Mitos vs. lendas vs. religião

Assim como uma pérola é formada em torno de um grão de areia, assim também uma lenda é considerada como sendo construída em torno de um grão de verdade. A lenda de Robin Hood, por exemplo, parece ter derivado de uma personagem histórica real. A substância da narrativa que é acrescida à medida que ela é passada adiante pelas gerações, enfeitada e exagerada no caminho, em algum ponto adquire as propriedades de lenda. É provável que seja escrita, porque a palavra deriva do gerúndio (do verbo) latino, legere, que significa “ser lido”.

Mitos, no entanto, são construtos imaginativos, simbólicos. Ninguém acredita que Hefesto de fato existiu. Ele se apresenta como uma representação das artes de metalurgia, manufatura e artesanato. Que essa representação seja retratada como escuro, feio e manco nos tenta a interpretar e explicar. Talvez tenhamos notado que os verdadeiros ferreiros, embora fortes, muitas vezes são escuros, cheios de cicatrizes e musculosos ao ponto de ter uma aparência volumosa e alarmante. Talvez as culturas exigissem que os saudáveis, altos e inteiros fossem sempre levados para as fileiras dos combatentes e que, desde o início, os meninos indecisos, mancos e baixos fossem treinados nas forjas e oficinas, em vez de treinados para a batalha. Qualquer deus dos ferreiros imaginado pela cultura coletiva, portanto, provavelmente refletiria o arquétipo humano que eles já conheciam. Os deuses desse tipo são criados à nossa imagem, não o contrário.

Embora os mitos e as personagens míticas sejam mais simbólicos que históricos, sofreram a mesma remodelação ficcional e os mesmos embelezamentos que as lendas mais factualmente enraizadas. Elas também foram escritas, e os mitos gregos, especialmente graças a Homero, Hesíodo e os que se seguiram, foram registrados e detalhados de modo a nos dar as linhas do tempo, genealogias e história de personagens que nos permitem contar histórias do tipo que tentei neste livro.

Mitos, para falar simples e obviamente, lidam com deuses e monstros que não podem ser observados ou apontados. Pode ser que alguns membros da população antiga da Grécia acreditassem em centauros e dragões aquáticos, deuses do mar e deusas do lar, mas teriam dificuldades em provar a existência deles e em convencer outros. A maioria desses que contaram e recontaram os mitos estaria consciente, acho, em algum nível, de que estavam contando histórias de ficção. Podem ter pensado que o mundo tinha sido, em alguma época, povoado de ninfas e monstros, mas podiam estar bastante certos de que esses entes não mais existiam.

Preces, rituais e sacrifícios, bem como os impostos pagos às forças invisíveis da natureza, eram coisas diferentes. Em algum ponto, o mito se torna culto, se torna religião. Passa de histórias contadas ao pé do fogo a um conjunto sistematizado de crenças às quais se deve obediência. Como os mitos se codificam em escrituras, liturgias e teologias é assunto para um outro livro e está bem além do meu propósito. Podemos, no entanto, dizer que os gregos antigos não escreveram textos de revelação semelhantes à Bíblia ou ao Corão. Esses eram “mistérios” e iniciações de diversos tipos, que envolvem estados de êxtase, talvez não diferentes dos xamanísticos vistos hoje em outras partes do mundo, que têm boa quantidade de templos e santuários. É verdade, também, que até na grande época ateniense da razão e da filosofia, um homem como Sócrates podia ser executado por motivos religiosos.

Os gregos

Sempre foi um erro pensar nos gregos como seres humanos superiores só porque eram dotados de saber esclarecido e benevolência racional. Encontraríamos na Grécia Antiga muita coisa estranha e desagradável para nós. As mulheres não podiam desempenhar nenhum papel efetivo nos negócios fora de casa, a escravatura era endêmica, as punições, duras, e a vida podia ser brutal. Dioniso e Ares eram os deuses deles tanto quanto Apolo e Atena. Pan, Priapo e Poseidon, também. O que torna os gregos atraentes para nós é que eles parecem ser tão sutilmente perceptivos e animadamente conscientes desses lados diferentes de suas naturezas. “Conhece a ti mesmo”, estava esculpido na antecâmara do templo de Apolo em Delfos. Como povo – se o lemos através dos mitos tanto quanto em seus próprios escritos –, os gregos fizeram o máximo que puderam para obedecer a essa máxima antiga.

Então, embora estejam longe de perfeitos, os gregos antigos parecem ter desenvolvido a arte de ver a vida, o mundo e a si mesmos com maior sinceridade e clareza não velada do que a maior parte das civilizações, inclusive, talvez, a nossa.

Localização é tudo

Grécia. O que é e onde fica isso? Não era nenhum tipo de nação na época das ninfas. Há uma massa terrestre soberana, politicamente identificável, e uma coleção de ilhas que agora podemos visitar, mas o mundo grego da mitologia inclui grande parte da Ásia Menor, incorporando a Turquia, partes da Síria, do Iraque e do Líbano, além de regiões do norte da África, Egito, Bálcãs, Albânia, Croácia e Macedônia. A história de “Árion e o golfinho” nos leva para o sul da Itália e outros mitos tratam de povos que poderiam às vezes ter sido descritos como helênicos, jônicos, argivos, áticos, trácios, eólios, espartanos, dóricos, atenienses, cipriotas, coríntios, tebanos, frígios, sicilianos, cretenses, troianos, beócios, lídios… e muitos mais. Sei bem que é tudo muito confuso e provavelmente irritante para qualquer um que não seja um estudioso ou um cidadão grego. Há o mapa para consultar, mas, fora isso, eu realmente espero que você não esquente a cabeça tentando entender tudo. Deus sabe que torrei a minha o suficiente, e não desejo que a mesma confusão preocupe você.

Fontes antigas

Recontar as histórias míticas da Grécia é pisar nas pegadas de gigantes. No prefácio deste livro, citei as observações de Edith Hamilton de que a mitologia grega é “a criação de grandes poetas”. Ao mesmo tempo que suas origens mais profundas estão na pré-história e no folclore não registrado, ao preparar o material para este livro consegui, como qualquer um conseguiria, consultar o primeiríssimo poeta da tradição ocidental, que por acaso era grego e cujo tema por acaso era a mitologia.

Existe um tesouro de fontes sobreviventes que mapeiam a cronologia da mitologia grega desde a criação do universo e o nascimento dos deuses até o final de sua interação e interferência nos negócios humanos. Começa com HOMERO, que pode ou não ter sido um único bardo jônico (cego), mas cujo nome está ligado aos dois grandes poemas épicos, a Ilíada e a Odisseia, que foram unidos em alguma época, acha-se que no século VIII a.C. O cenário é o cerco de Troia e suas consequências, mas Homero faz incontáveis referências úteis a mitos anteriores. Seu contemporâneo aproximado, o poeta HESÍODO (sem dúvida, um indivíduo), fez o máximo que pôde para criar o que se pode chamar de uma linha do tempo para a mitologia grega. Sua Teogonia (Nascimento dos deuses) narra a criação, o surgimento dos Titãs, a origem dos deuses e o estabelecimento do Olimpo. Seu Os trabalhos e os dias conta as grandes histórias da criação humana de Prometeu e Pandora, além de dispor as Cinco Idades da humanidade – Ouro, Prata, Bronze, Heroica e Ferro.

Outros poetas, escritores e viajantes gregos e subsequentes romanos preencheram as lacunas, elaboraram, bordaram, fundiram, confundiram e simplesmente inventaram histórias gregas míticas que descendiam principalmente do plano genealógico de Hesíodo. Dessas, a Biblioteca, um grande dicionário de mitos, talvez seja a fonte mais valiosa. Originalmente, achava-se que tinha sido obra do estudioso APOLODORO DE ATENAS, que viveu no século II a.C., mas isso agora é questionado; hoje em dia, o trabalho é atribuído a um desconhecido que se chama pelo apelido depreciativo de PSEUDO-APOLODORO e data do século I ou II d.C. Outras fontes atraentes e/ou confiáveis – todas elas provavelmente do século II d.C. – incluem o viajante e compilador de guias grego PAUSÂNIAS, os “roman-cistas” LONGUS (que escreveu em grego) e APULEIO (que escreveu em latim) e o escritor latino de prosa HIGINO.

Acima deles todos está o poeta OVÍDIO (43 a.C.-17 d.C.), cuja obra Metamorfoses conta sobre aqueles mortais, ninfas e outros que foram transformados pelos deuses em animais, plantas, rios ou até mesmo pedras como punição ou por piedade. Suas outras obras, principalmente A arte de amar e Heroides [Heroínas] também contêm reformulações do mito grego, usando sempre os nomes latinos dos deuses – “Jove” ou “Júpiter” para Zeus, “Diana” para Ártemis, “Cupido” ou “Amor” para Eros e daí por diante. Ovídio era prolífico, profuso, irreverente, picante e cinematográfico em sua energia e mudança irrequieta de pontos de vista. Fica claro, a partir da riqueza de referências em suas peças e poemas, que Shakespeare, entre muitos outros escritores e artistas, foi imensamente influenciado por ele. Ovídio tinha muito prazer em acrescentar, subtrair e inventar, e isso me influenciou e encorajou a ser também – digamos, imaginativo? – em algumas de minhas narrações.

Fontes modernas

Muitas crianças, dos dois lados do Atlântico, cresceram, como eu, com as coleções clássicas da mitologia grega de quatro norte-americanos duradouramente populares. Dois eram escritores do século XIX: Nathaniel Hawthorne, que nos deu Livro de maravilhas para meninas e meninos (1851) e sua continuação, Tanglewood Tales (1953) [Contos de Tanglewood]; e Thomas Bulfinch, cujo A idade da fábula, mais tarde incorporado a O livro da mitologia, passou por dúzias e dúzias de edições durante seus 160 anos de vida. O século XX foi dominado pelo incomparável Mythology: Timeless Tales of Gods and Heroes (1942) [Mitologia: Eternos contos de deuses e heróis], de Edith Hamilton, que por sorte ainda está em catálogo, e pelo sempre-verde Heroes, Gods and Monsters of the Greek Myths (1967) [Heróis, deuses e monstros da mitologia grega], de Bernard Evslin. Entre os equivalentes britânicos estão The Adventures of Ulysses (1808) [As aventuras de Ulisses], de Charles Lamb, e Favourite Greek Myths (1905) [Mitos gregos preferidos], de L. S. Hyde, este último um grande favorito meu, quando eu era menino.

Por mais estimáveis que todos esses livros sejam, e ainda são, eles tendem a timidamente fazer rodeios ou censurar os episódios eróticos e violentos que compõem uma parte tão essencial do mundo mitológico grego. O poeta e romancista Robert Graves não teve esses escrúpulos, mas seus dois volumes de O grande livro dos mitos gregos, excentricamente estruturados e narrados, embora meticulosos, eruditos e inspiradores, mapeiam um curso mais literário e mitográfico – muitas vezes visando enfatizar sua obsessão com os cultos a uma “deusa branca”. As abordagens de James Frazer e dos que vieram depois, inclusive Joseph Campbell, por mais valiosas que sejam, têm outros assuntos a tratar, menos especificamente gregos e mais acadêmicos, psicológicos, comparativos e antropológicos. Hoje em dia, há muitos sites on-line dedicados a levar os jovens a “descobrirem” a mitologia grega – embora você possa achá-los um pouco superficiais, depois de ler aqueles que descrevem Cadmo como “um mano”, Hermes como “legal” e Hades como “um cara com problemas”.

O website (em inglês) que eu recomendaria mais fortemente é theoi.com – um recurso simplesmente magnífico, inteiramente dedicado à mitologia grega. É um projeto holandês e neozelandês que contém mais de 1.500 páginas de texto e uma galeria de 1.200 imagens abrangendo pinturas e vasos, esculturas, mosaicos e afrescos sobre temas da mitologia grega. Oferece indexação completa, genealogias e títulos de capítulos. A bibliografia é excelente, e pode conduzir a pessoa através de uma busca labiríntica, pulando de fonte a fonte como um colecionador de borboletas animado.

Escrita dos nomes

Como muitos mitos gregos e seus personagens chegam a nós através de escritores latinos, e como nosso alfabeto é mais romano do que grego, o modo de escrever os nomes das personagens e dos locais é mais uma questão de acerto e erro. Eu poderia ter escolhido oferecer apenas os escritos em grego, de modo que Kerberos, Iason e Kadmos fossem usados em vez de Cérbero, Jasão e Cadmo. Será que eu deveria botar “Cronus” em vez de Cronos? Talvez devesse ter preferido “Aktaion” sobre Acteon? “Narkissos” parece ridículo, quando todos conhecemos Narciso tão bem. No fim, fui inconsistente, mas consistentemente inconsistente.

Pronúncia dos nomes em inglês

Aconselho que você pronuncie cada nome na sua cabeça do jeito que pareça mais confortável. A letra grega kappa cobre sons duros de “k” e a letra chi cobre os fricativos mais aspirados e guturais encontrados no “ch” de “loch” e “Bach”, embora estejamos muito seguros pronunciando todas as instâncias de “ch” como se fossem o som “k” padrão. O eta, ou “e” grego longo, tinha som de “ee” quando me ensinaram grego antigo na escola – de modo que a letra propriamente dita era pronunciada como “eater”. Hoje em dia, ensinam que rima com “waiter”. Entendo que essa pronúncia moderna entrou no inglês norte-americano mais rapidamente do que no britânico. Os norte-americanos tendem a dizer “baoter” por beta, onde nós dizemos “beater”, por exemplo.

Assim, será Tétis “Theetis”, “Thettis” ou “Thaytis”? É “Maytis”, “Mettis” ou “Meetis” para Métis e “Hearer” ou “Hairer” para Hera? “Ahr-ease” ou “Air-ease”, para Ares? O gregos modernos pronunciam de um jeito, os acadêmicos ingleses e norte-americanos, de outro, e o uso comum, na medida em que haja um uso comum, segue seu caminho. Qualquer um que diga que há um certo ou errado definitivo pode ser questionado, na minha opinião.