Helena, a demônia

Helena, o pivô da Guerra de Tróia, estava escondida em seus aposentos quando os gregos finalmente invadiram a sagrada cidadela de Príamo. Em nenhum momento sentiu-se animada a tentar evitar o massacre dos seus novos patrícios troianos: votada exclusivamente a Vênus, Helena detestava violências.

Helena de Tróia não era troiana; nunca se sentira como uma delas. Apesar de ter convivido diariamente com sua nova sogra, Hécuba, esposa do rei de Tróia, e de ter sido íntima de Andrômaca, viúva do grande Heitor, consolando-a nos momentos de aflição, nunca pudera simpatizar com o jeito sisudo de ser daquelas mulheres, beatas em excesso e votadas exclusivamente ao dever, como a uma inescapável sina.

Mas enfim, como poderia, tendo chegado a Tróia na condição de réproba e adúltera —

aquela que abandonara um lar, um marido e um cetro na sua distante pátria por causa de um namorador inconseqüente -, ser admitida entre as troianas como uma das suas? Alguma troiana de cepa, algum dia, teria admitido em seu coração essa pérfida companhia?

Na verdade, desde o dia em que pusera seus pés em Tróia que o coração volúvel de Helena começara a ser minado pelo sentimento da saudade daquilo tudo que deixara para trás.

Mas a saudade que sentia não era da pátria, mas da Argos ensolarada; não dos amigos e parentes, mas de seu cão de estimação; não das cerimônias sagradas, mas das chinelas macias que esquecera, na pressa da fuga.

Sentia saudades, também, da filhinha, a pequena Hermíone, que abandonara com apenas nove anos de idade. Mas isto fora bem depois, ela mesmo admitia; Helena não tinha, exatamente, a vocação de mãe, e remorso sempre lhe fora uma palavra absolutamente ininteligível. Contudo, nem por isto deixara, algumas vezes, de imaginar como Hermíone estaria agora. Nove anos mais dez… sim, dezenove anos ela teria. Uma mulher, portanto — pronta para o melhor e para o pior da vida. Pronta para o amor.

Helena sacudiu a cabeça; o ruído dos gritos aumentara a tal ponto que ficava cada vez mais impossível ignorá-los. A cidade inteira ardia. Os gregos, seus compatriotas, estavam tomando posse de Tróia agonizante. Helena de Tróia estava prestes a tornar-se novamente Helena de Argos.

Com qual nome passaria à História, afinal?, pensara ela muitas vezes em seus ociosos devaneios. “Helena de Argos… Helena de Tróia… “, repetia ela mentalmente, horas a fio, fechada em seu quarto.

Apesar de tudo, ela gostava de Pária. Pelo menos fora mais descontraído que o antigo marido, Menelau, o grande enfadonho.

— Helena de Argos… É, acho que acabarei conhecida por esse nome — disse ela, naquele mesmo momento, convicta de que tal denominação prevaleceria. Mas podia ser Helena do Aqueronte, também… sabe-se lá que espécie de medonha vingança estaria prestes a desabar sobre a sua cabeça?

Menelau devia estar à sua procura: o que estaria se passando em seu coração, dez anos depois? No primeiro ano, seguramente, sentira ódio. Exclusivamente ódio. Mas depois de mais nove anos de ausência da esposa — de seu corpo, de sua voz, de suas carícias, de seus maus-tratos -, alguma coisa certamente teria mudado. Se ele a amava de verdade, ela ainda teria uma boa chance de escapar desta confusão com a cabeça firme sobre os ombros.

Mas e se algum grego chegasse antes dele? Alguém disposto a vingar um amigo ou um parente morto? Não fora ela a causadora de tudo?

E se os próprios troianos se voltassem contra ela, dispostos a entregar seu corpo desfigurado ao marido, dizendo em seguida: “Toma, aí estão os restos da rameira, pelos quais tantos morreram inutilmente!”? Como seria, afinal, morrer estraçalhada? Que sabor belo-horrível guardaria o momento do martírio? O corpo perfurado por uma centena de punhais, a violação das suas entranhas mais secretas, quase exangües, pelas mãos rudes do agressor… que sabor teria tudo isto, e, principalmente, o de morrer por uma causa nobre?

“Causa nobre?” Helena deu um ligeiro sorriso com o canto do lábio esquerdo. Mas o ricto logo se desfez; Helena sabia que a hora não era para graças: pessoas morriam aos milhares ao seu redor; ela podia escutar seus gritos, e os guinchos ainda mais terríveis daqueles que as assistiam morrer de mil maneiras ignóbeis.

Uma morte ignóbil… Oh, Vênus sagrada, que ela a castigasse de todas as maneiras, mas que lhe evitasse sempre a morte ignóbil! Esta fora sempre a sua oração, que agora ela renovava, na aflitiva situação. Sim, porque Helena do Aqueronte só rezava em último caso, na última volta do parafuso. Na verdade, ela nunca tivera medo de morrer. Pedia aos deuses, apenas, que lhe dessem uma morte digna. Digna não, decente.

Limpa. Este era o termo: uma morte limpa.

Neste momento, entrou no quarto Deífobo, irmão de Pária, que morrera em combate, nas muralhas. Ele era o novo marido de Helena, desde então.

— Helena, tudo farei para protegê-la da ira do perverso Menelau — disse ele, descabelado, com várias feridas espalhadas pelo corpo.

Mal sabia que isto era tudo o que ela não queria. Helena sabia que se estivesse só poderia com muito mais facilidade mover à piedade o coração do ex-marido. Ela sabia muito bem como fazê-lo. Mas tendo Deífobo ao seu lado, isto só serviria para atiçar a cólera do ultrajado rei de Argos.

De novo Deífobo tentou acalmá-la, dizendo-lhe estas palavras inspiradas:

— Somente à custa de minha vida, meu amor, tornará este perverso a pôr as suas mãos imundas sobre você.

“Perverso?… mãos imundas?… “, pensou Helena, olhando o atual marido com um princípio de desdém. Teve mesmo vontade de lhe dizer: “Como se atreve, imbecil, a falar nestes termos do pai de minha filha?”.

Um galope de passos estrondejou no corredor. Eram Menelau e seus homens.

— Demônia maldita, abra logo esta porta! — disse ele, com uma voz esganiçada. Sua voz sempre ficava assim quando perdia as estribeiras.

Em outras circunstâncias, Helena teria sorrido — até de ternura — ao escutar de novo aquela voz de grilo. Mas e o que era isto de “demônia”? No fundo de sua alma abriu-se, então, com a rapidez de uma mola, um pequeno escaninho, onde ela guardou com amoroso cuidado aquela injúria: um dia, se saísse viva daquilo tudo, ainda iria lançar-lhe à face aquele insulto ridículo!

Um estrondo terrível abalou os gonzos da porta. Um pedaço de madeira saltou longe e Helena viu a mão do marido introduzir-se pela fenda aberta. Por um momento teve a vontade de tomar das mãos de Deífobo a pesada acha de dois gumes, correr até a porta e metê-la com toda a força na mão do pai de sua filha. Seria, quem sabe, a última chance de vingar-se, por antecipação, de um ultraje medonho.

Mas o bom senso prevaleceu: ela ainda tinha um trunfo, afinal, um expediente solerte guardado em sua mente. Gregos — e mil vezes mais, as gregas -não eram especialistas em montar estratagemas?

Finalmente a porta cedeu, e Menelau entrou com mais três ou quatro homens.

— Fora, todos vocês! — disse ele aos companheiros, ao avistar somente Helena e Deífobo à sua frente.

Sim, lá estava ela, Helena, a vilã mal inspirada, a culpada de tudo. Seu ar, entretanto, ainda assim permanecia altivo — soberbo mesmo.

“Não, não me enganará mais com bravatas!”, pensou ele, numa fração de segundos, enquanto estudava a situação. Depois, olhando-a melhor, sentiu-se surpreendido. “Oh, deuses, ela também tem medo, afinal! Seus joelhos tremem, e sua face está pálida!”, observou, maravilhado.

Deífobo, entretanto, adiantou-se. Com a acha segura firmemente em suas mãos, brandiu-a na direção do oponente.

— Aqui está, cão dos aqueus, o que o espera, se ousar dar mais um passo adiante! —

disse o filho de Príamo, que estava a esta altura disposto a vingar também a morte do próprio pai.

— Vai pagar, agora, canalha, por tudo o que fez a mim e ao meu povo! -rugiu Menelau, espumando pela boca.

Helena, então, ao ver que Deífobo dera um passo adiante para enfrentar o oponente, teve uma iluminação: sacando das dobras interiores de seu manto um afiado punhal, que trazia sempre consigo, enterrou-o nas costas do irmão de Príamo.

Sim, Deífobo já estava morto, antes mesmo de avançar, pensou ela. Se não morresse pelas mãos de Menelau, pereceria pelas mãos dos outros soldados ali fora. E a morte de Menelau só iria servir para atiçar ainda mais a fúria dos seus homens, eliminando o último dos gregos que ainda poderia lhe salvar a vida.

Desta vez ela fora rigorosamente lógica: nada de piedade, nada de delírios febris ou de loucuras ditadas pelo coração. Era sua vida, agora, que estava em jogo: a sua vida.

Hermíone, a filha juvenil, então lhe apareceu na mente como um fugaz relâmpago: “Sim, ela precisa de uma mãe!”. Mesmo após dez anos de ausência, sem dúvida que Hermíone precisava agora, mais do que nunca, de sua mãe.

O relâmpago se desvaneceu quando Helena escutou uma voz estranha dizer:

“— Menelau, aí está morto um dos que tantos o ultrajaram! Mate-me agora, também, para que a vingança seja completa e a sua honra, restaurada!”

Era a sua voz — a voz de Helena — quem proferia isto. Tão logo retomou consciência, Helena abriu a parte superior de suas vestes, descobrindo o peito para que Menelau enterrasse nele a sua lança. Seus dois seios libertos, ainda extraordinariamente firmes e empinados, saltaram livres para fora, em um mudo desafio.

Menelau arregalou os olhos ao ver outra vez os seios desnudos de sua amada — sim, ainda imensamente amada! — Helena. Somente que agora havia um novo detalhe: ao centro de cada um deles estavam plantados dois mamilos hipnóticos, maquiados a ouro, que o observavam num fascínio mágico.

Menelau não disse uma palavra. Largou a lança no chão, que rolou até o corpo do desafeto morto, e tomando-a pela mão passou com Helena pelos seus próprios soldados e levou-a até o seu grande barco.

Helena ainda viveu muito anos ao lado de seu marido, o generoso Menelau. Dizem que foi, desde então, esposa exemplar, e que até a morte do esposo se manteve fiel a ele, sendo amada por quase todos que privaram de sua companhia.

Quando Menelau morreu, entretanto, ela foi expulsa do reino por seu próprio filho, Nicóstrato, indo buscar refúgio em Rodes, junto à sua velha amiga Polixo.

Polixo, no entanto, não era mais sua velha amiga. Era apenas uma velha -uma velha engasgada de ódio. Tendo perdido seu marido na guerra provocada por Helena, começou a tramar um negro fim para a viúva de Menelau, que, apesar de velha, ainda permanecia com seus encantos perfeitamente resguardados.

Um dia, logo após ter tomado banho e lavado seus dourados mamilos pela última vez, foi morta por duas servas, que a enforcaram numa árvore.

Helena de Argos, de Tróia e de Rodes teve, assim, a morte que sempre quis: limpa.