Húbris – Mitologia Grega

Para os gregos, húbris era um tipo especial de orgulho. Muitas vezes, levava os mortais a desafiarem os deuses, provocando castigos inevitáveis, de um tipo ou de outro. É uma falha comum, se não essencial, na elaboração dos heróis da tragédia grega e de muitos outros personagens principais no mito grego. Algumas vezes, as falhas não são nossas, mas dos deuses, que são ciumentos, mesquinhos e vaidosos demais para aceitar que os mortais os podem igualar ou ultrapassar.

Todo lágrimas

Lembre-se de que Pélope não era o único filho de Tântalo e Dione. Eles tiveram também uma filha, Niobe. Apesar do terrível acontecimento que recaiu sobre seu pai e das tristes aventuras de seu irmão, ela era uma mulher altiva e confiante. Conheceu e se casou com Anfião, filho de Zeus com Antíope. Era um antigo amante de Hermes, você deve se lembrar, um dos gêmeos que construíram os muros de Tebas, encantando as pedras com o canto e o dedilhar da lira.[156] Juntos, Niobe e Anfião tiveram sete filhas e sete filhos, os nióbides.

Inchada de convencimento e vaidade a níveis perigosos e, Niobe gostava de dizer para quem quisesse ouvir quão importante ela era e como sua linhagem era real e divina.

— Pelo lado da minha mãe, alego descender de Tétis e Oceano. Eles são Titãs de primeira geração, vocês sabem. Pelo lado do meu pai, bem, temos Tmolo, é claro, o de mais alto nascimento de todas as divindades de montanha da Lídia. Meu querido marido Anfião é filho de Zeus e Antíope, a filha do rei NICTEU, um dos Espartos tebanos originais que brotaram dos dentes do dragão. Então, meus amados filhos e filhas realmente podem se gabar de uma linhagem mais distinta, podemos dizer, do que qualquer outra família no mundo. Não que eu vá jamais permitir que se gabem, é claro. Os bem-educados nunca são pomposos.

Essa bobagem toda podia não ser mais do que ligeiramente lamentável, se não fosse pelo fato de Niobe se atrever a se comparar com a Titânide Leto, mãe de deuses. Exatamente no dia em que o povo de Tebas se reunia anualmente para cantar louvores a Leto e contar a história do milagroso nascimento de Ártemis e Apolo em Delos – bem naquele dia, sagrado para a Titânide e para a sua dignidade –, Niobe desabafou seu ataque mais arrogante.

— Quer dizer, eu seria a primeira a admitir que os queridos gêmeos de Leto, Ártemis e Apolo, eram encantadores e inteiramente divinos, é claro que eram. Mas só dois filhos? Uma menina e um menino? Oh, céus, não consigo entender como é que ela pode sequer se chamar de mãe. E quem vai dizer que meus sete filhos e sete filhas não serão, alguns deles, senão todos, elevados ao posto de divinos e imortais? Dado o nascimento deles, acho que têm uma grande probabilidade, não acham? Na minha opinião, celebrações para uma mãe tão preguiçosa, vulgar e improdutiva como Leto são de muito mau gosto. No ano que vem, vou me certificar de que o festival seja inteiramente cancelado.

Quando Leto ouviu dizer que aquela tebana pretensiosa a estava insultando desse modo, e ousando se estabelecer acima dela, explodiu em lágrimas na frente de seus gêmeos solidários.

— Aquela mulher horrorosa, arrogante, convencida — engasgou Leto. — Ela disse que sou preguiçosa por ter apenas dois filhos… Ela disse que sou improdutiva… Ela me chamou de vulgar. Ela disse que impediria o povo de Tebas de festejar meu d-d-dia de comemoração…

Ártemis pôs um braço em torno dela enquanto Apolo andava de cá para lá dando socos na mão.

— Ela tem catorze filhos — queixou-se Leto. — Então, suponho que, comparada a ela, sou inadequada…

— Chega! — interrompeu Ártemis. — Vamos, irmão, ela fez nossa mãe chorar. É hora dessa mulher aprender o significado das lágrimas.

Ártemis e Apolo foram direto para Tebas, onde caçaram cada um dos catorze filhos de Anfião e Niobe. Ártemis matou as sete filhas com suas flechas de prata; Apolo matou os sete filhos com as suas de ouro. Quando levaram a notícia do massacre para Anfião, ele se suicidou caindo sobre sua espada. A dor de Niobe também foi insuportável. Ela fugiu para sua terra natal e encontrou refúgio nas encostas do monte Sípilo. Não importa quão esnobe, estouvada, orgulhosa e absurda ela tivesse sido, uma infelicidade tão absoluta e inconsolável era terrível de ver. Os próprios deuses não aguentaram ouvir seus incessantes lamentos e a transformaram numa pedra. Mas nem mesmo pedra sólida conseguia reter lágrimas como as dela. O choro de Niobe empurrou suas lágrimas através da pedra e as mandou cascateando numa cachoeira montanha abaixo.

Até hoje, os visitantes do monte Sípilo podem ver a formação rochosa na qual ainda se podem perceber os contornos de um rosto feminino. Em turco, é conhecida como A layan Kaya, ou “Rocha que chora”. Tem vista para a cidade de Manisa, o nome moderno de Tantalis. As águas que jorram dessa rocha fluirão para sempre em sua dor.

Apolo e Marsias: bochechas infladas

Os mortais humanos não são os únicos seres capazes de exibir orgulho excessivo. A autoimagem machucada da deusa Atena levou, indiretamente, à queda de uma convencida criatura chamada MARSIAS.

Tudo começou quando Atena orgulhosamente inventou um novo instrumento musical, que ela chamou de aulos. Era uma flauta com palheta dupla da família que chamamos hoje de madeiras, parecida com o moderno oboé ou com o corne-inglês. Havia um problema com esse esplêndido instrumento: sempre que Atena o tocava – por mais maravilhosa, sem dúvida, que fosse a música que saía dele –, só provocava gargalhadas em seus companheiros olímpicos. Não havia meios de Atena conseguir emitir um som agradável sem soprar tão forte que suas bochechas se estufassem. Ver essa deusa, a própria personificação da dignidade, ficar toda vermelha e inchada como um sapo-boi era mais do que sua desrespeitosa família podia aguentar sem morrer de rir. Sábia como Atena era, e livre (pela maior parte) de afetação e convencimento, ela não era inteiramente sem vaidade, e não suportava ser ridicularizada. Depois de três tentativas de ganhar os deuses com os sons melífluos de seu novo instrumento, ela praguejou e o jogou para baixo do Olimpo.

aulos caiu na Ásia Menor, no reino da Frígia, perto do rio Meandro (cujo curso serpenteante dá seu nome a todos os cursos de água cheios de desvios), e foi apanhado por um sátiro chamado Marsias. Como seguidor de Dioniso, Marsias era dotado de curiosidade, além de outros traços desonrosos. Ele tirou a poeira do aulos e soprou. O resultado foi um pequeno pio. Ele riu, coçando o tremor que fazia cócegas em seus lábios. Bufou e soprou forte outra vez até produzir uma nota musical, longa e alta. Foi divertido. Continuou desse jeito, soprando e soprando, até conseguir, depois de um tempo surpreendentemente curto, tocar uma música de verdade.

Dentro de um ou dois meses, sua fama tinha se espalhado por toda a Ásia Menor e a Grécia. Ele passou a ser celebrado como “Marsias, o Musical”, cuja habilidade no aulos conseguia fazer árvores dançarem e pedras cantarem.

A fama e a adulação que sua música trazia davam-lhe uma enorme satisfação. Como todos os sátiros, ele exigia pouco além de vinho, mulheres e música para ser feliz, e seu domínio sobre a terceira garantia um suprimento fácil dos outros dois.

Uma noite, com o fogo estalando, e com as Mênades a seus pés olhando para ele em adoração, ele exclamou, embriagado, aos céus.

— Olhe aqui, Apolo! Você, deus da lira! Você se acha tão musical, mas aposto que se houvesse uma compichão… uma compenção… uma condição… Qual é a palavra?

— Competição? — sugeriu uma Mênade sonolenta.

— Uma dessas, sim. Se houvesse… isso que ela disse… eu ganhava. Fácil. Com um pé nas costas. Qualquer um pode dedilhar uma lira. Mixuruca. Mas minhas flautas…. Minhas flautas ganham de suas cordas em qualquer dia. Então, é isso.

As Mênades riram, Masias também riu, arrotou e caiu num sono satisfeito.

A competição

No dia seguinte, Marsias saiu com seus muitos seguidores para o lago Aulocrene. Eles tinham combinado se encontrar lá com outros sátiros para uma grande festa na qual Marsias ia tocar danças selvagens, coribânticas, de sua própria composição. Ele ia arrancar alguns juncos das margens do lago (cuja abundância era indicada pelo próprio nome – aulos significa “junco” e krene, “fonte” ou “nascente”) e cortar uma nova boquilha para seu aulos. Soprando e dançando, ele conduziu seus seguidores numa alegre trilha de música, até que virou uma curva e viu seu caminho bloqueado por um espetáculo assombroso e perturbador.

Um palco tinha sido construído num prado e, nele, estavam sentadas as nove Musas num amplo semicírculo. No centro do palco, com uma lira na mão, estava Apolo de pé, um sombrio sorriso brincando em seus lindos lábios.

Marsias parou numa derrapada, os diversos sátiros, faunos e Mênades trombando nele e uns nos outros, numa verdadeira balbúrdia.

— Bem, Marsias — disse Apolo. — Está pronto para pôr suas bravas palavras à prova?

— Palavras? Que palavras? — Marsias tinha se esquecido de sua bravata na bebedeira da noite anterior.

— “Se houvesse uma competição entre mim e Apolo”, você disse, “eu o venceria com um pé nas costas”. Chegou a sua chance de descobrir se isso é verdade. As próprias Musas viajaram desde o Parnaso para nos ouvir e julgar. A palavra delas é final.

— M-m-mas… eu… — A boca de Marsias estava subitamente muito seca e suas pernas, subitamente muito bambas.

— Você é ou não é um músico melhor do que eu?

Marsias ouviu atrás dele um murmúrio de dúvida de seus seguidores, e as chamas de seu amor-próprio se incendiaram outra vez.

— Em uma competição justa — ele declarou, com uma rajada de bravata —, eu certamente consigo tocar melhor do que você.

O sorriso de Apolo se ampliou.

— Excelente. Venha aqui para o palco. Vou começar. Eis aqui uma pequena melodia. Veja se você consegue responder a ela.

Marsias tomou posição ao lado de Apolo, que se inclinou para afinar a lira. Depois que acabou, suavemente dedilhou e delicadamente pinçou. Saiu a mais linda melodia – sutil, doce e sedutora. Foram quatro frases e, depois que soou a última, os seguidores de Marsias romperam num aplauso aprovador.

Imediatamente, Marsias levou o aulos à boca e repetiu as frases. Mas deu a cada uma delas uma modulação pequena e refinada – uma chuva de notas ornamentais aqui, uma cascata de acidentes ali. Um arquejar de admiração de seus seguidores e até um aceno de aprovação da própria Calíope o encorajaram a terminar com um floreio.

Apolo replicou imediatamente com uma variação nas frases em tempo duplo. A complexidade de suas pinçadas e de seus dedilhados era maravilhosa de se ouvir, mas Marsias respondeu com ainda maior velocidade, a melodia borbulhando e cantando de suas flautas com um esplendor mágico que provocou ainda mais aplausos da plateia.

Então, Apolo fez uma coisa extraordinária. Virou sua lira de cabeça para baixo e tocou as frases de trás para a frente – elas ainda se mantinham como uma melodia, mas estavam imbuídas de um mistério e uma estranheza que enfeitiçaram todos os que ouviam. Ao terminar, Apolo acenou para Marsias com a cabeça.

Marsias tinha um ouvido excelente e começou a tocar as melodias invertidas exatamente como Apolo, mas o deus o interrompeu com desdém.

— Não, não, sátiro! Você tem de virar seu instrumento de cabeça para baixo como eu fiz.

— Mas isso… isso não é justo! — protestou Marsias.

— E isto, então? — Apolo tocou sua lira e cantou: — Marsias consegue soprar nessa coisa infernal. Mas consegue ao mesmo tempo cantar?

Furioso, Marsias tocou tudo o que podia. O rosto ficou roxo com o esforço, e as bochechas ficaram tão inchadas que ele parecia que ia estourar, centenas de notas explodindo numa revoada de semínimas, colcheias, semicolcheias – enchendo o ar com uma música que o mundo jamais tinha escutado antes. Mas a voz divina de Apolo, os acordes e arpejos que voavam das cordas douradas de sua lira… Como poderiam as flautas de Marsias competir com um som como aquele?

Arfando de exaustão e soluçando de frustração, Marsias exclamou em voz alta:

— Não foi justo! Minha voz e meu sopro cantam no meu aulos tanto quanto sua voz canta para o ar. É claro que não posso virar o instrumento de cabeça para baixo, mas qualquer juiz imparcial vai dizer que minha habilidade é a maior.

Julgamento

Com um glissando final de triunfo, Apolo se voltou para o júri das Musas.

— Doces irmãs, não me cabe dizer, é claro que são vocês que decidem. A quem vocês concederiam a palma da vitória?

Marsias, agora, estava descontrolado. A humilhação e um ardente sentimento de injustiça o levaram a se virar contra as juízas.

— Elas não podem ser imparciais, são suas tias ou suas meias-irmãs ou alguma dessas coisas incestuosas. São sua família. Nunca ousarão…

— Psiu, Marsias! — apelou uma Mênade.

— Não o escute, grande deus Apolo! — recomendou outra.

— Ele está histérico.

— Ele é bom e honrado.

— Ele tem boa intenção.

Não demorou muito para as Musas se reunirem e anunciarem os resultados.

— Unanimemente declaramos — disse Euterpe — que Apolo é o vencedor.

Apolo fez uma mesura e sorriu docemente. Mas sua ação seguinte pode fazer com que você desconsidere para sempre esse deus dourado e lindo, o melodioso Apolo do raciocínio, charme e harmonia.

Ele pegou Marsias e o esfolou. Não há um jeito bom de dizer isso. Para punir Marsias por seu húbris em ousar desafiar um olímpico, ele descascou a pele do corpo vivo do sátiro, que gritava, e a pendurou num pinheiro como lição e aviso para todos.

O “Esfolamento de Marsias” se tornou um dos temas preferidos de pintores, poetas e escultores. Para alguns, sua história ecoa o destino de Prometeu: um símbolo da luta do artista-criador para se equiparar aos deuses, ou da recusa dos deuses em aceitar que artistas mortais possam superar o divino.