Sísifo – Mitologia Grega

Amor fraterno

O castigo que Sísifo enfrenta no Hades também entrou para a língua e para as histórias, mas há muito mais nesse relato do que a famosa pedra que ele está fadado a empurrar morro acima interminável e inutilmente. Sísifo era um homem malvado, ganancioso, fingido e frequentemente cruel, mas quem não consegue encontrar alguma coisa atraente – até mesmo heroica – no insaciável entusiasmo e na forma explicitamente desafiadora com que ele vivia (na verdade, sobre vivia)? Poucos mortais ousaram desafiar a paciência dos deuses de modo tão inconsequente. Seu desprezo temerário e sua recusa em se desculpar ou obedecer fazem lembrar um Don Giovanni grego.

Deucalião e Pirra, os sobreviventes do Grande Dilúvio, tiveram um filho chamado HELENO, em homenagem ao qual os gregos até hoje se chamam helenos. O filho de Heleno, Éolo, teve quatro filhos – Sísifo, SALMONEU, ATAMAS e CRETEU. Sísifo e Salmoneu se detestavam com o ódio mais visceral e implacável que o mundo jamais vira. Rivais pelo afeto dos pais, rivais em tudo, desde o berço nenhum conseguia suportar ver o outro se dar bem. Os dois príncipes acharam que o reino do pai, Eólia, como era chamada a Tessália naquela época, era pequeno demais para eles e se mudaram, um para o sul e o outro para o oeste, para fundar seus próprios reinos. Salmoneu reinava sobre a Élida e Sísifo estabeleceu a Éfira, mais tarde, chamada Corinto. Dessas fortalezas, eles se encaravam com raiva através do Peloponeso, a inimizade amarga crescendo a cada ano que passava.

O ódio de Sísifo por Salmoneu o deixava sem sono. Ele o queria morto, morto, morto. Esse desejo era tão agoniante que, para se livrar dele, esfaqueava a própria coxa repetidamente com uma adaga. Mas não havia nada a fazer. A vingança das Moiras seria terrível, se ele ousasse assassinar o irmão. O fratricídio estava entre os piores crimes de sangue. Por fim, ele resolveu consultar o oráculo em Delfos.

— Filhos de Sísifo e Tiro se erguerão para abater Salmoneu — entoou Pítia.

Aquilo foi música para os ouvidos de Sísifo. TIRO era sua sobrinha, filha de seu odiado irmão Salmoneu. Tudo o que ele tinha de fazer era casar-se e ter filhos com ela. Filhos que “se ergueriam para abater Salmoneu”. Naquela época, tios podiam se casar com sobrinhas sem causar espanto algum, de modo que ele começou a cortejar e seduzir Tiro com cavalos, joias, poemas e oceanos de charme pessoal, porque Sísifo era bastante cativante, quando queria. Com o tempo, sua corte deu resultado, eles se casaram e ela teve dois meninos saudáveis.

Um dia, alguns anos mais tarde, Sísifo estava fora, pescando com seu amigo MELOPS. Estendidos ao sol nas margens do rio Sythas, começaram a conversar. Nesse exato momento, Tiro saiu do palácio com uma empregada, os dois meninos – agora, com cinco e três anos de idade – e uma cesta de comida e vinho, com a ideia de surpreender Sísifo com um piquenique em família.

De volta à margem do rio, Melops e Sísifo falavam preguiçosamente a respeito de cavalos, mulheres, esporte e guerra. O grupo de Tiro atravessou pelos campos.

— Diga-me, majestade — disse Melops —, sempre intrigou-me que, apesar de sua amarga divergência com o rei Salmoneu, o senhor tenha escolhido se casar com a filha dele. Pelo que posso ver, continua não gostando dele, como nunca gostou.

— Não gosto? Eu o abomino, detesto, desprezo e odeio — respondeu Sísifo, rindo alto. Um riso que permitiu a Tiro, que se aproximava, saber exatamente onde ele estava. À medida que seu grupo chegava mais perto, ela conseguia ouvir cada palavra que o marido dizia.

— Só me casei com aquela vaca da Tiro porque odeio demais Salmoneu — ele estava dizendo. — Veja, o oráculo de Delfos falou-me que, se eu tivesse dois filhos com ela, quando crescessem, eles o matariam. Então, quando ele morrer pela mão de seus próprios netos, eu ficarei livre daquele vil porco do meu irmão sem temer a perseguição das Erínias.

— Isso é… — Melops tentou encontrar a palavra.

— Brilhante? Astucioso? Engenhoso?

Tiro conteve os filhos, que já vinham correndo para o local onde podiam ouvir o pai. Virando-os no sentido contrário, ela os empurrou rapidamente para uma curva no rio, com a babá seguindo atrás.

Tiro tinha engolido inteiramente o charme de Sísifo, mas amava o pai, Salmoneu com uma fidelidade que ultrapassava qualquer outra consideração. A ideia de deixar seus filhos crescerem e matarem o avô estava fora de questão. Ela sabia como desafiar a profecia do oráculo.

— Venha, menino — disse ela para o mais velho —, olhe para o rio. Você consegue ver os peixinhos?

O garotinho se ajoelhou na ribanceira e olhou para baixo. Tiro pôs uma mão no pescoço dele e o empurrou para debaixo da água. Quando ele parou de se debater, ela fez o mesmo com o menor.

— Agora — falou ela, calmamente, para a empregada traumatizada —, isto é o que você vai fazer…

Sísifo e Melops apanharam um monte de peixes naquela tarde. Justo quando a luz estava começando a esmaecer e eles estavam embalando as coisas para voltar, a empregada de Tiro apareceu à frente deles, fazendo uma mesura nervosa.

— Desculpe, majestade, mas a rainha pede que o senhor vá saudar os príncipes. Eles estão na ribanceira, esperando vossa majestade. Bem atrás do salgueiro, senhor.

Sísifo foi ao local indicado e encontrou seus dois filhos estendidos na grama, pálidos e sem vida.

A empregada correu para salvar a vida e nunca mais se ouviu falar dela. Tiro, quando o enraivecido Sísifo chegou ao palácio com a espada desembainhada, estava em segurança, a caminho do reino de seu pai, na Élida. Ao chegar em casa, Salmoneu a casou com seu irmão Creteu, com quem ela foi profundamente infeliz.

O próprio Salmoneu, tão orgulhoso e prosa quanto seu irmão odiado, estabeleceu-se na Élida como um tipo de deus. Alegando igualar o poder de Zeus em atrair tempestades, ele ordenou a construção de uma ponte de latão, sobre a qual gostava de dirigir sua carruagem a velocidades alucinantes, arrastando chaleiras, caldeirões e panelas de ferro para imitar o som do trovão. Ao mesmo tempo, tochas acesas eram atiradas para cima para imitar os raios. Essa blasfêmia impertinente atraiu o olhar de Zeus, que acabou com a confusão com um raio de verdade. O rei, a carruagem, a ponte de latão, os utensílios de cozinha e tudo o mais foram explodidos e reduzidos a átomos, e a sombra de Salmoneu foi jogada para a danação eterna nas mais baixas profundezas do Tártaro.

As tarefas de Sísifo

Sísifo deu uma grande festa para comemorar a morte de seu absurdo irmão fabricante de trovões. Na manhã seguinte, foi acordado por uma delegação de senhores, donos de terras e fazendeiros ofendidos. Após esfregar o sono dos olhos e clarear as ideias com uma taça de vinho sem água, consentiu em ouvir qual era a questão.

— Majestade, alguém está roubando o nosso gado! Cada um de nós tem uma perda a relatar. Seus rebanhos reais também estão diminuídos. Vossa majestade é um rei sábio e inteligente. Certamente, consegue encontrar quem é o responsável.

Sísifo os mandou embora com a promessa de investigar. Ele tinha uma boa ideia de que o ladrão era seu vizinho AUTÓLICO, mas como provar? Sísifo era astucioso e esperto, mas Autólico era filho do próprio Hermes, o príncipe dos ladrões e malandros, o deus que ainda bebê tinha roubado o gado de Apolo. Autólico tinha herdado de Hermes não apenas a propensão para pegar vacas que não lhe pertenciam, mas também poderes de encantamento que tornavam muito difícil apanhá-lo no ato. Além disso, o gado que Sísifo e seus vizinhos tinham perdido era marrom e branco e tinha chifres generosos, enquanto o de Autólico era preto e branco, e inteiramente sem chifres. Era desconcertante, mas Sísifo tinha certeza de que os feitiços ensinados por Hermes estavam por trás disso tudo e que Autólico estava secretamente mudando a cor das vacas roubadas.

— Muito bem — disse para si mesmo —, vamos ver o que é mais forte, a mágica barata do filho bastardo trapaceiro de um deus ou a sagacidade e inteligência de Sísifo, fundador de Corinto, o rei mais inteligente do mundo.

Ele mandou que se gravassem, nos cascos de todo o gado, dele e dos vizinhos, as palavras “AUTÓLICO ME ROUBOU” em letras minúsculas. Ao longo das sete noites seguintes, como esperado, os rebanhos locais continuaram a ser regularmente depauperados. No oitavo dia, Sísifo e os principais donos de terras fizeram uma visita a Autólico.

— Saudações, meus amigos! — exclamou o vizinho com um aceno alegre. — A que devo a honra desta visita?

— Viemos inspecionar seu gado — anunciou Sísifo.

— À vontade. Está pensando em também criar vacas pretas e brancas? O pedigree do meu rebanho é único na região, é o que me dizem.

— Ah, claro, único mesmo — retorquiu Sísifo. — Quem é que já viu cascos como estes? — Levantou uma pata dianteira de uma das vacas.

Autólico se inclinou, leu as palavras gravadas no casco e deu de ombros alegremente.

— Ah — disse ele —, foi divertido enquanto durou.

— Levem-nas todas — mandou Sísifo. Enquanto os donos de terras conduziam os animais para fora, Sísifo olhou na direção da casa de Autólico. — Acho que vou pegar para mim todas as suas vacas — declarou ele. — Até a última novilha. — Com isso, ele queria dizer ANFITEIA, a própria esposa de Autólico.

Sísifo não era um homem legal.

A águia

A façanha de ludibriar o filho vigarista do deus subiu à cabeça de Sísifo. Ele começou a acreditar que era realmente o homem mais inteligente e mais cheio de recursos no mundo. Estabeleceu-se como um tipo de solucionador de problemas real, dando palpites em todo tipo de questões trazidas a ele e cobrando somas enormes por seus pareceres. Mas há uma diferença entre engano e bom senso, astúcia e julgamento, perspicácia e sabedoria.

Lembra-se de Asopo? Nas águas desse rio beócio, a princesa tebana Sêmele tinha se banhado, atraindo as atenções de Zeus e acarretando o nascimento de Dioniso. Infelizmente, o deus daquele rio teve uma filha, EGINA, que era linda o suficiente para atrair o olhar de Zeus. Sob a forma de uma águia, o deus desceu voando e agarrou a garota, levando-a para uma ilha no litoral da África. O pobre deus-rio, desamparado, procurou-a por toda parte, perguntando a todo mundo que encontrava se tinha visto algum sinal de sua amada filha.

— Uma menina vestida com uma pele de cabra, você diz? — respondeu Sísifo quando chegou a sua vez de ser pressionado por informação. — Ora, sim, acabei de ver uma donzela assim ser arrancada por uma águia, não faz muito tempo. Ela estava se banhando no rio quando ele mergulhou, vindo do sol… Foi a coisa mais…

— Para onde a levou? Você viu?

— Essas pulseiras são de ouro verdadeiro? Devo dizer que são muito finas.

— Fique com elas, são suas. Apenas, por piedade, diga-me o que aconteceu com Egina.

— Eu estava no alto de um morro, de modo que vi tudo. A águia a levou para… Esse seu anel é esmeralda, não é? Ora, muito obrigado, agora, deixe-me ver… Sim, eles voaram através do mar e aterrissaram ali, naquela ilha. Venha até a janela. Você mal a percebe no horizonte, vê? Oenone, é como eles chamam a ilha, eu creio. É lá que vai encontrá-los. Ah, já está indo?

Asopo alugou um barco e partiu para a ilha. Nem tinha chegado ao meio do caminho quando Zeus o viu vindo e mandou-lhe um raio pela proa. A explosão varreu Asopo e o barco numa gigantesca pororoca de volta até seu próprio estuário e para dentro de seu rio.

Mas Sísifo! Zeus há algum tempo já estava de olho nesse vilão. Não tinha passado despercebido do deus da xênia que Sísifo tinha um histórico de abusar dos hóspedes que passavam por suas terras. Cobrava impostos, saqueava seus tesouros, violentava as mulheres, transgredindo sem a menor vergonha cada cânone das leis sagradas da hospitalidade. E, agora, ousava interferir em questões que não eram de sua conta, meter-se nos negócios de seus superiores, contar histórias sobre o próprio Rei dos Deuses. Era hora de adotar medidas. Tinha de ser dado um exemplo que servisse de aviso a outros. Morte e danação para ele.

Apesar do sangue real de Sísifo, sua vida tinha sido malvada demais, desavergonhada demais, julgou Zeus, para merecer a dignidade de ser conduzido por Hermes ao mundo inferior. Em vez disso, Tânato, a própria Morte, foi enviado para algemá-lo e o acompanhar.

Trapaceando a Morte

Na medida em que um espírito tão sombrio era capaz de uma emoção tão alegre, Tânato sempre gostou daquele momento em que se manifestava à frente dos marcados para morrer.

Aparecendo diante deles sem estar visível para ninguém mais, em sua forma descarnada, sob um manto negro, fiapos de gases infernais fluindo dela, estendia o braço para suas vítimas com uma lentidão cruelmente deliberada. No momento em que tocava a carne delas com a ponta de seu dedo ossudo, saía da alma delas uma patética lamúria. Tânato adorava ver a pele de sua vítima empalidecer e os olhos estremecerem e se velarem à medida que a vida se extinguia. Acima de tudo, adorava o som do último suspiro tremulante da alma, quando ela emergia da carcaça mortal e se submetia às suas algemas, pronta a ser levada.

Sísifo, como a maior parte dos astutos intrigantes ambiciosos, tinha sono leve. A mente dele girava sem parar e o menor ruído o acordava. E assim foi que até o sussurro silencioso da Morte deslizando em seu quarto de dormir fez com que ele se sentasse.

— Quem, infernos, é você?

— Quem, infernos, realmente? O Inferno é exatamente quem eu sou. Muahahahaha! — Tânato soltou seu riso sinistro, macabro, que tantas vezes fazia com que os mortais moribundos gritassem enlouquecidos.

— Pare de resmungar. Qual é o seu problema? Está com dor de dente? Indigestão? E não fique falando por adivinhações. Qual é o seu nome?

— Meu nome… — Tânato fez uma pausa de efeito. — Meu nome…

— Não tenho a noite inteira.

— Meu nome é…

— Você ao menos tem um nome?

— Tânato.

— Ah, então, você é a Morte, não é? Hum… — Sísifo pareceu pouco impressionado. — Achei que fosse mais alto.

— Sísifo, filho de Éolo — entoou Tânato, em tons reprimidos —, rei de Corinto, senhor de…

— Sim, sim, eu sei quem eu sou. É você que parece estar tendo dificuldade em se lembrar do seu nome. Sente-se, por que não se senta? Alivie o peso de seus pés.

— Meu peso não está nos meus pés. Estou pairando.

Sísifo olhou para o chão.

— É mesmo. E veio me buscar, não veio?

Nada confiante em que qualquer palavra sua fosse ser recebida com o respeito e admiração que merecia, Tânato mostrou a Sísifo suas algemas e as chacoalhou ameaçadoramente em seu rosto.

— Então, você trouxe algemas, também. Ferro?

— Aço. Aço inquebrável. Grilhões forjados nos fogos de Hefesto por Estéropes, o Ciclope. Encantadas pelo meu senhor Hades. Quem quer que elas prendam não pode ser solto, salvo pelo próprio deus.

— Impressionante — concedeu Sísifo. — Mas, na minha experiência, nada é inquebrável. Além do mais, não há sequer uma fechadura ou tranca.

— O fecho e a mola foram inventados de forma astuta demais para serem vistos por olhos mortais.

— É o que você diz. Não acredito nem por um segundo que funcionem. Aposto que você não consegue fechá-las nem em torno de seu braço magro. Quero ver, tente.

Uma ridicularização tão escancarada de suas preciosas algemas não podia ser suportada.

— Homem tolo! — exclamou Tânato. — Esses dispositivos tão intrincados estão além da compreensão de um mortal. Veja aqui! Uma vez atrás das minhas costas e passando uma vez pela frente. Fácil. Junte os meus pulsos e feche as pulseiras. E se você tiver a bondade de apertar exatamente aqui para prender o fecho, há um painel invisível e… olhe!

— Estou vendo — disse Sísifo, pensativamente. — Estou vendo, mesmo. Eu estava enganado, muito enganado. Que trabalho maravilhoso.

— Ah.

Tânato tentou tirar as algemas, mas a parte superior inteira de seu corpo estava presa e imóvel.

— Ahn… Ajuda?

Sísifo pulou da cama e abriu a porta de um enorme guarda-roupa na extremidade do quarto. Foi a coisa mais simples do mundo fazer o corpo bem amarrado de Tânato, que pairava pelo ar, atravessar o quarto. Com um empurrão, ele escorregou e bateu com o nariz no fundo do armário.

Girando a chave, Sísifo exclamou, alegremente:

— A fechadura desse armário pode ser barata e feita pelo homem, mas posso garantir que funciona tão bem quanto qualquer grilhão forjado nos fogos de Hefesto.

Ouviram-se gritos abafados de desespero, implorando para sair, mas com um caloroso “muahahaha”, Sísifo se mandou, surdo às súplicas da Morte.

Vida sem a Morte

Os primeiros dias da prisão de Tânato passaram sem incidentes. Nem Zeus, nem Hermes, nem mesmo o próprio Hades pensaram em verificar se Sísifo tinha dado entrada nas regiões infernais como combinado. Mas, quando se passou uma semana inteira sem a chegada de qualquer nova alma morta, os espíritos e demônios do mundo inferior começaram a murmurar. Outra semana se passou e nem uma única alma defunta foi admitida para processamento, com exceção de uma venerável sacerdotisa de Ártemis, cuja vida impecável merecia a honra de uma escolta pessoal ao Elísio por Hermes, o Psicopompo. Essa súbita parada no fluxo de almas deixou perplexos os habitantes do Hades, até que alguém notou que não viam Tânato há dias. Grupos de busca foram enviados, mas não conseguiram encontrar a Morte. Isso jamais acontecera antes. Sem Tânato, o sistema todo desabou.

No Olimpo, as opiniões estavam divididas. Dioniso achou a situação toda hilária e ergueu um brinde ao fim da letal cirrose de fígado. Apolo, Ártemis e Poseidon estavam mais ou menos neutros no assunto. Deméter temia que a autoridade de Perséfone como Rainha do Mundo Inferior estivesse sendo desrespeitada. As estações sobre as quais mãe e filha tinham domínio exigiam que a vida constantemente acabasse e começasse outra vez, e só a presença da morte podia fazer com que isso acontecesse. A impropriedade de tal escândalo deixou Hera indignada, o que, por sua vez, fez com que Zeus ficasse impaciente. Até o geralmente alegre e irrefreável Hermes estava ansioso, porque o funcionamento regular do mundo inferior, era em parte, responsabilidade dele.

Mas foi Ares quem achou a situação mais intolerável. Estava revoltado. Olhava para baixo e via batalhas sendo travadas no reino humano com sua ferocidade costumeira, mas ninguém morria. Os guerreiros estavam sendo trespassados por lanças, pisoteados por cavalos, eviscerados pelas rodas das carruagens e decapitados por espadas, mas não morriam. Era uma paródia de combate. Se soldados e civis não morressem, bem, então… a guerra não tinha sentido. Não resolvia nada. Não alcançava nada. Nenhum dos lados numa batalha poderia ganhar.

Divindades menores estavam tão divididas com a questão quanto os olímpicos. As Queres continuavam a beber o sangue daqueles que caíam em batalha e não estavam nem aí para o que acontecia com as almas deles. Duas das Horas, Dice e Eunômia, concordaram com Deméter em que a ausência da morte perturbava a ordem natural das coisas. Irene, irmã delas, deusa da paz, mal conseguia conter sua satisfação. Se a ausência da Morte significava a ausência da guerra, então, com certeza, seu tempo tinha chegado.

Ares atazanava os pais, Hera e Zeus, com um clamor tão incessante que, no fim, eles não aguentaram mais. Declararam que Tânato tinha de ser encontrado. Hera exigiu saber onde ele tinha sido visto pela última vez.

— Hermes — falou Zeus —, por certo, não faz muito tempo, você o mandou buscar a alma daquele vilão de coração negro, Sísifo?

— Pô! — Hermes deu uma palmada na coxa, aborrecido. — Claro! Sísifo. Mandamos Tânato ir acorrentá-lo e acompanhá-lo até o Hades. Esperem aqui.

As asas de Hermes se agitaram, estremeceram e zuniram, e ele partiu.

Voltou num piscar de olhos.

— Sísifo nunca chegou ao mundo inferior. Tânato foi enviado a Corinto para buscá-lo há meia lua e nenhum dos dois foi visto desde então.

— Corinto! — rugiu Ares. — O que estamos esperando?

O armário trancado no quarto foi logo encontrado e arrombado, revelando o humilhado Tânato, sentado choroso no canto, sob alguns mantos. Hermes o levou para as regiões infernais, onde Hades agitou as mãos para soltar as algemas encantadas.

— Mais tarde conversaremos sobre isso, Tânato — disse ele. — No momento, uma represa de almas espera por você.

— Primeiro, deixe-me buscar aquele vilão do Sísifo, senhor — pediu Tânato. — Ele não vai conseguir me enganar duas vezes.

Hermes arqueou uma sobrancelha, mas Hades olhou para Perséfone, sentada a seu lado no trono. Ela assentiu. Tânato era seu preferido entre todos os servidores no mundo inferior.

Rituais de sepultamento

Já concordamos que Sísifo não era bobo. Nem por um segundo ele achou que Tânato ia ficar trancado no seu guarda-roupa pela eternidade. Mais cedo ou mais tarde, a Morte seria libertada e de novo posta em seu encalço.

Na cidadezinha em que ele se alojara temporariamente, Sísifo se dirigiu à mulher. Depois que sua sobrinha, Tiro, afogara seus filhos e o largara, ele se casara outra vez. Sua nova rainha era tão boa e obediente quanto Tiro tinha sido teimosa e do contra.

— Minha querida — disse ele, atraindo-a para perto. — Sinto que em breve vou morrer. Depois que eu tiver dado meu último suspiro e minha alma tiver voado, o que você vai fazer?

— Vou fazer o que deve ser feito, meu senhor. Vou lavá-lo e ungi-lo. Colocarei um óbolo na sua língua para que possa pagar o barqueiro. Ficarei de vigília durante sete dias e sete noites sobre seu caixão. Serão queimadas oferendas para agradar o rei e a rainha do mundo inferior. E, desse modo, o seu trajeto para os Campos de Asfódelos será uma jornada abençoada.

— Suas intenções são boas, mas isso é exatamente o que você não deve fazer — afirmou Sísifo. — Assim que eu tiver morrido, quero que você me dispa inteiramente e me jogue no meio da rua.

— Meu senhor!

— Estou falando sério. Seriíssimo. Esse é o meu desejo, minha súplica, minha ordem. Não importa o que outros digam, você não vai dizer preces, não vai fazer sacrifícios, não vai efetuar exéquias. Trate meus restos mortais como faria com os de um cão. Prometa-me.

— Mas…

Sísifo a pegou pelos ombros e olhou fundo nos olhos dela para reforçar a seriedade de suas ordens.

— Se você me ama e está ligada a mim, se espera nunca ser assombrada pela minha sombra zangada, prometa fazer exatamente o que eu disse. Jure por sua alma.

— Eu… Eu juro.

— Isso é bom. Agora, vamos beber. Um brinde: à vida!

Seu cálculo de tempo, como sempre, estava impecável, porque naquela mesma noite Sísifo foi acordado pelo sussurro da Morte à sua cabeceira.

— Sua hora chegou, Sísifo de Corinto.

— Ah, Tânato. Eu já estava esperando você.

— Não espere me enganar.

— Eu? Enganá-lo? — Sísifo se levantou e se inclinou em submissão dócil, apresentando os punhos para serem algemados. — Nada podia estar mais longe de minha cabeça.

As algemas foram presas e os dois deslizaram para a boca do mundo inferior. Tânato deixou Sísifo na margem mais próxima do Estige e foi embora, ansioso para adiantar o serviço com a grande represa de almas que estavam esperando para serem coletadas.

Caronte, o barqueiro, atravessou o rio com sua canoa e Sísifo subiu a bordo. Ao empurrar o barco, afastando-se da margem, Caronte estendeu a palma.

— Não tenho — disse Sísifo, apalpando os bolsos.

Sem uma palavra, Caronte empurrou-o pela borda para a escuridão do Estige. Estava frio, abominavelmente frio, mas Sísifo deu um jeito de atravessar o rio. As águas queimaram e empolaram sua pele quase ao limite do que ele podia suportar, mas, uma vez do outro lado, Sísifo apresentava exatamente a figura lamentável que queria.

Sombras passavam por ele desviando os olhos.

— Qual é o caminho para a sala do trono? — perguntou a uma delas. Seguindo as orientações, viu-se na presença de Perséfone.

— Venerada rainha. — Sísifo inclinou a cabeça. — Suplico uma audiência com Hades.

— Meu marido hoje está no Tártaro. Eu respondo por ele. Quem é você e como ousa vir à minha frente nessas condições?

Sísifo estava nu, com uma orelha arrancada e um olho pendurado fora da órbita. Seu corpo espectral estava coberto de marcas de mordidas, vergões, hematomas, cortes e feridas abertas, testemunho do tratamento rude de sua contraparte física nas ruas de Corinto, acima. Sua mulher tinha obedecido às suas instruções.

— Senhora — ele fez uma profunda reverência à frente de Perséfone —, ninguém sente essa impropriedade mais agudamente do que eu. Minha mulher, minha odiosa, malvada, monstruosa e blasfema mulher, foi ela que me causou esse estado lamentável. Mesmo enquanto eu estava lá deitado, morrendo, eu a ouvi dizer para suas companheiras: “Não vamos gastar ouro em ritos de sepultamento. Os deuses do mundo inferior não significam nada para nós. Joguem o corpo dele fora, para que os cães o comam. Vamos gastar numa grande festa o dinheiro que ele separou para o funeral. Os novilhos que ele guardou para sacrificar a Hades e Perséfone serão assados para nosso prazer”. Ela riu e bateu palmas, e esses, venerável rainha, foram os últimos sons que ouvi no mundo.

Perséfone estava indignada.

— Ela ousou? Ela ousou? Será castigada.

— Sim, majestade. Mas como?

— Esfolada viva…

— Nada mau. Mas eu diria, com sua permissão, não seria engraçado — Sísifo sorriu ao ter uma ideia —, não seria engraçado se a senhora me fizesse voltar ao mundo superior, vivo? Imagine o choque dela!

— Hum…

— E eu garantirei que todos os dias ela pague por sua insolência e desrespeito. Nada de ouro ou festanças, nada além de maus-tratos, insultos e servidão. Mal posso esperar para ver a cara dela quando eu aparecer à sua frente, vivo e bem e inteiro… e talvez… talvez ainda mais jovem e vital e belo do que nunca? Ela só tem vinte e seis anos, mas imagine o tormento dela se eu viver mais! Eu a usaria como minha escrava. Cada dia seria uma tortura para ela.

Perséfone sorriu com a ideia e bateu palmas.

— Que assim seja. — Os anos passados no mundo inferior tinham dado a Perséfone um orgulho régio e uma rígida crença no funcionamento adequado do reino infernal.

E foi assim que Sísifo foi levado de volta ao mundo superior, onde ele e sua rainha, encantada, viveram felizes para sempre.

Sua morte, quando finalmente chegou, foi uma outra questão.

Rolando a pedra

Zeus, Ares, Hermes e Hades não gostaram quando souberam que Sísifo tinha fugido da morte uma segunda vez. No entanto, Perséfone tinha tomado aquela decisão, e a decisão de um imortal não podia ser desfeita por outro.

Quando, depois de quase cinquenta anos de vida serena e próspera, o tempo de vida da mulher mortal de Sísifo enfim chegou ao cabo, o contrato entre Perséfone e Sísifo expirou com ela. Tânato fez a ele uma terceira e última visita.

Dessa vez, Sísifo pagou a passagem a Caronte e atravessou o Estige em boa ordem. Hermes o esperava na outra margem.

— Bem, bem, bem. Rei Sísifo de Corinto. Mentiroso, fraudador, velhaco e vigarista. Assim que eu gosto. Nenhum mortal conseguiu enganar a morte uma vez. Você conseguiu duas. Esperto.

Sísifo fez uma mesura.

— Uma façanha dessa merece uma chance de imortalidade. Siga-me.

Hermes conduziu Sísifo por inúmeras passagens e galerias até uma vasta câmera subterrânea. Uma grande rampa ia do chão até o teto. No fundo, havia uma rocha, iluminada por um facho de luz.

— O mundo superior — disse Hermes, indicando a fonte da luz.

Sísifo viu que a ladeira levava a uma passagem quadrada no alto do teto, através da qual brilhava um raio de luz do dia. Quando Hermes apontou, a entrada se fechou e o facho de luz desapareceu.

— Agora, tudo o que você tem de fazer é rolar essa rocha ladeira acima. Quando você chegar ao topo, o buraco vai se abrir. Você vai poder trepar para fora e viver para sempre como o imortal Rei Sísifo. Tânato jamais o visitará outra vez.

— Só isso?

— Só isso — confirmou Hermes. — É claro, se você não gostar dessa ideia, eu posso levá-lo para o Elísio, onde poderá passar uma feliz eternidade na companhia das outras almas dos finados virtuosos. Mas, se você escolher a pedra, deverá continuar tentando até conseguir e ganhar sua liberdade e imortalidade. Escolha. Uma pós-vida idílica aqui ou um lance para a imortalidade acima.

Sísifo examinou a rocha. Era volumosa, mas nada colossal. A ladeira era íngreme, mas não era um precipício. Gradiente de quarenta e cinco graus, não mais do que isso. Então. Uma eternidade saltando pelos campos do Elísio com os chatos e bem-comportados ou a eternidade lá em cima, no mundo real de diversão, sujeira, brincadeiras e delírio?

— Sem truques?

— Sem truques, sem pressão — disse Hermes, pondo a mão no ombro de Sísifo e exibindo o sorriso mais estonteante. — A escolha é sua.

Você sabe o resto. Sísifo aplicou o ombro à rocha e começou a empurrá-la ladeira acima. A meio do caminho, ele estava confiante em que a vida eterna estava garantida. Três quartos percorridos e… pombas, aquilo era trabalho duro. Cinco sextos, dor. Seis sétimos, agonia. Sete oitavos… Ele estava a menos de três centímetro do topo, agora, à distância de uma unha, apenas mais um esforço supremo e… Nãããooo! A pedra escorregou, pulou por cima de Sísifo e rolou de volta para o fundo.

Bem, nada mau para um primeiro esforço, pensou Sísifo consigo mesmo. Se eu for devagar, se conservar minhas forças, posso chegar lá. Eu sei que posso. Vou descobrir uma técnica. Talvez eu vá de costas, apoiando o peso nas costas. Eu sei que posso…

Sísifo ainda está lá, nos átrios de Tártaro, empurrando aquela rocha ladeira acima e chegando até o topo, antes que ela role de volta e ele tenha de começar tudo outra vez. Ficará lá até o final dos tempos. Ainda acredita que consegue. Apenas mais um último esforço supremo e ele estará livre.

Pintores, poetas e filósofos perceberam muitas coisas no mito de Sísifo. Já viram uma imagem do absurdo da vida humana, da futilidade do esforço, da crueldade impiedosa do destino, do invencível poder da gravidade. Mas viram também algo da coragem, poder de recuperação, fortaleza, resistência e autoconfiança da humanidade. Eles veem algo de heroico na nossa recusa em nos submetermos.