A Rainha Mabe – Monteiro Lobato

Dona Benta, na “preguiçosa” da varanda, lia um livro inglês. Narizinho chegou e espiou o título: THE TEMPEST, Shakespeare.

— Que graça, ler um escritor tão velho!…

— Minha filha, as obras dos grandes gênios não envelhecem nunca e são para todos os tempos. E nesta obra há umas coisinhas que me encantam.

— Que coisinhas?

— A figura de Ariel, por exemplo — um silfo do ar que se escravizou a Próspero e o seguia como fiel cachorrinho.

— Quem era Próspero?

— O mágico da ilha.

— Que ilha?

Dona Benta suspirou. Melhor resumir o livro, senão a curiosidade de Narizinho não parava com as perguntas. E começou:

— Era uma vez uma ilha distante, à qual foi ter a horrenda feiticeira Sicorax, levando consigo Ariel, um geniozinho muito agradável e delicado.

— Devia ser como o saci que Pedrinho teve na garrafa. Um amor aquele saci!

— Tinha jeito. A mesma obediência, a mesma boa vontade. Mas era uma tal peste a feiticeira Sicorax, que o coitadinho do Ariel, não podendo mais suportá-la, revoltou-se. Sabe o que a diaba fez?

— Deu-lhe uma surra de vara de marmelo, aposto!

— Fendeu um pinheiro e estalou-o dentro. Imagine!

Narizinho imaginou e ficou vermelha de cólera. Não podia ouvir falar em judiação de crianças. Ariel devia ser uma criança. Dona Benta continuou:

— Diz Shakespeare que os gritos de Ariel dentro da árvore eram de romper céus e terras, e que seus gemidos comoviam até aos lobos, os quais paravam e olhavam na direção do pinheiro. E assim doze anos!

— Doze, vovó? E Ariel não morria lá dentro?

— Não, porque os silfos são imortais. Mas ao cabo de doze anos chega à ilha um grande velho de nome Próspero, muito sábio e bondoso. Ouve os gemidos do pinheiro, racha-o e, muito admirado, vê sair de dentro a encantadora figurinha do silfo.

— Estou imaginando a alegria de Ariel. Doze anos!…

— Sim, a alegria e a gratidão de Ariel foram tamanhas que ele imediatamente se escravizou a Próspero. Ficou sendo sua mão direita. Se o velho queria embravecer as ondas, ou incendiar um navio de piratas, ou adormecer uma tripulação inteira, ou salvar uma vítima na hora em que o carrasco vai decapitá-la, era a Ariel que recorria.

— Como embravecia as ondas?

— Convocando e comandando todos os silfos das águas e do ar, que são os elementos mágicos que governam os ventos e as ondas. Mas Ariel tinha um jeito de criança que só quer brincar. Queria a liberdade, e apesar de ser Próspero o melhor amo do mundo, Ariel não queria ter amo nenhum.

— Por quê?

— Para não fazer outra coisa senão brincar.

— Como seriam os brinquedos dele?

— Shakespeare conta. Ariel queria, cantando ao som do alaúde…

— Que é alaúde?

— Um instrumento de música, o pai do violão de hoje. Mas Ariel queria, cantando ao som do alaúde, ir nas rosas vermelhas embriagar-se com o perfume e lambiscar um melzinho; e queria, na hora em que as corujas começam a dar os seus primeiros pios, deitar-se e cochilar nas corolas das “primaveras.” Ou então, quando o sol está recolhendo os seus últimos raios (como tia Nastácia recolhe do varal as últimas peças de roupa), sair em excursão vagabunda, montado em um morcego. E suspirava: “Ah, como serei feliz quando for livre, e a terra inteira for minha, e forem meus todos os galhos em flor para me balançar como numa rede!”

— Coitadinho! Podia vir morar conosco e balançar-se quanto quisesse na sua rede, hein, vovó?

— Como, menina, se isso foi há séculos, no tempo de Shakespeare ou antes ainda?

— Mas se ele é imortal, deve continuar existindo…

— E como saber onde anda, ou em que estará transformado hoje? Tudo no mundo evolui; nada pára. Mas, voltando à história… Próspero adora-o, e quando o ouve suspirar pela liberdade, vem com esperanças. Alega que ainda tem uns serviços a fazer e ocupa-o ora nisto ora naquilo e só depois o libertará. E certa vez em que Ariel lhe respondeu de mau modo, ameaçou-o de pinheiro por mais doze anos.

— Malvado!…

— Ariel pede perdão e Próspero se comove, dizendo: “Meu encantador Ariel!” O tempo vai passando e afinal chega o dia da libertação. Próspero lhe dá uma última incumbência e diz: “Vai, Ariel! Desempenha mais esta missão e vai reunir-te aos livres elementos, já que queres ser um deles. E sê feliz!…”

— Que beleza de fala, vovó! Estou gostando desse velho — parece até a senhora… Por que se chama esse livro A TEMPESTADE?

— Porque foi uma tempestade que arrojou o navio de Próspero à ilha. Linda obra. Uma peça teatral de pura fantasia, cheia de mimos que parecem musgos de árvore — coisinhas delicadas. Em certo ponto há referências aos “silfos da praia”, tão leves que suas pegadas não deixam a menor marca na areia — sempre a correrem, uns a perseguirem a onda que foge, outros a fugirem da onda que avança.

— Que galanteza! Estou vendo-os fazerem isso…

— E há os anõezinhos da meia-noite, entretidos em fabricar ervas amargas que de manhã as ovelhas rejeitam. E há os que de madrugada fazem brotar nos montes de esterco os chapéus-de-sapo, e ficam muito atentos a ouvi-los crescer.

— Ouvir o crescimento dum chapéu-de-sapo, que mimo, vovó! Eu queria ser uma anãzinha — um geniozinho como Ariel. Ando enjoada de ser gente.

Não se queixe, minha filha. Você é gente, sim, mas num sítio que vence até a mesma ilha de Próspero. Que é Emília, senão uma Arielzinha? O faz-de-conta de Emília vale por todas as varas de condão. E o pó de pirlimpimpim e o superpó do Visconde? E Pedrinho com o seu caráter tão bonito? O sábio Próspero na idade de Pedrinho, devia ser igual ao meu neto.

— E a senhora é igualzinha a Próspero. Só eu é que não sou coisa nenhuma — e Narizinho fez bico, Mas Dona Benta agarrou-a ao colo, beijou-a e disse: “Você é o meu amor, a minha neta do coração. Quer mais?”

Tia Nastácia entrou nesse momento. Veio contar que Emília estava judiando do Visconde.

— Judiando, como?

— Quer fazer uma injeção nele.

— Ah, meu Deus! — exclamou Dona Benta. Lá está Emília reinando com a minha seringa. Vá correndo, Nastácia, e tome-lhe a seringa, e diga-lhe que se mexe outra vez naquilo eu a tranco dentro da pitangueira.

A negra lá se foi, pleque, pleque com os chinelos, a matutar consigo mesma: “Sinhá, coitada, parece que já está caducando. Prender Emília na pitangueira, como se árvore fosse quarto escuro. Onde já se viu isso?”

Depois daquela expansão de carinho com a neta, Dona Benta continuou a falar dos mimos que havia em Shakespeare e citou a Rainha Mabe que aparece no drama ROMEU E JULIETA.

— É outro primor de leveza e graça — disse ela — mas teve de interromper-se porque tia Nastácia reapareceu puxando Emília.

— Está aqui a criminosa. Não sei como não quebrou a sua seringa, Sinhá — e entregou à Dona Benta a seringa com que Emília estivera reinando. Dona Benta guardou-a na cesta de costura.

— Injeção de que estava fazendo no Visconde, Emília?

— De vitaminas. Ele anda muito murcho.

— Mas que droga ia usar?

— Uma que descobri…

Narizinho interveio.

— Deixe-a, vovó. São drogas faz-de-conta. Continue a história da Rainha Mabe.

Dona Benta continuou:

— Quem fala na Rainha Mabe, em ROMEU E JULIETA, é o personagem de nome Mercúrio. Diz para Romeu: “Oh, bem vejo que a Rainha Mabe te visitou esta noite!” É a pequenina fada dos sonhos. Tem o tamanho duma água-marinha de anel e numa pequeniníssima carruagem costuma passear pelo nariz dos que dormem bons sonos. As rodas desse carrinho têm os raios feitos de cambitos de mosca; o toldo é de asa de cigarra; as rédeas são tecidas de teia-de-aranha; e os arreios, feitos de luar. O cocheiro é um mosquitinho de libré castanha, tão pequeno que mais parece não sei o que…

— Borrachudo! — gritou Emília. Mosquitinho pequeno assim, só o borrachudo.

— O chicotinho que ele usava — continuou Dona Benta, era um pêlo finíssimo atado à ponta dum osso de pernilongo.

— Que galanteza, vovó! E quem construiu semelhante miminho de carruagem?

— Conta Shakespeare que quem a burilou numa casca de avelã foi o marceneiro Serelepe, de combinação com mestre Besouro, o qual sempre foi o serralheiro das fadas desde os tempos mais remotos.

— E que faz a Rainha Mabe, vovó?

— Coisas lindas! Todas as noites — diz Shakespeare — galopa em sua carruagenzinha pela cabeça dos namorados, desabrochando os mais lindos sonhos de amor. Se corre pela perna dum político que está cochilando numa preguiçosa, o homem sonha com a vice-presidência da República ou o lugar de primeiro-ministro. Se corre por cima dos dedos de um advogado, ele sonha com fabulosas remunerações das causas ganhas. Se passa por cima dos lábios duma jovem apaixonada, ela sonha com beijos e mais beijos; e se nesses momentos sente nesses lábios um gostinho de qualquer coisa, comida de sal ou doce, dá ordem ao cocheirinho para chicoteá-los sem dó.

— Que graça! — exclamou a menina.

— Outras vezes a Rainha Mabe faz cócegas nas ventas dum figurão que já ganha vinte contos por mês, e ele sonha com um emprego em que não faça nada e ganhe o dobro. E se rapidazinha passa Mabe pela nuca dum soldado, ele sonha com batalhas, rufo de tambores, clarinadas, inimigos passados a fio de espada e mais burrices da guerra.

— Muito bem, vovó. Tudo da guerra é burrice. E que mais?

— Diz ele também que é a Rainha Mabe quem emaranha à noite a crina dos cavalos, e com isso anuncia desgraça.

— Nesse ponto Shakespeare está errado! — berrou Emília. Quem mexe com a crina dos cavalos à noite é o saci. Só os ingleses não sabem disso.

— Que mais, vovó? — pediu Narizinho.

— Mais? Diz ele ainda que Mabe visita as meninas na cama e lhes transforma os sonhos em pesadelo de casamento…

— Sim senhora, vovó! Nunca pensei que houvesse uma rainha tão útil e trabalhadeira. Essa cá me fica. Mabe, Mabe, Mabe, a rainha que não descansa nunca e produz todas as coisas gostosas que há no mundo! Viva, viva a Rainha Mabe!…

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Isso foi numa tarde. Na tarde seguinte, indo ao pomar, Emília encontrou Pedrinho ferrado no sono debaixo da “mangueira grande”, e viu qualquer coisa passeando sobre a testa dele. Emília vinha do sol, de modo que ao entrar para a sombra ficou sem ver bem. Pareceu-lhe que o que estava na testa de Pedrinho fosse uma cigarra. Aproximando-se mais, viu que era… que era a carruagenzinha da Rainha Mabe! Tal qual Dona Benta lera em Shakespeare: casca de avelã, toldo de transparente asa de cigarra, borrachudo vestido de libré marrom segurando o chicotinho de pêlo atado em osso de pernilongo. Tudo exato. A carruagem dava voltas pela testa de Pedrinho, pelo nariz, pelas orelhas, pelas faces, e ia e vinha, e durante todo esse tempo o menino sorria aquele mesmo sorriso de anjo das crianças novas. A ex-boneca ajoelhou-se diante dele e absorveu-se na contemplação do maravilhoso espetáculo. Estava vendo o que ninguém no mundo ainda vira: a Rainha Mabe a provocar sonhos numa criatura! Que sonhos seriam? E Emília pôs-se a imaginar altos sonhos de grandeza e vitória — os meninos têm a alma guerreira e dominadora.

Mais de quinze minutos esteve a carruagenzinha a passear por ali, até que… Zuqt! deu um arranquinho e lá se foi pelos ares, que nem um besouro dos gordos.

Emília bateu palmas e gritou “Viva! Viva!” palmas e vivas que despertaram o menino, o qual sentou-se, espreguiçou-se e lambeu os beiços.

— Que lindos sonhos teve você, Pedrinho! — disse Emília. Sei tudo, vi tudo cá de fora. Posso descrever tudo quanto você sonhou.

Pedrinho abriu a boca, espreguiçando-se de novo.

— Diga então com que sonhei. Se acertar, ganha um presente.

Emília pensou. Pensou em triunfos, vitórias, coisas tremendas. Mas vendo pela segunda vez Pedrinho lamber os beiços, teve uma inspiração genial e disse:

— Pedrinho: você sonhou com o tijelão em que tia Nastácia esteve batendo clara com açúcar para fazer suspiros!…

Pedrinho arregalou os olhos com assombro. Depois disse, rindo-se:

— Você é mesmo uma peste, Emília! Pois há de crer que foi exatamente com isso mesmo que sonhei! — e levantando-se foi correndo para a cozinha. Sempre que tia Nastácia fazia suspiro, guardava o tijelão para Pedrinho lamber…