As Botas de Sete Léguas – Monteiro Lobato

Naquele enorme hotel de trinta andares, há um porteiro quase do tamanho de um andar. Está sempre ali pela calçada, vestido de comprida sobrecasaca cor de cinza, com uma fila de botões de metal amarelo na frente e dois atrás. Nos dias de chuva, assim que chega um automóvel com hóspede dentro, ele abre um enorme guarda-chuva vermelho e vai ao seu encontro. Para um hotel nada mais precioso que um “hóspede!” É preciso que não tome nem uma só gota de chuva.

Estava eu, certo dia, parado diante desse hotel à espera de um amigo, e a observar as manobras do porteiro gigante com o seu guarda-chuva, quando percebi uma coisinha mexendo-se na calçada. Baixei os olhos e franzi a testa. Uma coisinha viva. Besouro? Mariposa? Não. Uma gentinha! A mais galante das gentinhas! Um dos mais famosos personagens do Mundo das Fábulas: O Pequeno Polegar!…

Muito surpreendido com o encontro, peguei-o e botei-o na palma da mão.

— Polegarzinho querido, como é que se atreve a andar assim por estas ruas tão cheias de gente, com as botas de sete-léguas ao ombro, em vez de calçadas? Este porteiro gigante, que navega por aqui, de um momento para outro te esmaga com o seu imensíssimo pé… Como quem possui uma bota de sete léguas anda assim com ela ao ombro?

Polegar explicou que viera à cidade justamente por causa das botas. Uma delas, a do pé esquerdo, havia se desar- ranjado, de modo que em vez de caminhar sete léguas a cada passo que ele dava, apenas caminhava uma. Isso o impedia de usar as botas.

— Por quê?

— Porque se dou um passo com o pé direito e avanço sete léguas, e em seguida dou um passo com o pé esquerdo e só avanço uma, o passo seguinte do pé direito já não poderá ser de sete léguas e sim também de uma. E minhas botas de sete léguas ficam assim reduzidas a botas de uma légua — o que é uma vergonha.

— Quer dizer que a bota esquerda atrasa, como um relógio…

— Isso mesmo. E vim a esta cidade para ver se algum sapateiro a conserta.

— Não sei, não sei, Polegar. Estes sapateiros daqui só sabem botar meias solas e saltos. Não sei se saberão consertar atraso de bota. Vai ficar hospedado neste hotel?

— Sim.

— Por que escolheu justamente este?

— Por ser o mais alto da cidade — trinta andares. Quero ficar bem lá em cima. Gosto muito de cuspir em gente, embora saiba que isso é uma grande falta de educação. Mas ficando no último andar, satisfaço o meu gosto e não causo mal a ninguém.

— Por quê?

— Porque o meu cuspinho é tão pequeno que seca no ar antes de alcançar alguém…

Achei muita graça naquela ideiazinha e entrei no hotel para registrar o pequeno hóspede. O gerente assombrou-se quando soube que o apartamento que pedi no trigésimo andar não era para mim, e sim para aquela figurinha de meio palmo de altura, que eu havia largado em cima do balcão e se sentara na beira duma caixa de fósforos. Expliquei-lhe o caso. “É o famosíssimo Pequeno Polegar, que veio ver se encontra quem lhe conserte uma bota que está atrasando.” O gerente fez cara de quem não entendeu coisa nenhuma, e com ar abobalhado foi abrindo o Livro de Registro.

— Nome? — perguntou e eu transmiti a pergunta ao personagenzinho, o qual respondeu de modo que também a mim me causou surpresa.

— Meu nome é Nicolau Indefonsius Nicomédio.

— Nacionalidade e idade?

— Nasci na Pérsia no ano de 1425.

— Casado ou solteiro?

— Solteiro, foi a resposta da galanteza — e suspirou. Onde encontrar uma mulher do meu tamanho, com quem casar-me?

Eu estava admiradíssimo de ele ser tão idoso e conservar o aspecto de rapazinho.

— Como é que não envelhece, Polegar?

— Porque pertenço à turma dos “personagens.” Envelhecem vocês, gente; os “personagens”, não. Peter Pan, Emília, o Gato de Botas, Capinha Vermelha, a Gata Borralheira, todos nós não somos gente, somos “personagens”. Ontem passei o dia com a Gata Borralheira; está a mesminha do tempo do baile em que perdeu o sapato.

Concluído o registro de Polegar, o gerente mandou que o levassem a um apartamento do 30.° andar, e eu fui junto para ajudá-lo no que fosse mister. Polegar chegou e já pediu banho. — Estou sujíssimo. Gastei duas semanas para chegar até aqui, porque vim com as botas ao ombro, andando pela beira dos caminhos, com muito cuidado para não ser comido pelos bichos.

— Que bichos?

— Sapos, gatos, cachorros, galinhas… Quando estou no uso das botas, não tenho medo nem de gigantes. Mas sem elas sou a maior fraqueza do mundo — e nem sei como pude chegar até aqui…

O banho de Polegar foi muito interessante. Havia no quarto um pires, que enchi d’água e serviu de piscina. Do sabonete da pia cortei um pedacinho do tamanho dum grão de arroz — e com esse sabonetinho ensaboou-se todo. Não creio que haja no mundo cena mais galante do que Polegar a ensaboar-se! Depois enxugou-se e foi para a cama. Estava cansadíssimo. Levantei a colcha e no meio daquela imensidade branca, que era o lençol, coloquei-o deitadinho, coberto com o meu lenço de seda.

— Durma bem. Amanhã voltarei para sairmos juntos em procura de sapateiro que conserte o atraso de bota.

No dia seguinte voltei cedo e ajudei-o a tomar o café da manhã: meia colherinha de café com leite, da qual só ingeriu três gotas, com uma isca de pão. Quis experimentar a geléia que veio num cálice e besuntou-se todo…

Saímos, afinal, e levei-o a uma sapataria próxima. Mostrei ao sapateiro a bota que atrasava. “Pode consertar isto?” O homem abriu a boca. Não me entendeu. De repente desconfiou, avermelhou e me pediu que saísse de sua casa porque não era “brincadeira de moleques”. Saímos, indignados, e fomos em procura de outro — e assim visitamos todos os sapateiros do bairro. Pouco adiantou. Só sabiam botar meias solas e saltos; de atraso nenhum entendia. Um deles disse: “Isso de atraso, só com os relojoeiros.”

Fui a um relojoeiro.

— O senhor, que sabe tão bem consertar os relógios, talvez nos possa dar uma arrumação nesta botinha.

— Que tem ela?

— Está atrasando seis léguas.

— O relojoeiro me olhou com tal cara que resolvi botar espaço entre mim e ele — e sumi da sua presença.

Cocei a cabeça. Procurar outro era inútil. Todos haviam de nos dai a mesma acolhida. Fiquei perplexo, sem saber o que aconselhar ao meu amiguinho.

— Não sei, Polegar. Nesta cidade parece que ninguém conserta atraso de bota, e sem que o seu par de botas funcione perfeitamente você não se arruma neste mundo. Fica sem defesa.

Passamos um minuto pensando no caso. Súbito, um clarão me iluminou o cérebro: Emília!… Sim, só Emília seria capaz de dar um jeito naquilo, como dera em tantos problemas aparentemente insolúveis.

— Polegar, disse eu — o único remédio que vejo é irmos ao Sítio do Picapau Amarelo conversar com Emília. A diabinha tem feito tanta coisa maravilhosa, que é bem capaz de fazer mais uma. Emília é uma danada!

Polegar já havia estado no Picapau Amarelo e se dava muito bem com Emília, da qual havia recebido um presentinho: o pito de barro de tia Nastácia, “para esconder-se dentro quando fosse preciso.”

— Pois vamos — foi a sua resposta. Estou com saudades dela. Ainda é marquesa?

— Sim. Casou-se com o Marquês de Rabicó e logo se separaram, mas pela lei ainda continua marquesa.

Muita gente jura que o Pequeno Polegar tinha paixão pela Emília. Pode ser. Não tenho elementos para dar opinião sobre o assunto.

Fomos ao Picapau Amarelo, onde Emília recebeu Polegar como quem recebe o namorado, e beijou-o como quem come um bombom. Depois perguntou o que queríamos.

— Consertar a botinha dele, Emília. O pé esquerdo está atrasando seis léguas a cada passo — e contei a nossa impossibilidade de encontrar sapateiro ou relojoeiro que corrigisse o atraso.

— E que tem que atrase?

— Tem que com botas assim ele perde a velocidade, que é a sua única arma neste mundo tão cheio de gatos e outros antropófagos. Não podendo escapar dos inimigos, dum momento para outro ele desaparece da cena — e vai ser um desastre. Como poderá o mundo das crianças viver sem o Pequeno Polegar?

Emília achou que era isso mesmo. Pegou da botinha e espiou dentro, cheirou-a, franziu o nariz como se houvesse sentido um cheirinho de chulé, e disse:

— Só há um jeito, que é aplicar o faz-de-conta. Bota que atrasa é desses casos que nenhum mecânico do mundo conserta, porque não é desarranjo físico e sim da mágica que há dentro. Que ideia boba a sua, de andar procurando sapateiros e relojoeiros? Se procurasse um pai-de-santo ainda vá…

Depois sorriu, e olhando para a bota fez uma carinha de dó e disse:

— Com o faz-de-conta eu arrumo isto num momento. Querem ver? FAZ DE CONTA QUE ESTA BOTA NÃO ATRASA NEM UM CENTÍMERO. Pronto! — e entregou a bota ao Pequeno Polegar. Calce e veja.

Polegar calçou a botinha e experimentou. Deu um passo com o pé direito e sumiu da nossa presença. Minutos depois reapareceu muito alegrinho dizendo:

— Está ótima! Com um passo do pé direito fui parar na casa de Nhá Veva Papuda, que fica a sete léguas daqui, e com um passo do pé esquerdo voltei. Quer dizer que minhas botas estão regulando perfeitamente!…

Emília apenas comentou com o seu célebre arzinho de dó:

— Incrível que haja no mundo quem se aperte por tão pouco…