Os cananeus viviam na Palestina antes da chegada dos hebreus. Até 1928, nosso conhecimento dos cananeus limitava-se a três fontes. Uma era a obra arqueológica em cidades da Palestina, como Jericó, Megido e Betei. Essas cidades produziram restos de construções pré-israelitas, cerâmica, utensílios domésticos, armas e artigos similares — nada, porém, de inscrições. Por certo os eruditos dão valor a esses objetos, mas a evidência escrita geralmente é a ferramenta mais importante na reconstrução do passado. No final das contas, o valor histórico das inscrições excede em peso a evidência física. Aqui temos em mente coisas como mitos, lendas, crônicas, textos legais, e registros comerciais.
Nossa segunda fonte de informação sobre Canaã foi a literatura de povos contemporâneos fora de Canaã. Um bom exemplo disso temos nas Cartas de Tell el-Amarna, enviadas por príncipes cananeus ao faraó do Egito. Essas cartas foram escritas principalmente a Amenófis m e seu filho Akhnaton, nos anos 1400 ou nos começos dos anos 1300 a.C. Conforme veremos, Canaã foi uma extensão do poder egípcio durante grande parte da história dos cananeus.
Uma tardia história egípcia (undécimo século antes de Cristo) dá-nos outra visão de Canaã. A história relaciona-se com a viagem de Wenamon, oficial do Templo de Amun, em Carnaque, a Biblos, na Fenícia, a fim de obter madeira para o barco sagrado de seu deus. A história sugere que o controle do Egito sobre Canaã havia diminuído severamente desde o tempo das Cartas de Tell el-Amarna, porque os cananeus trataram a Wenamon com desrespeito e demoraram a satisfazer ao seu pedido. Vários textos acadianos do Leste e textos hititas do Norte também nos fornecem fatos interessantes acerca dos costumes cananeus. Por exemplo, as leis hititas sáo muito específicas e parecem tratar de toda ofensa civil possível. Os textos acadianos descrevem esmerados rituais e sacrifícios do templo. Esses documentos sugerem que as culturas dessa região eram muito sofisticadas.
Nossa terceira fonte de conhecimento acerca de Canaã e seu povo é o Antigo Testamento. As Escrituras dizem que os hebreus expulsaram os cananeus de sua terra e em alguns casos eliminaram cidades inteiras (Josué 11:10-12:24). Mesmo uma rápida leitura mostra que os cananeus nunca se equipararam aos escritores do Antigo Testamento. Os escritores do Antigo Testamento não pouparam esforços para pintar os cananeus como um povo mau e imoral, e sua religião como estranha e execrável (Juizes 2:2; 10:6-7). O relatos de um ataque inclemente convence alguns eruditos modernos de que o Antigo Tes tamento não é indevidamente tendencioso contra os cananeus, mas surpreendentemente preciso e objetivo, e não exagera a verdade quando fala desse povo. Uma descoberta arqueológica no Norte da Síria em 1928 confirma o retrato bíblico dos cananeus. Esta descoberta proporcionou vastas e novas informações sobre a civilização cananéia.
Na primavera de 1928, um camponês lavrador sírio, ouviu uma lâmina de sua máquina de arar a terra bater no que ele supunha fosse uma pedra. Olhando de mais perto, viu que a lâmina havia cortado o topo de um buraco de tamanho fora do comum; parecia um túmulo antigo. Esse descobrimento acidental deu início a uma movimentada escavação de uma cidade cananéia, que forneceu fascinantes objetos históricos e os restos de diversos importantes monumentos. À medida que os arqueólogos franceses cavavam mais fundo, encontraram grande quantidade de textos antigos escritos em tábulas de argila. Dar-se-ia o caso de haverem achado literatura cananéia, escrita pelos cananeus em sua língua materna? A resposta era positiva.
A CIDADE DE UGARITE
O nome antigo desse sítio era Ugarite. Embora documentos como as Cartas de Tell el-Amarna mencionassem esse nome, os estudiosos da Bíblia não conheciam a localização exata da cidade. O descobrimento de 1928 solucionou o problema. O nome árabe moderno desse território situado na Síria é Rás Xamra.
A. Descrição da Área. O que resta de Ugarite hoje é um grande monte redondo de terra de cerca de 20 m de altura, mais de 900 m de largura, e quase 640 m de extensão. Está localizada a cerca de oitocentos metros da costa mediterrânea, em linha com a crista mais oriental da ilha de Chipre. Os cientistas começaram a escavar a área em 1929 e continuam até ao presente, parando somente durante a Segunda Guerra Mundial.
B. Textos Ugaríticos. Os eruditos logo decifraram os textos de Ugarite e os traduziram para diversas línguas modernas. Isso se deveu em grande parte aos esforços do alemão Hans Bauer, e dos franceses Charles Virolleaud e Edouard Dhorme. Poderíamos dizer que os textos ugaríticos eram “cosmopolitas”, visto que os escritos foram encontrados em sete diferentes línguas: egípcia, ciprominoana linear B, hitita, hurrita, suméria, acadiana e ugarítica. Assim, as tábulas ugaríticas continham formas de escrever hieróglifa (egípcio), cuneiforme (hitita), e linear (as cinco restantes).
Os pesquisadores verificaram que a maioria desses textos era escrita em silábico acadiano, que eles conheciam das cidades da Mesopotâ mia. O escrito acadiano era usado para a maior parte dos documentos comerciais, legais, administrativos e internacionais. Mas os arqueólogos descobriram que um único escrito alfabético ugarítico era usado para registrar os mitos, as epopéias e as lendas da cidade. A escrita cuneiforme tradicional usa centenas de símbolos diferentes, mas em muitas tábulas de Ugarite apareciam somente 30 símbolos, sugerindo que eles usaram um sistema semelhante a um alfabeto. As palavras muitas vezes eram separadas por um símbolo, algo que os arqueólogos não tinham visto noutras tábulas cuneiformes. Em sua maioria, as palavras eram construídas de três consoantes básicas, o mesmo padrão adotado por línguas semíticas como hebraico, aramaico e fenício. Além disso, alguns textos ugaríticos eram escritos da direita para a esquerda, enquanto o cuneiforme é quase sempre escrito da esquerda para a direita. Essas peculiaridades convenceram os pesquisadores de que as tábulas de Ugarite apresentavam-lhes um alfabeto até então desconhecido.
C. Outros Dados Arqueológicos. Os arqueólogos notaram cinco níveis diferentes no monte de ruínas de Ugarite, e encontraram sinais de ocupação humana em cada nível. O Nível Cinco (nível do chão) continha evidência de uma pequena cidade fortificada cuja fundação remontava a um grande dilúvio. Neste nível não se encontrou nenhuma cerâmica. O Nível Quatro e parte do Nível Três datam do Período Calcolítico. Aqui os escavadores encontraram cerâmica. O Nível Três vai até a Idade do Bronze Primitiva, cerca de 1.000 anos antes de Abraão. Aqui os escavadores encontraram sinais de trabalho com metais. As camadas do alto, Níveis Um e Dois, levam-nos à idade áurea de Ugarite, 1550-1200 a.C, que vai do período patriarcal do Antigo Testamento ao tempo dos juizes. Ugarite foi destruída no fim desse período, evidentemente vítima de terremoto e de invasores que os escribas chamaram de “Povos do Mar”. Há somente vestígios de estabelecimento ocasional em Ugarite depois de 1200 a.C.
Os escavadores desenterraram dois templos consagrados ao deus Baal e a seu pai Dagom. Esses templos são semelhantes em estrutura àquele que Salomão construiu. Ambos os templos possuem salas que podiam ter sido usadas como o lugar santo e o santo dos santos do templo de Salomão. Os arqueólogos desenterraram diversos outros edifícios em Ugarite, alguns dos quais continham bibliotecas que nos proporcionam a maioria de nossa literatura ugarítica. Os escavadores descobriram ainda o que deve ter sido um suntuoso palácio real, com 67 saias e vestíbulos, medindo 119 m por 82 m. Os pesquisadores descobriram que muitos habitantes de Ugarite construíam as criptas funerárias diretamente debaixo de suas casas. Canais levavam água do nível do chão para as tumbas. Crêem alguns arqueólogos que esses canais eram usados para fazer ofertas aos mortos. Os cientistas também encontraram jarros de armazenagem com mais de metro de altura, e diversas tigelas douradas muito bonitas, que certamente eram obra de ourives profissionais. Uma tigela apresentava o quadro esculpido de um caçador numa carruagem apontando suas setas para gazelas e touros. Sob o piso de uma casa ugarítica foram encontradas 74 armas e ferramentas. As inscrições em cinco desses objetos mostram que a coleção pertencia a um sumo sacerdote chamado rb khn. Evidentemente, os adoradores antigos davam essas ferramentas e armas como ofertas ou como presentes pelas bênçãos recebidas e pelos rituais. Os arqueólogos descobriram também diversas estátuas e objetos de culto, dentre eles alguns amuletos pequenos dourados na forma de mulheres nuas, certamente relacionando-se com o culto da fertilidade. Na tampa de uma caixa de marfim, os escavadores encontraram um retrato de uma deusa com os seios descobertos, segurando diversas espigas de cereal em cada mão, e um bode de cada lado apoiado na$ pernas traseiras, tentando mordiscar o grão. Outra placa de marfins traz um retrato de uma deusa amamentando duas crianças. Esta é uma característica familiar da literatura e da arte religiosa do Oriente Próximo. Os mortais e os deuses menores deviam receber poder e prestígio sugando os seios de uma deusa. Foram encontradas ainda algumas estatuetas de bronze do deus Baal, mostrando sua mão esquerda abaixada e a direita levantada, como se estivesse pronto para desferir um golpe ou proferir um brado de guerra. Uma placa de pedra maior exibia um retrato de Baal usando capacete e saia e brandindo um bastão ou maça na mão direita. Na mão esquerda ele segura uma lança.
GOVERNO CANANEU
Diferente do Egito, da Mesopotâmia ou da Ásia Menor, a primitiva Canaã não tinha um governador único cujo poder se estendesse a todo o país. Os cananeus nunca produziram um faraó ou rei famoso. Cada cidade era governada por um regulo. A associação dos governadores exercia o poder sobre toda a Canaã.
A. Conceito de Cidade-Estado. Canaã compunha-se de diversas cidades-estados, de governo autônomo e, até certo grau, autossuficientes. Um rei, mais propriamente chamado senhor, governava em cada cidade-estado. Na Idade Média do Bronze (2000-1500 a.C.) e na Recente Idade do Bronze (1500- 1100 a.C), cada um desses territórios geralmente estava sob o controle real dos egípcios ou dos neo-hititas. Note-se que o capítulo 12 do livro de Josué arrola 31 reis com os quais os israelitas combateram na conquista de Canaã.
B. Reis de Ugarite. É difícil estabelecer exatamente quando, e por quem, teve início a dinastia dos régulos. Os reis da Idade do Bronze Recente empregavam um selo com a seguinte inscrição: “Yaqarum filho de Niqmad Rei de Ugarite.” Com toda probabilidade esse selo ou sinete remonta ao décimo nono século antes de Cristo.
Os estudiosos da Bíblia não sabem quem proveu a liderança da comunidade nos poucos séculos que se seguiram. Mas podemos rastrear os governantes do décimo quarto século antes de Cristo até à destruição de Ugarite, três séculos mais tarde. Esses últimos governantes são, na ordem de sucessão:
- Amixtamru I
- Niqmad II
- Ar Caiba
- Niqmepa
- Amixtamru II
- Ibiranu
- Niqmad III
- Hamurapi
Pelo menos os dois primeiros foram vassalos do Egito e escreviam com regularidade a esse país, pois disso encontramos evidência das cartas de Amarna. Niqmad II (ou Niqmadu) foi contemporâneo do famoso faraó Akhnaton, também conhecido como Amenófis IV (c. 1360 a.C.)- Os nomes de Akhnaton e de sua igualmente famosa esposa, Nefertiti, aparecem em vasos de alabastro encontrados em Ugarite. Lisonjeado pela promessa de mais terra, Niqmad II transferiu sua lealdade do faraó egípcio para um rei hitita, Xupiluliúma. Niqmepa desfrutou um dos mais longos reinados de todos os governantes ugaríticos (c. 1336-1265 a.C). Ele tomou o partido dos hititas contra o faraó Ramessés II, na famosa batalha de Cades em 1285 a.C. A luta terminou num empate e as nações rivais assinaram um tratado de paz. Ugarite beneficiou-se desse pacto. O quinto rei, Amixtamru II, era filho de Niqmepa. Amixtamru é lembrado por um registro escrito de seu casamento e divórcio. Sua esposa era adúltera. Os hititas forçaram Amixtamru II e seu filho, Ibiranu, a prover dinheiro e soldados para defendê-los contra uma nova ameaça que se levantava — os assírios. Estes orientais eram conduzidos por Salmaneser I e Tuculti-Ninurta I. Os reinados dos últimos reis ugaríticos, Niqmad III e Hamurapi, foram breves e destituídos de importância. Durante o período deles um inimigo ocidental, os “Povos do Mar”, parece ter-se tornado uma ameaça mais perigosa do que os assírios, embora alguns desastres naturais, como terremotos, possam ter enfraquecido as cidades-estados. Os “Povos do Mar” atacaram, incendiaram, dizimaram e sepultaram a cidade de Ugarite em 1200 a.C., mais ou menos. E assim ela permaneceu até que foi redescoberta, em 1928, pelo lavrador sírio.
A TERRA DE CANAÃ
Conquanto a Bíblia não mencione Ugarite, ela faz parte da terra de Canaã. Examinemos a área mais ampla de Canaã conforme descrita no Antigo Testamento.
A. O Significado de Canaã. Os eruditos, ao estabelecerem as fronteiras do território indicado pelo termo canaã, ainda discutem o significado da palavra. No século dezenove, pensava-se que canaã se relacionava com o verbo semítico cnc, que em árabe significa “curvar, ser humilde”, e em hebraico, ser subjugado, humilhar-se”. Assim, interpretavam Canaã como “terra baixa”. Os linguistas abandonaram essa maneira de pensar, mas não podemos menosprezar as palavras de Gênesis 9:25: “Maldito seja Canaã; seja servo dos servos a seus irmãos.” E difícil não perceber aqui a idéia de inferioridade. Neste trecho, Canaã pode de fato vincular-se à raiz hebraica cnc, “ser humilde”. Na sua maioria, hoje os estudiosos acham que canaã se relaciona coifl a palavra cuneiforme quinahu, que nos vem através dos hurritas da Mesopotâmia. Essa palavra significa “roxo avermelhado”, e se refere ao caramujo múrice encontrado nas praias do Mediterrâneo, o qual secreta uma tinta roxa. A tinta era um dos principais produtos de Canaã; daí ela ser chamada “a terra da tinta roxa”. Os fenícios usavam a tinta na indústria do vestuário. Em verdade, a palavra cananéia para fenício — foinique — aproxima-se muito da palavra foi-nix, que significa “roxo avermelhado”.
B. Fronteiras Cananéias. É um problema definir canaã. De igual dificuldade é determinar as fronteiras do país. 1. Evidência Bíblica. A primeira e clara declaração bíblica sobre o assunto encontra-se em Gênesis 10:19: “E o limite dos cananeus foi desde Sidom, indo para Gerar, até Gaza, indo para Sodoma, Gomorra, Admá e Zeboim, até Lasa” (na região do mar Morto?). Tomando por base este versículo, podemos definir Canaã como uma comprida e estreita área paralela à praia sudeste do Mediterrâneo, cobrindo áreas povoadas pelos sidônios e filisteus. Não há designação de fronteira oriental, mas achamos que era o rio Jordão. 2. Referências Acadianas. A promessa de terra que Deus fez a Abraão assume maior significado quando comparada com um texto acadiano encontrado em Ugarite. O texto é uma carta do rei hitita Hatusilis III (século treze a.C.) ao seu vassalo, Niqmepa, de Ugarite-Niqmepa queixara-se ao rei hitita que os viajantes mercadores vindos de Ur estavam tornando difícil a vida para os residentes de Ugarite. Alguns estudiosos acham que Abraão era mercador itinerante com vastos interesses comerciais. Seus 318 homens (Gênesis 14:14) podem ter sido guarda-costas dos mercadores itinerantes. Para aliviar a situação em Ugarite, o rei hitita impôs diversas restrições aos mercadores. Uma delas era que só poderiam visitar Ugarite por ocasião da colheita. Os mercadores também estavam proibidos de comprar terras ou propriedades com os lucros de seus negócios. Se Abraão era um mercador proibido de adquirir imóveis, então a promessa que lhe oferecia “toda essa terra” assume novo significado. O homem diz: Tu não podes ter esta terra. Deus diz: Vou dar-te esta terra os israelitas penetraram lentamente. Alguns acham que a descrição dessas “guerras santas” ou “guerras de extermínio” brotam da imaginação de escritores de data posterior, que distorceram os acontecimentos históricos. Convém, igualmente, examinar os acontecimentos como históricos, porém ocorridos numa fase primitiva do desenvolvimento da consciência dos israelitas. Mas, talvez, a conquista de Canaã seja mais bem compreendida à luz destes fatos:
A. Concessão Misericordiosa. A terra de Canaã foi dada aos israelitas na base da misericórdia de Deus, e não por méritos do povo. Não encontramos indicação alguma de que os israelitas se considerassem um povo superior. O Deus deles era superior — o único Deus.
B. Ordens de Deus. Os israelitas atacaram Canaã porque Deus ordenou. Israel não deu o primeiro passo por sua própria conta. Não era esta a realização de um antigo sonho de expansão por parte de Israel. Na verdade, as Escrituras não fazem referência alguma a Israel como tendo um exército permanente até ao tempo de Davi.
C. Guerra como um Modo de Vida. Os israelitas nunca tomaram as guerras contra Canaã como modelos para ação posterior. A vontade de Deus para o seu povo foi proferida pela primeira vez em Gênesis 12:3: “Em ti serão benditas todas as famílias da terra.”
D. Butim. Saquear o inimigo derrotado era prática comum naquela época, e assim tem permanecido através da história. Mas a Palavra de Deus proibia os israelitas de tomarem espólios dos povos conquistados. Tudo devia ser consagrado ao Senhor. Prata, ouro e vasos de bronze e de ferro deviam ser colocados no tesouro do Senhor, e não em cofres particulares. Josué 6:18-19.)
E. Um Padrão Único. Os israelitas não estão desobrigados da Palavra de Deus. Não existe, aqui, padrão duplo. Um israelita, por nome Acã, cedeu à tentação de surrípiai para si um pouco do despojo cananeu, e foi ele e a sua família condenados à destruição (Josué 7, especialmente w. 24-26). Quando, como nação, os israelitas pecavam, eram punidos — isto é, derrotados por seus inimigos — exatamente como acontecia com as outras nações.
F. Escravidão. Ao entrarem em Canaã, os israelitas poderiam ter seguido três cursos de ação com vistas ao povo cananeu. Poderiam tê-los matado, expulsado, ou escravizado. Exceto em situações reais de batalha, parece que os israelitas escolheram a terceira opção na maioria das vezes, porque os cananeus continuaram a viver na Palestina muito tempo depois da morte de Josué. Podemos ver isso na história do sogro de Salomão, o faraó que marchou contra a cidade de Gezer em Canaã, tomou-a dos cananeus e deusa à sua filha como presente de casamento (1 Reis 9:16). O capítulo 3 do livro dos Juizes declara que Canaã foi uma nação que Deus deixou para provar os israelitas (Juizes 3:1-3).
G. Imoralidade. A Bíblia declara com firmeza que a religião e o estilo de vida dos cananeus eram imorais. Os cananeus destruíram a si próprios por seu viver pecaminoso. Foi isso o que Deus quis dizer quando falou a Abraão: “Na quarta geração [os descendentes de Abraão] tornarão para aqui; porque não se encheu ainda a medida da iniquidade dos amorreus [cananeus]” (Gênesis 15:16). Deus não dará a terra ao seu povo cedo demais; ele aguardará até que o mal tenha percorrido todo o seu curso. O Senhor disse ao seu povo por intermédio de Moisés: “Não adorarás os seus deuses, nem lhes darás culto, nem farão conforme as suas obras. . . Não farás aliança nenhuma com eles, nem com seus deuses. Eles não habitarão na tua terra, para que te não façam pecar contra mim: se servires aos seus deuses, isso te será cilada” (Êxodo 23:24a, 32-33).
LITERATURA DE UGARITE
Confirma a literatura encontrada em Ugarite o que o Antigo Testamento diz acerca dos cananeus? Examinemos os textos de Ugarite escritos no único alfabeto de escrita cuneiforme, discutidos acima. Esses textos podem ser divididos em dois grupos. O primeiro é de lendas ou epopéias, em que os personagens principais são humanos. A segunda categoria é de mitos, em que a principal característica é a ação dos deuses. Vejamos em primeiro lugar os mitos.
A. Mitos. Em sua maior parte, os mitos ugaríticos giravam em torno de Baal e de outros deuses com ele associados. Baal era o deus do céu e da chuva. Seus dois principais adversários eram Iam (deus do mar) e Mote (deus da morte).
1. O Ciclo de Baal. Denominamos o mais longo dos mitos cananeus como Ciclo de Baal. Os estudiosos não concordam quanto à seqüência dos episódios desta história, os quais se encontram em cerca de uma a uzia de tábulas de argila. Mas podemos aceitar esta versão geral: Baal e Iam estão engajados numa guerra feroz. Não se trata inerente de uma partida de luta romana realizada no firmamento (céu) ser observada por espectadores que se divertem. O desfecho é extremamente sério para os crentes em Baal. Se Baal triunfar, a terra será fértil nesse ano, e os lavradores e residentes podem respirar mais aliviados. Mas se Mote vencer, seguir-se-á o desastre — a morte e a esterilidade dominarão. Talvez signifique o ano da praga de gafanhotos, ou o da seca. De uma das primeiras tábulas dessa série ficamos sabendo que Iam envia dois mensageiros a El, chefe dos deuses, para pedir que ele dê Baal aos mensageiros: “Abandonai, ó deuses, aquele a quem abrigais. . . . Abandonai Baal. . . filho de Dagom, de sorte que eu possa herdar seu ouro.” El cede e entrega Baal. Irado, Baal chicoteia em vingança, mas é refreado pelas deusas Anate e Astorete. Por enquanto, Iam vence a Baal. Mas vemos que em outro texto a situação muda por completo. Nesse episódio, Baal derrota a Iam. As armas de Baal são dois bastões mágicos fornecidos por Cotate-ua-Cásis, deus do artesanato e inventor de ferramentas, armas e instrumentos musicais. Um longo texto do Ciclo de Baal apresenta-nos à deusa Anate, consorte de Baal. Baal tinha também três filhas: Talia, deusa do orvalho; Padria, deusa das nuvens, e Arsia, deusa da terra.
Anate é ao mesmo tempo deusa da guerra (luta pelas causas do marido) e deusa do amor e da sensualidade, uma combinação comum de atributos das deusas antigas. Suas táticas de morticínio usadas contra os oponentes de Baal são descritas com detalhes: “Anate incha o fígado com gargalhadas/Seu coração está cheio de alegria/Porque na mão de Anate está a vitória/Porque ela mergulha no sangue dos soldados até à altura do joelho/Até à altura do pescoço no sangue das tropas/Até que esteja saciada.” Esta chacina resulta em fertilidade para a terra: “Ela tira água e lava/Com orvalho do céu/A fartura da terra.” As palavras de Isaque a Jacó (ou Esaú, segundo pensava Isaque), em Gênesis 27:28, contêm bênçãos semelhantes: “Deus te dê do orvalho do céu, e da exuberância da terra.” Esta bênção encontra-se de novo na palavra de Isaque a Esaú (Gênesis 27:39). A história seguinte conta-nos como Baal tenta induzir Anate a convencer El a que dê a ele, Baal, um palácio. Nenhum favor ou pedido de Baal parece demais para Anate honrar. Ela diz a Baal que tudo o que ele tem que fazer é pedir, e ela dará. Lembra-lhe as realizações dela no passado: “Não esmaguei eu a Iam, querido de El?/Nem aniquilei o grande rio do deus?/Não amordacei o dragão?/Nem esmaguei a tortuosa serpente?/Monstro poderoso de sete cabeças?/Esmaguei Mote, querido do deus da terra. …” No fim da narrativa Anate aparece perante El e exige que ele honre o pedido que Baal fez de um palácio. Ela ameaça El com violência se ele não satisfizer ao pedido. El está tão apavorado com a filha que se esconde dela em sua própria casa! Outro texto descreve um encontro diferente entre Baal e Iam, no qual Iam sai vencedor. Mas nessa versão Baal tem relações carnais com uma novilha a fim de providenciar um herdeiro antes de ir para o mundo subterrâneo. Evidentemente, os cananeus nada viam de errado em permitir que seus deuses praticassem a bestialidade. Esses textos nos permitem entender as batalhas cósmicas nos mitos ugaríticos entre as forçasdeuses da infecundidade e da produtividade, da esterilidade e da fertilidade — Iam e Baal, Mote e Baal. Muitas passagens do Antigo Testamento se assemelham a essas demonstrações de intenção no céu. Um exemplo é: “Desperta, desperta, arma-te de força, braço do Senhor. . . não és tu aquele que abateu o Egito, e feriu o monstro marinho? Não és tu aquele que secou o mar, as águas do grande abismo?. . .” (Isaías 51:9-10). Ou o Salmo 74.13 14: ‘Tu, com o teu poder, dividiste o mar; esmagaste sobre as águas a cabeça dos monstros marinhos. Tu espedaçaste as cabeças do crocodilo, e o deste por alimento às alimárias do deserto.” Encontram declarações semelhantes até no Novo Testamento, especialmente e conexão com o grande dragão vermelho com sete cabeças e dez chifres, derrotado por Miguel e seus anjos (Apocalipse 12:3-17). Como interpretaremos versículos como esses? Tomaram os poetas de Israel emprestado o mito da batalha cósmica de seus vizinhos cananeus? E provável que não. Material literário desse teor era corrente por todo o Oriente Próximo. Parece impossível evitar a conclusão de que os escritores bíblicos deliberadamente fizeram referências a mitos conhecidos. Que significariam para os ouvintes de Isaías alusões a um dragão ou leviatã, a não ser que o povo estivesse familiarizado com histórias a respeito desses animais? Mas os autores israelitas simplesmente não copiaram pensamentos cananeus em seus escritos. Se o tivessem feito, seria de esperar que encontrássemos no Pentateuco e nos primeiros capítulos do Gênesis mitos cananeus da criação, o que não encontramos. Pelo contrário, as bestas míticas vêm à tona nas Escrituras numa data relativamente recente, quando Israel estava firme em sua crença em Deus que é Uno, sem rival. Isaías e o Salmista não estão dizendo que mitos cananeus são verdades, mas tomando emprestado o conteúdo deles como imagem poética para celebrar a soberania de Deus.
2. Mitos de Fertilidade. Outros dois mitos procedentes de Ugarite poetarão nossa análise desse ramo da literatura. Um deles relaciona-se com o casamento de Iari, o deus da Lua, com Nical, a deusa lunar da Mesopotâmia. Nical gera um filho para Iari. As palavras de lari a Nical mostram que a fertilidade do ventre e a fertilidade da terra estão ligadas: “Transformarei os campos dela em vinhas/O campo de seu amor em pomares.” O segundo mito geralmente é chamado de “O Nascimento do Bom e Gracioso Deus”. Ele abre com um banquete no qual o vinho flui livremente. O texto divide-se em seções, sendo a décima e última a mais decisiva. El está prestes a criar duas mulheres que se tornarão ou suas esposas ou filhas, dependendo da capacidade dele para engravidá-las. Ele cria essas mulheres e as seduz, e ambas engravidam. Uma tem um filho chamado Alvorada (Xaar), e a outra gera um filho chamado Crepúsculo (Xalim). Mais tarde El tem relações sexuais com essas mesmas mulheres e no todo elas geram sete filhos. Esses filhos são “os deuses bons e graciosos”. Destinam-se a ser deuses da fertilidade, e são primeiramente alimentados nos seios da “Senhora” (Aserá, esposa de El?). El os envia ao deserto por sete anos, até que a situação melhore. Tem-se sugerido que esse texto se relaciona com um ritual que tinha por intenção pôr termo a uma sequência de anos maus e dar início a um ciclo produtivo para Ugarite. Religiões de fertilidade como as de Ugarite acentuam sobremodo a reprodução na terra, nas safras, e no ventre. Esta ênfase ajuda a explicar a importância que era dada às uniões sexuais. A Bíblia e os textos de Ugarite empregam as palavras cadeche e quedecha, que significam “santo” e “santa”. Em Ugarite esses “santos” eram sacerdotes homossexuais e sacerdotisas que atuavam como prostitutas. Encontramos forte reação hebraica contra essa “prostituição cultuai” em passagens como Levítico 19:29: “Não contaminarás a tua filha, fazendo-a prostituir-se”, e Deuteronômio 23:17: “Das filhas de Israel não haverá quem se prostitua (quedecha). . . nem dos filhos fadeche) de Israel haverá quem o faça.” Uma das reformas de Josias foi derribar “as casas da prostituição cultuai” (2 Reis 23:7).
B. Lendas. Convém examinar duas importantes lendas cananéias acerca de reis antigos. Uma é a de Querete, que traz o nome de seu Principal personagem, o filho de El. Querete é rei de Hubur. Sua esposa lhe é tomada e sua família assassinada. Em grande parte, a lenda é o conselho de El a Querete sobre onde encontrar outra esposa. Querete é informado de que deve ir a Udum (Edom?), onde o rei Paebel tem uma bela filha, Hurria. A busca de Querete é bem-sucedida. O casal forma uma união feliz e dá início a uma nova família, que chega a ter sete rapazes e uma menina.
Mais tarde Querete cai mortalmente enfermo, e a esta altura El, o principal dos deuses, entra em cena de novo. Ele usa a magia para restaurar a saúde de Querete: “Eu mesmo executarei a magia/Deveras deterei a mão da doença/Exorcizarei o demônio. …” Achamos interessante que ao usar a magia, o deus apela para um poder exterior. Iassibe, um dos filhos de Querete, logo se rebela contra o pai por causa de sua branda liderança. Querete diz: “Possa Horom (deus da praga e do inferno) quebrar, ó meu filho/Possa Horom quebrar sua cabeça/Astorete, nome de Baal, sua cachola. …” Vemos, pois, que essa história começa e termina com um pai perturbado. A segunda lenda trata de um rei chamado Acate, filho de Danei (não é o Daniel da Bíblia) e de sua esposa Donatia. Cotate-ua-Cásis (deus das artes) faz um belo arco para Acate, o qual chama a atença 0 de Anate, deusa da guerra. Ana te deseja o arco para o seu arsenal/ mas Acate rejeita a oferta que ela faz por ele. Anate manda Iatpã, um membro da sua corte, o qual assume forma de águia, matar a Acate. Daniel, pai de Acate, recupera os restos do filho do estômago águia e o sepulta. Pigate, irmã de Acate, dirige-se a latpã para vingar a morte do irmão. Entrementes, Daniel entra num período de sete gnos de lamento por Acate. O texto termina aqui, mas muitos estudiosos acham que provavelmente a lenda não para nesse ponto. Por que foi escrita esta lenda? Ninguém sabe ao certo. A história, com toda a probabilidade, alude ao ofício sagrado do rei como portador de fertilidade, porque o texto diz que após a morte de Acate, “Baal foi malsucedido durante sete anos . . . sem orvalho, sem chuvas”. Diversas vezes Daniel é chamado de “o curador”, ou “dispensador da fertilidade”. Nessa lenda, Danei, pai de Acate, é-nos especialmente interessante. 0 profeta Ezequiel arrefeceu as falsas esperanças de livramento de seu povo (Ezequiel 14:12-23) ao dizer que o indivíduo seria salvo somente se fosse justo. Para acentuar a questão, Ezequiel diz: “Ainda que estivessem no meio dela [a terra] estes três homens, Noé, Daniel e Jó, eles pela sua justiça salvariam apenas a sua própria vida” (w. 14, 16, 18, 20). Três versículos inserem que eles “não salvariam nem a seus filhos nem a suas filhas”.
Os eruditos não têm problema algum para identificar Noé e Jó na Bíblia. Mas quem é Daniel? Seria o mesmo Daniel de quem Ezequiel fala em 28:3: “Sim, és [o príncipe de Tiro] mais sábio que Daniel, não há segredo algum que se possa esconder de ti”? Muitos comentaristas têm sugerido que o Daniel que Ezequiel menciona não é seu contemporâneo, o profeta Daniel, mas o Daniel da lenda cananéia. No livro de Daniel, em hebraico o seu nome se escreve dni’l, mas em todas as passagens de Ezequiel ele se escreve dn’l, exatamente como o nome Daniel é grafado na história de Acate. Se os hebreus conheciam o leviatã cananeu e o mencionaram em sua literatura religiosa, não se daria o caso de terem os cananeus feito a mesma coisa com Daniel?
CONCLUSÃO
Sabemos que os hebreus eram vizinhos dos cananeus e estavam familiarizados com seu estilo de vida, cosmovisão, literatura e religião. Muitas vezes os hebreus adotaram a religião cananéia. Pense na imagem do bezerro que Jeroboão erigiu em Betei e em Dã (1 Reis 12:28-29); nos textos ugaríticos, El muitas vezes é chamado de “o Touro”, Ou lembre-se das frequentes referências a objetos cananeus como Aserá ou Aserins (Êxodo 34:13; Deuteronômio 7:5; 12:3; 16:21; Juizes 6:25; 1 Reis 14:15, e outras). Grande parte das severas advertências dos profetas era uma reação contra os cananeus, de quem às vezes os hebreus tomavam empresado livremente. De que áreas da vida cananéia eles tomavam emprestado? Certamente de sua arquitetura e de suas técnicas literárias. O conhecimento que temos das obras poéticas dos hebreus (especialmente Salmos e Provérbios) se deve em grande parte a valiosos textos poéticos encontrados em Ugarite. Os hebreus até se referiam à língua deles como “a língua de Canaã” (Isaías 19:18). Mas esses empréstimos raramente eram religiosos. Para ser fiel ao seu Deus, Israel tinha de apartar-se de seus vizinhos pagãos. A nação não se atrevia a envolver-se com o que Deus chamava de repulsivo e inaceitável a ele. Iavé e seus porta-vozes desafiaram Israel a viver acima das culturas circunvizinhas, a separar-se delas e ser para elas uma testemunha e um desafio.
—- Retirado de: J. I. Packer – O Mundo do Antigo Testamento.
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