Até a descoberta de outras antigas coleções legais no Oriente Próximo, acreditava-se que o código de Moisés seria o único representante dessa natureza. A descoberta do Código de Hamurabi em Susa, 1901, deixou bem claro que as ordenações legais israelitas haviam sido precedidas por um grande número de códigos legais na antiga Babilônia. Ao mesmo tempo, ela serviu para demonstrar o espírito singular da legislação mosaica e desferiu um golpe mortal em outras opiniões que haviam afirmado que matérias legais, como as que existiam no Pentateuco, eram anacronismos.
Uma das fontes legais mais antigas, sobre as quais se baseou o Código de Hamurabi, foi o grupo de ordenações promulgado por Urukagina, rei de Lagash, por volta de 2380 a.C. Esse ensi sumeriano prometeu a Ningirsu, divindade padroeira de Lagash, que não iria permitir que os órfãos e as viúvas de sua cidade fossem explorados por indivíduos desumanos. Em uma tentativa de modificar o poder do ensi, e restaurar o domínio teocrático na Suméria, Urukagina deu início a uma legislação que removeu, em grande parte, os privilégios adquiridos pelos dignitários do palácio, pelos funcionários civis e outros funcionários administrativos, enviando-os de volta ao templo que era o centro vital e administrativo da comunidade. Urukagina também pôs fim a certos abusos que haviam surgido com os seus predecessores; pode se citar como exemplo, o fato de ter abaixado os impostos dos enterros e dos serviços religiosos e defender o direito do homem comum à sua propriedade. Essas leis, assim como a maioria dos outros “códigos” da Mesopotâmia, se originaram da promulgação de decisões legais como meio de orientar os juízes nos tribunais, e não devem ser entendidas como representantes de determinações precisas para a regulamentação de todos os assuntos legais. As leis representavam, essencialmente, coleções de precedentes cuja intenção era estabelecer um padrão geral de justiça para orientação das autoridades legais e, sem dúvida, eram sensíveis a certa liberdade de interpretação.
Outra antiga coleção de leis, emitidas na Babilônia, é antecedente ao Código de Hamurabi por quase dois séculos. Conhecido como Código de Eshnunna, foi recuperado das tábuas encontradas em Tell Abu Harmal, perto de Bagdá.10 Esse código foi escrito na língua semítica da Velha Babilônia e incorporado ao sistema legislativo do rei Eshnunna (em aproximadamente 1885 a.C). Algumas das leis tratavam do estabelecimento de preços para os cereais e outros produtos, enquanto uma outra seção (53) do código era bastante significativa, pois constituía o paralelo mais antigo com a lei hebraica. Essa provisão estabelecia o procedimento a ser seguido na determinação do preço dos bois que tinham estado brigando e receberam ferimentos mortais, e é semelhante à legislação existente em Êxodo 21.35.
Cerca de uma década mais tarde, o Código de Eshnunna foi seguido pelos decretos de Lipit-Ishtar, rei de Isin (em aproximadamente 1875 a.C), um distrito localizado no centro da Babilônia. Esse código empregava o que parece ter se tornado uma forma literária padrão, pois a legislação de Hamurabi acompanhou exatamente esse mesmo estilo. Um prólogo que afirmava que Lipit-Ishtar teria estabelecido a justiça sob a proteção de En-lil introduzia o principal corpo de leis e era concluído por meio de um epílogo. As tábuas, escritas em sumeriano, estão sob a forma de fragmentos e contêm trinta e cinco leis que governavam a vida da sociedade feudal. Elas tratavam de diversos assuntos como aluguel de barcos, o procedimento a ser observado por aqueles que estavam em débito com o pagamento de impostos e outras leis que regulamentavam a propriedade, a herança e o casamento.
A riqueza do material relativo a legislação, escavado no sítio da antiga Nuzu, perto de Kirkuk na moderna nação do Iraque, aumentou em grande parte o conhecimento existente sobre a jurisprudência no antigo Oriente Próximo. Essas leis datavam do século XV a.C. e, como já foi observado, forneceram a base para uma nova apreciação dos costumes e das leis que formulavam o padrão da vida social no período Patriarcal. Porém o mais notável precursor da lei hebraica foi o renomado Código de Hamurabi. Por causa de um cenário semítico comum, e um grau de semelhança na herança cultural, em muitas áreas a legislação mosaica se assemelha, claramente, com a de Hammurabi e essa consonância superficial levou muitos estudiosos a acreditar que os códigos legais dos hebreus eram nada mais que modificações ou adaptações feitas no antigo material da Babilônia.
Embora existam muitas semelhanças entre os ordenamentos de Hamurabi e de Moisés, também existem diferenças substanciais e suficientes que nos levam a desconsiderar qualquer teoria de dependência hebraica da jurisprudência babilônica. O Código de Hamurabi era formado por um corpo de leis civis adaptadas às necessidades da sociedade urbana da Mesopotâmia, enquanto a legislação mosaica era principalmente ritualística e religiosa em sua natureza, e adequada às necessidades de uma economia pastoril. Mesmo onde os tópicos de natureza semelhante receberam a mesma atenção nos dois códigos, existem diferenças notáveis em termos de detalhes como, por exemplo, nas leis relativas ao divórcio. Embora a legislação sacerdotal do código mosaico contenha muitos elementos em comum com outros rituais religiosos do Oriente Próximo, os pontos de divergência são mais significativos quando dissociam a lei hebraica dos seus precursores no campo da jurisprudência.
Dois importantes tipos de lei são aparentes no Código de Hamurabi, e foram classificados como “incontestável” ou “categórico”, e “casuístico” ou “lei específica”. A primeira dessas duas classes compreende uma lei breve e categórica que ocorre, normalmente, sob a forma de uma proibição. A segunda variedade, que é a forma dominante presente nas coleções de documentos legais até agora recuperados do antigo Oriente Próximo, estabelece especificações precisas sobre como devem ser tratadas as questões legais em particular, junto com os seus procedimentos. Essas duas classes estão refletidas na legislação do Pentateuco e, ocasionalmente, elementos do tipo de lei “incontestável” ocorrem no meio dos procedimentos da lei específica. Dessa forma, em Êxodo 21.7-11, onde são discutidas certas situações legais específicas, oriundas de uma determinação generalizada sobre o tema da escravidão feminina, a expressão “usando deslealmente com ela” (v. 8) introduz um aspecto categórico à questão dos direitos do escravo.
Apesar do código de Moisés mostrar certo grau de afinidade com outros grandes conjuntos de leis que surgiram a partir das culturas do Oriente Próximo e do Egito, ele apresenta um caráter distinto que atesta a sua superioridade sobre os códigos legais dos povos vizinhos. Seu monoteísmo determinado ordenava a devoção a Deus e o respeito ao homem, de uma maneira que não ocorre em outras legislações contemporâneas. Os ordenamentos do código mosaico não eram meramente leis que exigiam obediência, mas a personificação de uma espiritualidade que enriquecia o caráter do indivíduo cuja vida era governada por elas. A legislação hebraica atribuía um grande valor à vida humana, exigia um grande respeito para com a honra da mulher, e conferia mais dignidade à posição do escravo do que poderíamos encontrar em qualquer um dos códigos legais das outras nações do Oriente Próximo.
Ao tentar avaliar o cenário histórico da primitiva legislação israelita nunca se deve esquecer que seus próprios precursores, que tinham vivido na região de Gosén, no delta do Nilo por mais de dois séculos, possuíam suas leis e costumes baseados numa estabelecida economia agrícola e que pressupunham justas relações com os povos estrangeiros. Pode até ser que algumas das tradições desses períodos, que precederam ao de Moisés, fossem adaptadas às necessidades de um modo de vida bastante diferente e que, em seguida, tivessem sido incorporadas ao crescente corpo de leis tradicionais no período da peregrinação pelo deserto.
——- Retirado de R. K. Harrison – Tempos do Antigo Testamento.
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