Enéias nos Infernos

Diz o insigne Virgílio que após Enéias ter abandonado a sua amada Dido, em Cartago, foi levado de volta às praias da Sicília pela força dos ventos e do mar bravio; E que tendo lá chegado por força do temporal, viu-se às voltas com a revolta das troianas, as quais, cansadas de errarem por Ceca e Meca, levantaram um motim; E que deste motim feminino resultaram quatro navios queimados, eis que as ferozes mulheres pretendiam incendiar todas as naus e se estabelecer ali mesmo, na amena e cálida Sicília; E que ali mesmo, na amena e cálida Sicília, Júpiter, a instâncias de Enéias, fez desabar sobre as naus incendiadas uma tremenda tempestade, consumindo as chamas e pondo um fim à funesta rebelião;

E que uma vez debelada a funesta rebelião, recebeu Enéias a visita noturna do espectro de seu falecido pai, o velho Anquises;

E que o espectro de seu falecido pai lhe disse, então, “Parte, filho meu, o quanto antes para a Itália, pois lá você fundará a nova Tróia; antes, porém, procura a morada subterrânea de Plutão, descendo as encostas do profundo Averno até atingir os Campos Elíseos, eis que desde minha morte minha sombra lá se encontra”.

Tudo isto diz o insigne Virgílio, com maior beleza, e mais ainda: Que Enéias, após ter tentado abraçar em vão o espectro do seu pai, deu a opção “àqueles corações que não anseiam pela glória” de permanecerem na amena e cálida Sicília, eis que muitas tribulações desabariam sobre aqueles que o seguissem;

E que partiu, enfim, com poucos mas valorosos companheiros;

E que Vênus, tendo pedido proteção a Júpiter para Enéias e seus barcos, ouviu deste que exigiria apenas uma vítima expiatória;

E que a escolha recaiu sobre o piloto, o infeliz Palinuro;

E que Palinuro, estando ao leme, e todos os demais adormecidos, recebeu a visita do próprio Sono, sob a forma do amigo Forbas;

E que o fingido Forbas disse a Palinuro: “Vai descansar, piloto, esteja tranqüilo, eis que o tempo está bom e eu mesmo ficarei ao leme”;

E que Palinuro, consciente do dever, disse: “Não, nada disso, é meu dever, não me fale em tempo brando ou vento amigo; sou experiente, nada disto me engana, deverei, então, expor Enéias à inconstância do tempo e do vento?”;

E que tendo dispensado o auxílio do fingido Forbas, agarrou-se com mais força ainda ao leme, pensando: “Não, não delegarei a outro um dever que é apenas meu”; E que tendo teimado no cumprimento do seu dever, o Sono, sempre sob a falsa efígie do fingido Forbas, espargiu sobre sua cabeça um ramo com água do Letes, o rio do Esquecimento: E que Palinuro, vencido por um invencível sono, ainda assim permaneceu firme no seu posto como um dois de paus;

E que o Sono, perdendo sua habitual compostura, empurrou Palinuro para fora do barco, dizendo: “Vai, anda, foi você o escolhido”;

E que Palinuro, mesmo adormecido e caindo borda afora, levou consigo o leme, num último esforço de manter-se fiel ao cumprimento do dever;

E que Enéias, ao perceber que o barco ia à deriva e que Palinuro fora deitado ao mar, dirigiu-lhe estas tão famosas quanto injustas palavras: “Por ter confiado em demasia na serenidade do céu e do mar, ó Palinuro, seus ossos nus e solitários jazerão para sempre numa praia erma e desconhecida!”

Tudo isto diz o insigne Virgílio, com maior brilho, e mais ainda: Que a frota seguiu em frente até arribar às costas da terra da promissão, uns a chamando Itália, outros, Hespéria, o que vem a dar tudo no mesmo;

E que Enéias correu logo a buscar o templo de Apolo e a caverna onde se ocultava a pavorosa Sibila, que proferia seus oráculos inspirada por aquele deus; E que o herói troiano, vendo-se frente a frente com a Sibila, empalideceu ao vê-la tomada pelo espírito do deus;

E que ela dizia: “Vamos, é o deus! é o deus! interrogue agora e logo os fados…!”

E que a profetisa, diante das cem portas que dão acesso às cem entradas do sombrio covil, tresvariava feito louca, mudando a cor das faces, descabelando-se com furor, ofegando o peito opresso e dando à voz uma entonação que não era humana; E que esta voz cuja entonação não era humana disse ao herói: “E então, não faz a sua oferta? Estas portas não se abrirão antes que você cumpra com a sua obrigação!”; E que Enéias, com os ossos congelados pelo medo, fez então um grande e soberbo arrazoado, invocando a proteção do deus;

E que a profetisa, dando ares de que nada escutara, prosseguia a cabriolar de lá para cá, feito uma bacante, tentando arrancar do coração o jugo do poderoso deus; E que finalmente a Sibila principiou a fazer suas exatas predições; E que elas diziam que Enéias chegaria à terra de Lavínia e que com ela casaria; E que antes disto teria de enfrentar uma pavorosa guerra que deixaria o Tibre espumante de tanto sangue;

E que Enéias nem por isto deveria ceder ao infortúnio, mas antes avançar com coragem ainda maior.

Tudo isto diz o insigne Virgílio, com maior vigor, e mais ainda: Que Enéias, findo o transe da poderosa Sibila, lhe pediu que o conduzisse até onde seu pai estava, nos amenos Campos onde sopra o eterno Elísio;

E que a Sibila lhe disse que as portas do reino de Plutão estavam sempre abertas, mas que retornar para a atmosfera superior é que eram elas, e que ali é que estava o trabalho, e que ali é que estava a dificuldade;

E que a Sibila lhe disse também que para ser admitido às regiões infernais (posto que antes de chegar aos Elísios deveria ele atravessar as regiões sombrias), precisaria o filho de Anquises colher num bosque sagrado um ramo de ouro que pende desde sempre de uma frondosa árvore, consagrada à Prosérpina infernal;

E que deveria não cortar, mas arrancar com a mão esse ramo mágico; E que não poderia Enéias descer às regiões subterrâneas sem lhe levar esta sublime oferta; E que depois disto deveria proceder aos ritos fúnebres de seu amigo morto, embora Enéias não soubesse de nenhum amigo morto;

E que depois disso tudo deveria sacrificar cordeiros pretos à sombria Hécate, e só então estaria apto a avistar os bosques sombrios do horrendo Estige; E que depois de dizer isso tudo a Sibila cerrou os lábios;

E que, dando cumprimento às determinações, Enéias seguiu com seu fiel amigo Acates para procurar o ramo dourado;

E que ao retornar descobriu quem era o amigo morto citado pela profetisa; E que o amigo morto não era outro senão o velho amigo Miseno, filho de Éolo; E que este tivera uma morte ainda mais estúpida que a do pobre Palinuro; E que estando Miseno a tocar sua tuba guerreira em alto-mar, Tritão, divindade marinha e mal-humorada, “se tal coisa se pode acreditar”, sepultara-o sob as águas; E que, então, foram todos para dentro da floresta cortar enormes troncos de freixos e carvalhos para que se procedessem aos ritos fúnebres de Miseno; E que não sabia Enéias que jeito daria para encontrar a tal árvore do ramo dourado; E que ao dizer isto não uma, mas duas pombas alvas surgiram sobre sua cabeça; E que elas incontinenti o conduziram até a árvore maravilhosa, onde folhas verdes e douradas conviviam irmãmente;

E que as folhas douradas, muito mais que uma, esbatiam-se suavemente entre si, produzindo um ruído metálico e cantante;

E que finalmente Enéias estendeu sua mão e arrancou um ramo, que foi logo substituído por outro do mesmo matiz e da mesma textura;

E que o herói, feliz, foi correndo levar à Sibila o maravilhoso ramo.

Tudo isto diz o insigne Virgílio, com maior talento, e mais ainda: Que estando a pira pronta, Enéias procedeu aos ritos de sepultamento de Miseno desgraçado;

E que desde então o sopé do monte onde a fogueira ardeu leva o nome desgraçado de Miseno;

E que assim será pelos séculos dos séculos;

E que logo em seguida fizeram-se os sacrifícios dos cordeiros negros; E que logo o chão sob os pés de Enéias começou a retumbar como se um deus irado sapateasse o teto do subterrâneo;

E que os cães começaram a latir desabrida e desordenadamente; E que a Sibila disse, então: “Que os profanos se afastem, eis que a deusa chega!”; E que, voltando-se para Enéias, disse-lhe: “Agora saque da bainha a sua espada e guarde firmeza em seu coração”;

E que Enéias, levando adiante a Sibila, adentrou as veredas sombrias e estéreis do reino de Plutão;

E que já no vestíbulo dos infernos deu de cara com seres pavorosos, dispostos um ao lado do outro, como num horrível mostruário;

E que dentre eles podia-se divisar o negro Luto, mais escuro que a própria escuridão; as Enfermidades, mais pálidas que o manto invernal; o Remorso, cuja cabeça, torcida várias vezes, olhava sempre para trás; a Velhice, encarquilhada a ponto de seus lábios roçarem os joelhos; o Medo, de olhos costurados e todo enrodilhado sobre si; a Fome, a comer os próprios membros; a Miséria agitando os trapos misturados aos fios de sua própria carne; a Fadiga, a arfar em longos haustos um alento que jamais lhe basta; a Gula estufada, com sua pele lustrosa a rachar e verter uma gosma podre por toda parte; a Guerra, coberta de dardos e com uma tiara ensangüentada posta sobre os olhos; e finalmente o Sono, o pobre!, ali injustamente aprisionado apenas por ser irmão da Morte.

Tudo isto diz o insigne Virgílio, com menos exagero, e ainda mais: Que logo adiante estavam as estrebarias dos centauros, estes a escarvarem furiosamente a palha;

E que um passo além estavam ainda outros desaforos da Criação, tais como Cila, monstro de seis cabeças, com uma matilha de cães rosnadores presa ao redor da cintura; Briareu, gigante perdulário de cem braços e cinqüenta cabeças; a hidra de Lerna, a silvar horrendamente; a Quimera, a botar flamas pelas ventas; as Górgonas de tranças de serpentes; as Harpias, a babarem uma gosma fétida sobre os alimentos;

E que Enéias, vendo avançar sobre si toda esta horrenda estirpe infernal, sacou de sua espada e preparou-se para o embate, mesmo tendo os pêlos todos de seu braço arrepiados pelo medo;

E que a Sibila deteve o primeiro golpe, dizendo: “Guarda a coragem, nobre herói, eis que são espectros sem substância a esvoaçarem em vão pelas paredes!”; E que partindo dali os dois chegaram às margens do infernal Aqueronte, rio que leva à mansão dos mortos;

E que aos poucos foi se aproximando uma velha barca conduzida por um remador horrendo;

E que este era um velho chamado Caronte, cuja sujeira era indescritível; E que sua barba absurdamente branca lhe descia até o umbigo enorme, nada menos que um infame depósito de larvas;

E que seus olhos despediam chispas, e a boca, impropérios;

E que tinha preso ao ombro apenas um manto pútrido, úmido e fedorento como a pele apodrecida dos afogados;

E que este sórdido barqueiro despedia impiedosos golpes de remo sobre todas as almas que se precipitavam para embarcar em sua nau da cor do ferro; E que escolhia apenas alguns, afastando com o pé a chusma dos insistentes; E que Enéias, aturdido, voltou-se para a Sibila e disse: “Virgem, diga o que significa todo este atropelo, e por que somente a alguns é dado embarcar para a outra margem?”; E que a Sibila teria respondido: “Veja, aqueles que ali ficam lançados sobre o chão a esmurrar a negra areia são espectros daquele cujos ossos não tiveram o favor de uma sepultura, e ali estarão durante cem anos, a vagar e a gemer sem socorro de deus algum nesta infernal soledade, e somente após cumprido o prazo fatal é que serão finalmente admitidos à barca do horrendo condutor”.

E que Enéias, firmando melhor a vista, começou a enxergar velhos companheiros do malfadado sítio, que caíram retumbando sobre o solo com as suas armas, sem terem o descanso de uma sepultura;

Tudo isto diz o insigne Virgílio, com maior clareza, e ainda mais: Que viu aproximar-se de si o infeliz piloto, Palinuro, aquele que ao observar os astros caíra da popa mar adentro;

E que Enéias, aproveitando a ocasião, perguntou ao desafortunado: “Que deus funesto houve por bem lançá-lo às ondas antes que você pudesse chegar conosco à terra da promissão?”; E que Palinuro, envergonhado, confessou que não fora deus algum, mas somente a sua imprevidência que o fizera adormecer sobre o leme, perdendo o equilíbrio e arrastando-o consigo para o mar;

E que Palinuro disse ainda que fora carregado pelas ondas durantes três longos dias e três longas noites até ser lançado aos arrecifes das praias italianas, mas que homens pérfidos o mataram com seus ferros afiados, na esperança de uma presa, quando tentara subir aos rochedos e escapar à fúria das ondas;

E que Palinuro pediu, como último favor, ao comandante e amigo que o levasse consigo na barca, para que pudesse doravante ter sossego em sua alma; E que a pitonisa, metendo-se na conversa, atalhou as palavras do infeliz, dizendo:

“Acalme o seu desejo, Palinuro, e antes se acomode com o desejo dos deuses, eis que foi pela vontade deles que você chegou a este estado; nem com preces poderia agora mudar os decretos que as próprias Parcas já lavraram em definitivo”;

E que a Sibila ofereceu, então, ao desgraçado, um consolo, afirmando que seu nome seria venerado doravante pelas populações com sacrifícios, tendo estabelecido um culto só para si, como se verdadeiro deus fora;

E que Palinuro, tendo ouvido estas aladas palavras, cobrou novo ânimo, tirando forças daí para suportar o prazo de seu amargo exílio;

E que Enéias e a Sibila, dando as costas, intentaram, então, embarcar na nau de Caronte imundo;

E que este, volvendo um olhar raiado de sangue ao piedoso Enéias, lhe disse: “Eia, esta é terra de sombras e de mortos, e não é lícito a um vivo pôr os pés em minha barca!”; E que a Sibila tratou de acalmar o irado condutor, dizendo: “Esteja descansado, Caronte, que estas armas que o forasteiro traz não carregam consigo a violência, eis que com elas pretende apenas avistar seu velho pai, nas profundezas do Erebo, para uma importante revelação; e se mesmo esta razão não o move à piedade, aqui está a passagem que dará o salvo-conduto ao meu companheiro”;

E que a profetisa estendeu, então, o ramo dourado até o barqueiro, que o tomou com grata satisfação nos furibundos olhos;

Tudo isto diz o insigne Virgílio, com maior elegância, e ainda mais: Que Caronte esvaziou a barca das almas que já estavam assentadas, admitindo nela exclusivamente Enéias e a Sibila;

E que a barca rangeu quando Enéias nela entrou, botando água dentro; E que assim chegaram os dois até a outra margem do pavoroso rio; E que na outra margem do pavoroso rio rugiu o troar das três bocas de Cérbero, cão de guarda infernal que estava deitado na caverna em frente;

E que a Sibila lançou-lhe um bolo soporífero feito de mel e de escolhidos grãos; E que Cérbero, abocanhado o petisco, caiu adormecido, facilitando a passagem de Enéias e da Sibila esperta;

E que após escutarem o choro e o lamento de crianças que um dia foram arrancadas dos braços das suas mães para a acerba morte, avistaram Minos, a agitar a urna do sorteio, a fim de proceder ao julgamento das almas réprobas;

E que não distante dali avistava-se o Campo das Lágrimas, bosque umbroso onde buscam refúgio aqueles que o amor fez perecer em um langor cruel, onde entre outros se divisavam claramente Fedra, a infeliz amante, e Prócris, ninfa vitimada por seu próprio ciúme; E que Enéias, para grande surpresa sua, ali também encontrou Dido, a amante que ele abandonara por uma ordem divina, desgraçando-a;

E que a infeliz Dido vagava por ali, trazendo ainda no peito a ferida aberta; E que o piedoso Enéias, molhando de lágrimas seu próprio rosto, disse-lhe:

“Desventurada Dido, é verdade então que você tomou uma resolução fatal depois de minha partida?”;

E que jurou à infeliz amante ter sido obrigado a partir, embora sua vontade lhe dissesse mil vezes para ficar, e não partir, e estar com ela, e não deixá-la, e amá-la sem nunca e jamais abandoná-la;

E que Dido, imperturbável como os penhascos da Marpésia, não se movia ou comovia com coisa alguma que o antigo amante lhe dizia, limitando-se a manter os olhos pendidos sobre o pó do chão;

E que depois, perdendo de vez a paciência, foi buscar refúgio no sombrio bosque, onde seu marido, Siqueu, a esperava, sem dirigir ao amante mais um único olhar ou lhe dizer uma única palavra;

E que Enéias, pesaroso, afastou-se dali para nunca mais ver a sua amante; E que logo encontrou os antigos companheiros da funesta campanha de Tróia; E que Enéias não pôde conter um suspiro ao vê-los desfilar diante de si em uma longa e miseranda coluna;

E que as falanges inimigas de Agamenon fugiram espavoridas ao enxergarem de novo entre eles o valente inimigo, de armas em punho;

E que do rebanho das sombras se destacou Deífobo, filho do rei troiano, com o rosto todo desfigurado, eis que lhe faltavam à máscara da face o nariz e as orelhas; E que Deífobo, ocultando com as mãos as negras feridas, foi perguntado por Enéias da razão de se encontrar em tão mau estado, posto que este não pudera encontrar o corpo do amigo no dia fatal da derrocada da soberba Tróia;

E que Deífobo lhe respondera dizendo que Helena pérfida fora a causa do seu negro fim, pois estando casado com ela após a morte de Pária fora traído pela infame, a qual pôs para dentro das suas portas o marido ultrajado, retirando da cabeceira de sua cama a sua fidelíssima espada, única defesa que poderia opor diante do invasor enfurecido.

Tudo isto diz o insigne Virgílio, com muito mais colorido, e ainda mais: Que a Sibila apressou Enéias, dizendo, impaciente: “Eia, Enéias, eis que a noite se aproxima e já perdemos muitas horas a chorar. Saiba que daqui por diante o caminho se bifurca: o da direita conduz ao ameno Elísio, enquanto que o da esquerda leva ao tenebroso Tártaro”; E que Enéias enxergou no caminho da esquerda grandes casas circundadas por uma sólida e tríplice muralha rodeada pelas águas em chamas do Flegeton sinistro, as quais rolam consigo, sem cessar, enormes pedregulhos ressonantes;

E que ao centro da cidadela erguia-se nos ares uma imensa torre de ferro, morada de Tisífone, a Fúria vingadora, que do alto, de túnica sangrenta e arregaçada, vigiava noite e dia os seus tétricos domínios;

E que de dentro da torre de ferro ecoava o ruído de ásperas chibatadas, e o grito estertorado dos flagelados, e o retinir das ásperas correntes, e o roncar maldito da castigadora; E que Enéias, querendo saber quem habitava aquelas horrendas moradas, recebeu da Sibila esta resposta: “Deixa estar a sua curiosidade, que a nenhum inocente é permitido transpor o limiar do crime; apenas digo que ali está o horripilante reino de Radamente, onde são interrogados e torturados os autores dos crimes execrandos”; E que a Sibila ainda disse: “Ouve este silvo, também, que supera mesmo ao do açoite da Fúria vingativa? É o bafo monstruoso que se escapa das cinqüenta goelas negras e escancaradas da pavorosa Hidra, que ali reside sempiterna”;

E que disse ainda que mais para dentro, muito mais para dentro, o Tártaro se estendia num espaço duas vezes maior que o que leva do Olimpo até o céu, e que lá embaixo, rolando nos fundos deste medonho abismo, estavam os Titãs, primitivos habitantes da Terra, derrubados que foram pelo raio de Júpiter tonante;

E que depois da Sibila ter descrito, com muito mais detalhes, a situação dos outros supliciados, disse para Enéias que avançassem até a porta onde deveriam depor sua oferenda; E que Enéias, depois de ter lavado o corpo de toda sujidade infernal, penetrou no pórtico e pendurou na soleira o ramo dourado, entrando assim nos sítios amenos e idílicos dos bosques afortunados.

Tudo isto diz o insigne Virgílio, com mais elevação, e ainda mais: Que caía de um éter mais amplo uma luz purpúrea que banhava os campos; E que os habitantes dos Elísios tinham um sol e variados astros que eram somente deles; E que todos, guerreiros, sacerdotes, poetas, pastores, tendo as frontes cingidas por ramos, passavam o tempo todo em descanso ou em festejos, exercitando as armas ou a lira, conforme mandasse a sua vontade;

E que tendo encontrado entre eles Museu, aquele divino músico que chegava a curar com sua arte, lhe perguntou Enéias onde morava seu pai Anquises;

E que o poeta lhe dissera: “Não, engana-se, visitante, aqui ninguém possui morada, e todo lugar, bosque, arroio, vereda ou prado é morada bastante para nós”; E que mesmo assim, apontando o dedo, indicou-lhes o lugar, num bosque verdejante, onde poderia Enéias encontrar seu velho pai;

E que Anquises, com os olhos repletos de lágrimas, estendeu os braços para o filho tão logo o divisou por entre a chusma transparente das sombras que se interpunham entre ambos; E que Enéias por três vezes tentou em vão abraçar seu velho pai, posto que sua figura tinha a mesma consistência da brisa, do fumo, do hálito e dos sonhos; E que depois de trocar palavras afetuosas com seu pai, Enéias avistou um pouco mais adiante uma mata de caniços sonoros a margearem as águas silenciosas do Letes, o rio do Esquecimento;

E que tendo se espantado com a imensidão de sombras que enxameavam ao redor daquelas águas de coloração escura, perguntou ao pai: “Diga-me, pai saudoso, por que tantas almas revoluteiam ao redor daquele curso incessante, como abelhas frenéticas ao redor de um oloroso favo?”;

E que Anquises lhe disse que aquelas eram almas purificadas, que depois de haverem expiado suas antigas faltas nas moradas infernais e terem tido o descanso das suas penas nos aprazíveis Elísios, agora preparavam, cumpridos mil anos de exílio, a sua volta para a morada dos vivos; antes, porém, deveriam beber daquelas águas para que, esquecidas de toda mácula ou réstia de passado, pudessem retornar ao convívio da carne, com todos seus tormentos, suas dúvidas, suas tristezas, seus sofrimentos, seus trabalhos, suas penas e suas maravilhosas tentações.

E que depois Anquises mostrou um por um os futuros descendentes de Enéias, os quais colhiam a mãos ambas a água do Letes, sorvendo-a com ansiosa sede; E que um seria guerreiro inexcedível, outro, poeta mavioso, e o restante, reis, e reis, e reis, e infinitamente reis, eis que ser rei parecia ser a ambição da maioria daquelas sombras; E que depois do velho Anquises ter feito o relato do futuro grandioso que aguardava a cada uma daquelas almas enfastiadas da Eternidade, conduziu, enfim, Enéias e a Sibila até a grande porta de marfim do Sono, saindo ambos outra vez para a luz do Dia e da Vida, a fim de que o piedoso herói pudesse outra vez ir ao encontro de seus companheiros que o aguardavam dentro dos navios, com as proas voltadas para o mar.

Tudo isto diz o insigne Virgílio, com maior inspiração, nos versos de seu poema imortal.

Introdução à Mitologia Grega - Universo Anthares

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