não iluminasse a gruta inteira por alguns segundos, fazia ver outra vez aquelas divinas formas, em sua inteira beleza. Dido decidiu, então, naquele misto de proteção e desvelamento que era a gruta sob os relâmpagos, simular uma chegada abrupta.

— Oh, há alguém aí? — perguntou, durante um intervalo de escuridão. Um novo relâmpago iluminou o interior da gruta e ela viu o rosto de Enéias voltado para ela. Viu o espanto, ainda que por um brevíssimo momento, desenhado em seu rosto. Ele, por sua vez, também percebeu quem ela era. Dido, da primeira vez, deixou que seus braços pendessem livremente — havia decidido que daria ao amado apenas esta chance de vê-la tal como os deuses a haviam criado.

Tudo escureceu, e quando a luz brilhou novamente Enéias estava diante de si. Ela já tinha as mãos postas em guarda, mas o homem que ela amava permanecia despreocupado de tais coisas. E tão logo a escuridão se fez outra vez, sentiu que seus braços fortes envolviam seus ombros.

— Oh, forasteiro, como se atreve a agarrar uma rainha? — disse ela, com um tom de voz que autorizava o desejo dele e o seu próprio.

O ruído dos trovões e da chuva tornou-se tão intenso, e sua reprimenda, de fato, fora tão pouco convincente, que em menos de um piscar de olhos estavam ambos entregues aos adoráveis exercícios prescritos por Vênus.

VIII — A VIAGEM DA FAMA

Na mesma noite — porque os amantes ficaram entregues a madrugada toda aos seus amores — a Fama, filha da Terra, saiu de sua caverna.

A Fama é uma deusa estranha: pequena, quando sai de casa, vai aumentando progressivamente de tamanho enquanto avança no cumprimento de sua missão. Por enquanto é apenas uma minúscula criatura, portando uma pequena trombeta em suas mãozinhas; uma menina, ainda. Mas é uma deusa veloz, por sua própria natureza; por isto não anda, mas voa, agitando graciosamente suas duas asas, que escondem uma miríade de olhos, feito o arguto Argos e o pavão espaventado.

A Fama é uma deusa de aparência encantadoramente bela, embora aos olhos dos amantes do pudor possa parecer às vezes extraordinariamente feia.

Com suas asas amplas ela fende os ares da ardente Líbia; o dardejante carro de Apolo apenas percorreu a metade do seu percurso e a núbil Fama já é agora uma moça crescida, de espantoso viço. Seu magnetismo e charme são inigualáveis: quase nenhum outro ser tem como ela o dom maravilhoso da persuasão. Por isto a sua estada em qualquer lugar é muito rápida; não precisa mais do que alguns instantes para transmitir a sua mensagem e ser acreditada imediatamente. Suas mensagens são quase sempre fidedignas e não têm nenhuma eiva de perversidade.

Ela está agora na corte do rei Jarbas, na Getúlia, e já fez soar pelos ares a sua divina trombeta — pois a Fama jamais desce à Terra para transmitir as suas novas — e já vai deixando aquele reino, pronta para levar adiante o seu ofício.

Entretanto, logo no seu encalço, vem outro ser, de natureza semelhante. É apenas um pouco mais discreto e tem a espantosa capacidade de dobrar de tamanho e volume a cada milímetro que avança. É, assim, um imenso ser alado, que rola com asas pelos céus, tendo uma aparência francamente repulsiva: gordo -imensamente gordo -, com bochechas estufadas que fazem lembrar o velho Bóreas, o poderoso vento do norte. Sua boca, entretanto, é pequena, quase um orifício, pois este ser não fala, mas antes cicia as suas novas.

Quando chega, cercado sempre pela Calúnia e pela Maledicência, amigas inseparáveis, a primeira coisa que faz é dizer, baixinho, ao primeiro que encontra, com voz maviosa e infinitamente sedutora:

— Venha, incline agora seus ávidos ouvidos a meus discretos lábios. Este deus é o Boato, irmão mais novo da graciosa Fama.

IX — UMA VISITA INOPORTUNA

Enéias agora é o amante oficial da rainha. Seus amores já são públicos, e todos os reinos vizinhos estão informados do que se passa entre os dois.

— Dido, minha querida — diz-lhe um dia Ana, sua irmã. — Alguns viajantes que retornaram da corte do rei Jarbas dão conta de que esse soberano tem o coração tomado pela ira contra você, eis que rejeitou a mão dele sob o pretexto da castidade, para agora estar com esse que ele chama de “frígio errante e miserável”.

Dido, apesar de ofendida com os termos do soberano, baixa os olhos. Depois, erguendo-os novamente, confessa:

— Ana, minha irmã e confidente. Não posso mais esconder: meu coração é todo de Enéias. Embora tenha jurado um dia permanecer fiel à memória de meu querido esposo Siqueu, não posso mais resistir a este sentimento que me avassala.

Ana, que era uma irmã compreensiva, tomou o partido de Dido.

— Realmente, minha irmã, você não pode mais ficar sem um rei ao lado, que dirija com mão forte os negócios do reino. Enéias é um homem forte, viril e corajoso, e tenho a certeza de que será um excelente rei para os cartaginenses.

Aos poucos todos foram se acostumando à idéia e achando perfeitamente natural que a rainha se consorciasse com aquele belo e valente forasteiro. Mas nos céus se pensava diferente, e assim, certa noite, Enéias recebeu a visita de um ser enviado com a missão de dissuadi-lo de tal idéia.

— Enéias, sou Mercúrio, mensageiro de Júpiter! — disse o deus dos pés ligeiros, com o semblante carregado. — Por que demora tanto neste lugar? Por que perde tempo construindo uma cidade para os outros, quando você ainda tem de partir para encontrar o seu verdadeiro país e, lá sim, construir uma cidade? Fugiu aos gregos, temendo a sujeição, para agora se tornar escravo de uma mulher?

Enéias não conseguiu responder a nenhuma dessas perguntas, pois ao seu lado estava Iulo, seu pequeno filho, a quem cabia dar um reino e uma descendência. No mesmo dia Enéias começou a fazer os preparativos para a partida.

X — O DESESPERO DE DIDO

Cedo Dido descobriu as intenções do agora esquivo Enéias — pois qual coração não está sempre atento aos menores gestos do ser amado?

— Enéias, planeja, então, abandonar-me? — perguntou ela, um dia, quando o viu em meio aos preparativos de sua partida.

— Os deuses exigem que eu parta rumo ao meu destino — disse Enéias, cabisbaixo. —

Dido, eu amo você, mas tenho um dever, uma altíssima missão que os céus me confiaram, à qual não posso dar as costas…

— Mas dar as costas a mim você pode, depois de tudo o que fiz por você e pelos seus?

— esbravejou a infeliz rainha.

— Eu não posso dar as costas, acima de tudo, a meu filho! — disse Enéias, resoluto.

— Oh, quanta ingratidão! Não pensa em mim, na minha situação? Que respeito poderei infundir, agora que me desfiz de minha castidade, dos meus votos de fidelidade, que eram o único pretexto para repelir os pretendentes que a todo instante me assediavam, buscando apenas minhas riquezas e meu reino? Não sabe que no dia seguinte ao que você partir verei entrar pela barra adentro a frota do rei Jarbas, que virá exigir a minha mão, chamando-me sabem os deuses por qual nome? E que meu odioso irmão Pigmalião espera apenas uma oportunidade para vir retomar as riquezas que julgava suas pelo direito vil do assassínio?

Enéias, sem poder responder a tão altas questões, deu as costas à rainha. Só Júpiter poderoso sabia o quanto lhe era agradável a idéia de permanecer na bela Cartago, na condição de rei, livre para sempre dos trabalhos que o mar impunha.

A voz dos deuses, contudo, era mais forte, e ele sabia que cedo ou tarde um terrível desastre se abateria sobre ambos caso ele decidisse permanecer ali, na condição de amante indolente da bela Dido.

XI — A PIRA FUNERÁRIA

Dido, a rainha infeliz, ainda guardou alguma esperança durante algum tempo, mas quando viu que Enéias já se instalara dentro do navio que o levaria embora, fazendo dali mesmo os preparativos finais para a sua partida, tomou a decisão extrema dos desesperados: matar-se-ia.

Sim, porque não suportaria ver a frota de Enéias se afastar lentamente de suas águas, sabendo que nunca — nunca mais! — iria tornar a pôr os olhos no seu amado.

Ordenou, então, que construíssem uma imensa pira na parte mais alta da sua fortaleza. Ali pretendia consumir em ardente fogo o seu corpo que o amor já consumira inteiramente por dentro, pondo um fim definitivo ao seu sofrimento.

Mas para que sua irmã de nada desconfiasse, inventou-lhe um artifício.

— Ana, querida irmã — disse ela, acariciando o seu rosto -, estou prestes a me livrar de tão grande sofrimento! Eis que recebi o auxílio de uma famosa feiticeira, versada nas artes mágicas de Hécate, que me propôs a construção desta enorme pira. Ali deverei colocar as armas e a efígie do pérfido traidor que agora me abandona, desonrada e desprotegida, à sanha de meus inimigos. Tão logo as labaredas tenham destruído tudo, estarei livre, afinal, deste sentimento terrível que ameaça tragar-me, tão cedo, para as moradas sombrias de Plutão.

XII — A FUGA DE ENÉIAS

Enquanto isso, Enéias dormia descansado na popa de seu navio. Eis que, de repente, Mercúrio alado lhe surge outra vez e diz com voz irada e semblante alterado:

— Ó filho imprevidente de uma deusa! Como pode dormir tão sossegado sem imaginar que um coração dilacerado e vencido não esteja a tramar a sua desgraça? É assim que pretende erguer e conduzir uma nova pátria? Ai dela, então, pois não durarão em pé seus muros mais que o curso de uma lua! Ande, levante e aponte de uma vez a proa de suas naus em direção ao mar, eis que Éolo, senhor dos ventos, já ordenou que o vento oeste sopre com altíssimo vigor.

Enéias, o homem dos mil sonhos, pôs-se logo em pé e, dando rijas vozes, ordenou aos seus homens que fizessem o que o deus lhe ordenara. Depois, voltando um último olhar para o castelo de sua amada Dido, lhe lançou estas aladas palavras:

— Dido, amada, perdoa a minha fuga, mas os deuses não quiseram que permanecêssemos juntos por muito tempo. Nos Campos Elíseos, quem sabe, haveremos de estar juntos algum dia. Ali saciaremos, então, de maneira infinita, todos os desejos que os fados agora não nos permitiram.

XIII — A FUGA DE DIDO

A suave Aurora já abria as cortinas rosadas de um novo dia quando a sofrida Dido abriu seus olhos para o mar e recebeu a primeira punhalada do dia em seu coração: a frota de Enéias, já em alto-mar, singrava com as velas enfunadas pelo vento. No mesmo instante correu até a pira, pedindo antes à irmã que fosse providenciar algo na parte mais afastada do castelo. Assim que se viu sozinha, acendeu a flama, subindo em seguida até o alto da imensa pilha de carvalhos e pinheiros.

— Agora se despede desta vida, que deuses e fados funestos tornaram insuportável, a desgraçada Dido, rainha que um dia vingou a morte de seu amado Siqueu, embora — ai de mim!

— não tenha sabido manter-se fiel; que fundou uma cidade maravilhosa e que teve a infelicidade de um dia ver aportar em suas praias aquele homem sem palavra e coração endurecido que agora foge de seus braços para todo o sempre!

Dido, sentindo as primeiras labaredas alcançarem os seus pés, ajoelhou-se e, tomando da espada que Enéias lhe deixara de presente, enterrou-a no peito.

Sua irmã, alertada pelo brilho da fogueira, acorreu para a pira, mas já era tarde demais: a alma de Dido, a infeliz rainha, já fugira, também, deixando entregue às chamas o seu corpo dilacerado, com a espada de Enéias enterrada ao peito.