O ADIVINHO
O cais de um porto grego. Ao fundo estão as efígies gigantescas de diversos navios, compondo uma esquadra. Há um grande ir e vir de soldados e ruídos de armas que se entrechocam involuntariamente. Calcas, o adivinho do exército, está inquieto, observando as velas das naus, que estão caídas e perfeitamente imóveis. Ele as observa, preocupado, por um bom tempo, indo e vindo lentamente, enquanto esbarra nos soldados. Neste instante entram Agamenon e Ulisses, fardados para a guerra.
Calcas, avançando para ambos: — Nobre comandante! Os deuses dos ventos não parecem dispostos a nos auxiliar em nossa campanha. Veja como as velas de nossas naus colam-se aos mastros, como pendões inúteis.
Agamenon, encarando o adivinho com firmeza, lhe diz rudemente — Arúspice do óbvio, o que mais tem a nos dizer que já não o saibamos à exaustão?
Calcas baixa a cabeça, ocultando o despeito — Senhor, já consultei nosso oráculo, e ele sempre me repete o mesmo…
Um silêncio sobrevém por alguns instantes, até que o comandante o quebra.
Agamenon — Fica mudo… é isto, adivinho do silêncio?
Espocam alguns risos de pessoas que estão em torno.
Ulisses— Vamos, Calcas, não pode encadear uma frase na outra sem enfadar a alma de seus ouvintes com suas pausas aborrecidas?
Calcas, erguendo a cabeça — O que os fados têm a lhe dizer, valoroso capitão, talvez não sejam palavras que tragam muita alegria à sua alma.
Agamenon — Qualquer coisa me alegrará mais que este seu ar de mistério enfadonho.
Vamos, diga logo o que suas artes mágicas disseram!
Calcas, cobrindo o rosto com o manto — Oh, mas são negras palavras…
Agamenon, aproximando seu rosto do adivinho — Negro ficará seu olho direito, postergador maldito! Vamos, diga o que tem a dizer ou retire já da minha presença a sua figura exasperante!
Calcas, tomando coragem — Comandante… O oráculo é categórico em afirmar que tal retardo dos ventos não tem outra causa senão a sua própria pessoal Calcas, ainda, à parte — Pronto! Está dito tudo!
Ulisses, lançando o manto para trás — Agamenon culpado pela ausência de ventos, que há dois anos nos retém neste porto de Áulis? E por que razão os deuses poriam empecilho à partida dele e de nossos exércitos, se causa mais nobre e mais justa nunca houve no mundo?
Agamenon, bradando — Um cão traiçoeiro, de nome Páris, vem até a pátria de meu irmão Menelau, rapta-lhe a mulher, a mais bela de quantas houve em toda a Hélade, levando-lhe ainda os seus tesouros. Eu, seu irmão, decido, então, empreender junto com ele uma expedição até Tróia maldita para resgatar a sua esposa e a sua honra. Que há nisto tudo, adivinho insolente, que me indisponha contra qualquer divindade?
Algumas vozes levantam-se entre os ouvintes, que agora se apinham em volta dos três, ouvindo-se claramente esta frase — Basta! Voltemos para casa, pois não há mais dúvidas de que os deuses abominam tal expedição!
Agamenon, voltando-se para a soldadesca — Silêncio, escória! Se temos de levar tais soldados, que a qualquer pretexto renunciam à sua obrigação, vamos bem arranjados!
Ulisses, dispersando a multidão — Eia, canalha! Esta conversa não é para orelhas de asno!
Agamenon, pegando Calcas pelos ombros — Vamos, adivinho de maus agouros, diga tudo o que ouviu do oráculo.
Calcas, de espinha ereta, sentindo-se agora importante — Nobre comandante! A Aurora de róseos dedos ainda não havia surgido de todo no negro empíreo, quando me aproximei naquele dia, repleto de maus pressentimentos, diante do oráculo…
Agamenon, interrompendo-o — Esqueça a Aurora maldita e ponha o sol bem no alto de seu relato, falador incansável, se não quiser adiar para sempre o seu palavreado!
Calcas, algo frustrado — Está bem, comandante, está bem. O oráculo me disse exatamente isto. — Mudando o tom da voz para um tom gutural, mas à sério — “Eis que os ventos cessarão de soprar, até que o presunçoso guerreiro se prosterne diante de Diana sublime!”
Agamenon — O “presunçoso guerreiro” sou eu, suponho?
Calcas, encabulalado — Temo que sim, audaz comandante…
Agamenon — Adiante, debulhador de enigmas!
Calcas, retomando o fio — A deusa Diana está enfurecida porque o senhor lhe fez há muitos anos uma promessa e está decidida a não aceitar mais postergações no seu cumprimento.
Ulisses, intervindo — Promessa? Que promessa?
Agamenon empalidece enquanto ambos aguardam a resposta.
Calcas — Outrora você prometeu à Diana valorosa que lhe sacrificaria o mais belo ser que nascesse em seu reino…
Agamenon larga Calcas e afasta-se dele e de Ulisses, a passos lentos. Após alguns instantes de silêncio, volta-se para os companheiros e diz, com a voz alquebrada — Sim, é verdade, Ulisses fiel… Há muitos anos fiz tal promessa insensata.
Calcas — A deusa determinou que esta expedição só deixará este porto quando promessa for cumprida integralmente!
Ulisses — Mas quem é esse ser infeliz que deverá passar por tão terrível ordálio?
Calcas, erguendo a voz, como quem finalmente pode revelar um terrível segredo — A vítima não há de ser outra senão Ifigênia, a filha de Agamenon!
Agamenon faz menção de voltar a discutir com Calcas, mas desiste. Depois diz a Ulisses —
Clitemnestra, minha esposa, jamais aceitará tal solução!
Um rebuliço desperta a atenção dos três: é Menelau quem chega, rodeado de seus generais.
Agamenon, adiantando-se para ele — Menelau, meu irmão!
Os dois imãos abraçam-se efusivamente.
Menelau— Agamenon, a situação está se tornando insuportável! A peste já começa a grassar entre os soldados!
Ulisses— Temos, também, a peste entre nós?
Menelau— Sim, já perdemos dezenas de homens. — Vira-se, então, para o adivinho —
Calcas, já falou com meu irmão sobre o que precisa ser feito?
Calcas— Sim, comandante, mas receio que essa decisão custe mais do que possamos lhe exigir…
Agamenon, procurando justificar-se perante o irmão — Menelau, Diana está tomada pela ira e exige que lhe dê minha filha, sangue do meu sangue, para que deixe de nos perseguir!
Menelau — É desnecessário repetir a história, Calcas já me contou tudo. Vim atrás de você para saber que decisão tomará quanto a isto.
Agamenon — Bem sei dos deveres que me prendem à deusa, embora a dor que me dilacera o peito. No entanto, há Clitemnestra, minha esposa. Ela jamais aceitará ver-lhe tirada dos braços a própria filha, que é a luz dos seus olhos!
Menelau — Permitirá, então, que as choradeiras de uma mulher provoquem a ruína de seu irmão e de sua pátria? É isto, caro irmão?
Agamenon silencia. Depois de alguns instantes, acabrunhado, resmunga: Agamenon, humilde — Se Clitemnestra concordar, acatarei a ordem da deusa.
Menelau, enfurecendo-se — Você se recusa a obedecer à deusa, isto é que é!
Um dos generais exclama: — Elejamos um novo comandante, ó Menelau!
Outras vozes aduzem:
Primeira voz— Isto! Isto! Um novo comandante!
Segunda voz— Morreremos todos da peste neste porto maldito!
Terceira voz— Cumpramos o que a deusa exige de nós!
Quarta voz— Que Palamedes seja, então, nosso novo comandante!
Ulisses, fazendo menção de se retirar— Se Palamedes assumir o comando, não tomarei parte nesta expedição.
Menelau, tomando Ulisses pelo braço: — Espera, filho de Ítaca! Depois, voltando-se para Agamenon: — Veja, Agamenon, a obra de sua fraqueza… Seus pruridos sentimentais começam a provocar a rebelião entre nossos próprios generais! Chegou a hora de tomar uma decisão.
Ulisses, para Agamenon, tentando acalmá-lo: — Compreendo seu dilema, Agamenon.
Façamos isto, então: sua filha, bem como sua esposa, não saberá do que irá acontecer, senão no último instante, quando se fará o que a deusa exige de você.
Calcas, à parte: — Ó astuto Ulisses! Agamenon — Um estratagema?
Ulisses— Exatamente. Vamos dizer a ambas que contratamos o casamento de Ifigênia com o valoroso Aquiles. Escreve à sua esposa e diga a ela que sua filha deve vir imediatamente até nós.
Agamenon — Está bem…
Ulisses— Mas, atenção: ela deve vir sozinha.
Calcas, à parte — Filho de Laerte, você será grande!
Ulisses— Diga a Clitemnestra que seria indigno da esposa de um rei aparecer diante dos seus exércitos.
Calcas, à parte: — Bem imaginado!
Menelau — Peça para ela que faça isto o mais rápido possível, pois aguardamos apenas a celebração deste casamento para partirmos para Tróia.
Agamenon — Mas e o que dirá Aquiles disto? Não ficará aborrecido ao saber que usamos seu nome em vão?
Ulisses — Pode ser em vão uma artimanha que livrará seu irmão da ignomínia e restabelecerá a honra de sua família?
Calcas, à parte: — Ó engenho sutil!
Agamenon, depois de algum tempo: — Está bem, tudo será feito como quiserem.
Menelau estende a seu irmão uma tabuleta, onde este deverá escrever a carta. Agamenon a toma, arrasado, e começa a escrever, debaixo de um silêncio opressivo.
Cai o pano.
UMA TENTATIVA DESESPERADA
O interior de uma grande tenda de campanha. É noite. Agamenon está deitado de bruços e chora convulsamente. Depois volta para cima o rosto coberto pelas mãos e exclama: Agamenon — Júpiter supremo, o que foi que fiz? Minha Ifigênia adorada ofertada em holocausto! Oh, crueldade atroz! Ter o peito rasgado pela lâmina do sacrifício! Como pude permitir tal monstruosidade?
Depois de chorar mais um pouco, no entanto, Agamenon cessa abruptamente as lágrimas. Uma idéia lhe ocorreu.
Agamenon, pondo-se em pé, de um salto: — Não, não permitirei tal coisa! Desfarei o que maus conselhos me induziram a fazer!
Imediatamente pega uma tabuleta e põe-se a escrever freneticamente.
Agamenon — Eis o que escreverei a Clitemnestra: “Minha esposa, atente bem para o que lhe digo: não mande para cá a nossa querida Ifigênia. Guardou a tabuleta num invólucro e voltou-se para a entrada da tenda. — Soldado! Venha já até aqui!
Um soldado entra rapidamente.
Agamenon — Está vendo esta mensagem?
Soldado — Sim, senhor.
Agamenon — Quero que a leve, sem mais perda de tempo, até a minha esposa. Não dê descanso a seu cavalo, nem faça pouso ou parada alguma sob pena de sua própria vida, entendeu?
Soldado— Sim, senhor.
Agamenon — Vamos, retirá-se e vá dar cumprimento à sua missão. Agamenon fica só outra vez.
Agamenon, caindo outra vez no leito: — Que os deuses protejam minha Ifigênia e façam com que esse mensageiro chegue ainda a tempo!
As luzes apagam-se. Alguns instantes depois acendem-se novamente. Agamenon está adormecido. O dia amanhece. Menelau irrompe tenda adentro segurando algo.
Menelau, em altos brados: — Vamos, levante!
Agamenon acorda, assustado: — O que foi, meu irmão?
Menelau— “Irmão”! Falta pouco para que o proíba de me chamar por este nome, asseguro!
Agamenon -Por que as flamas da ira abrasam tanto seu coração? Menelau, lançando às faces do irmão a carta que este enviara às ocultas: — Aqui está, tratante, o motivo de minha ira!
Agamenon reconhece o objeto e fica revoltado.
Agamenon — Então você ousou me espionar e interceptar uma carta que mandei à minha esposa? Com que direito o fez?
Menelau -Com mais direito que você, que torna atrás de um compromisso solene que assumiu diante de mim e de meus generais. Acaso está brincando com a minha honra? Quer espalhar o escárnio e o deboche na boca de meus soldados?
Agamenon, tornando à humildade: — Um pai não tem, então, o direito de tentar salvar sua filha da morte cruel?
Menelau — Você não tem o direito de sobrepor à honra do Estado os seus mesquinhos interesses pessoais! Ifigênia terá a honra de ofertar sua vida em prol de milhares de seus cidadãos e de restaurar a honra de sua pátria. É pouco? Não basta?
Agamenon— A mim bastaria tê-la ao meu lado, mesmo no infortúnio, pois o que é a alegria e a honra sob uma ausência terrível?
Menelau— Basta de choradeiras! Ifigênia deve chegar em breve. Devemos avisar o sacerdote para que prepare logo o local do sacrifício, diante de nossas tropas.
Menelau sai da tenda e Agamenon, prostrado pelo insucesso de sua tentativa, cai derreado ao leito.
Cai o pano.
IFIGÊNIA EM ÁULIS
Acampamento. A tenda de Agamenon está à direita. O céu está carregado e alguns relâmpagos clareiam esporadicamente o cenário, quase mergulhado nas trevas, iluminado apenas por alguns archotes. Um grupo chega, num grande alarido. De uma liteira desce uma moça de grande beleza.
Vigia — Comandante! Ifigênia, filha de Agamenon, já está entre nós!
Ifigênia, ansiosa: — Onde está meu pai? Morro de saudades!
Agamenon, saindo de sua tenda, às pressas: — Minha filha! Oh, minha adorada Ifigênia!
Abraça-se dramaticamente à sua bela filha, em prantos.
Ifigênia, tomando o rosto do pai em suas mãos: — Meu pai, por que choras?
Agamenon— Não sei, minha filha, não sei… Só sei que as lágrimas caem-me aos pares dos olhos.
Ifigênia — Alegre-se, meu pai, pois venho para meu casamento. Teremos uma festa, pois não?
Agamenon — Festa… Sim… Um sagrado himeneu…
Aos poucos vão chegando os demais, Menelau, Ulisses e Calças.
Ifigênia— E, então, onde está meu futuro marido?
Agamenon, quase divagando: -M-marido…?
Ifigênia, alegremente: — Sim, papai, o homem junto do qual sacrificarei a Vênus.
Agamenon — Sacrificará…!
Ifigênia — Que tem, afinal, meu pai? Voltando-se para Menelau: — Papai está doente, meu tio?
Menelau — Seu pai esteve um pouco doente, Ifigênia… A cólera tem dizimado muitos homens por aqui.
Ifigênia, abraçando-se ao pai: — Oh, meu pai, doente! Volte para a cama, papai!
Agamenon — Estou bem, minha filha… À parte: — Minha doença chama-se remorso…
Nesse instante, Clitemnestra surge repentinamente.
Clitemnestra — Ora, que tantos abraços e lágrimas são estes, afinal, que ouço desde lá de fora do acampamento?
Todos ficam estupefatos diante da presença inesperada da esposa de Agamenon.
Agamenon, desvencilhando-se dos braços da filha: — Clitemnestra! Que faz aqui?
Clitemnestra, fazendo pouco caso do marido: — Perguntar a uma mãe o que faz junto da filha no dia do seu casamento é uma pergunta que só um toleirão como você, meu marido, poderia fazer.
Agamenon— Casamento… Casamento de quem?
Ifigênia— Da sua distração com sua desatenção, por certo!
Menelau, adiantando-se com um ar severo: — Clitemnestra, não recebeu uma carta ordenando expressamente que não viesse juntamente com sua filha Ifigênia?
Clitemnestra, olhando-o duramente: — Naturalmente que resolvi desobedecer
“expressamente” uma carta néscia e atrevida como esta. Esse disparate, aliás, é bem seu, caro Menelau! Se sua própria esposa Helena não lhe deu ouvidos! —
Depois, voltando-se para todos os lados: — E o noivo, o belo Aquiles, onde está? Quero ver com meus próprios olhos se é mesmo tudo aquilo que dele dizem por aí.
Um relâmpago ofusca tudo, fazendo com que Ifigênia se encolha.
Clitemnestra — Ifigênia, querida, ao que vejo seu casamento se fará sob os auspícios de Júpiter tonante! Já sinto o cheiro da chuva errando no ar. Aspira profundamente.
Um trovão estoura, sacudindo tudo.
Clitemnestra — Viva! Adoro chuva! Vejam só que trovão. — Depois, voltando-se para os demais: — Onde estão as lonas de proteção? Não estão vendo que um temporal vai desabar em instantes?
De repente Clitemnestra identifica Calças, o adivinho.
Clitemnestra — Ah, aí está o decifrador de oráculos! Então, faça uso dos seus poderes e traga logo Aquiles até nós. Vamos, velho charadista, dê logo um jeito nisto!
Calças — A esposa de Agamenon há de entender que meus dons não são exatamente estes, senão os de receber e interpretar os oráculos sagrados que a mim são revelados…
Clitemnestra, dando-lhe as costas: — Adeus, charlatão. Não estou para dar ouvidos a um homem que fala mais do que a ninfa Eco!
Ifigênia, depois de deixar o pai no interior de sua tenda, reaparece em prantos.
Ifigênia, abraçando-se à mãe: — Mamãe, papai está mal! Às vezes diz que este é um momento de grande alegria, para logo em seguida cair num pranto convulso. Há algo errado com ele, deve estar muito doente!
Clitemnestra -Esqueça o seu pai. Deve estar bêbado. Eles sempre ficam nesse estado às vésperas de perder suas filhas.
Nesse instante, Aquiles, o noivo, aparece. Os demais já se retiraram.
Clitemnestra — E este, agora, quem é?
Aquiles— Perdão, não quis interrompê-las…
Clitemnestra — Esteja à vontade. — À parte: (Bonito deste jeito, bem poderia ser o eleito de minha filha!) — Sou a esposa de Agamenon e esta é minha filha, Ifigênia.
Aquiles— Encantado em conhecê-las.
Clitemnestra — E você, jovem guerreiro, quem és?
Aquiles— Sou Aquiles, filho de Peleu e Tétis.
Clitemnestra, eufórica: — Ora, então, o que achou de sua noiva?
Aquiles— Perdão, senhora, mas não entendo suas palavras.
Ifigênia -Mamãe, o que está havendo, afinal?
Clitemnestra— O que está havendo é que ou todos os homens deste acampamento enlouqueceram ou estão bêbados como a burra de Sileno!
Ifigênia, para Aquiles: — Eu sou a mulher que meu pai resolveu lhe dar por esposa.
Aquiles, se irritando: — Perdão, mais uma vez, bela jovem, mas nada sei de tal casamento.
Devem ter-lhes feito uma burla.
Ifigênia oculta o rosto no ombro de sua mãe.
Clitemnestra, tornando-se repentinamente séria: — Escute aqui, rapaz, que espécie de tramóia estão todos armando para cima de minha filha? Vamos, conte logo o que sabe!
Aquiles— Estou nisto tão inocente quanto meus netos que estão por vir, minha senhora.
Clitemnestra -Está bem, meu jovem. Terei de lançar mão, então, de meus meios! Por Vênus sagrada que vou descobrir o que esses malditos tramam contra minha filha.
Clitemnestra olha para os lados e vê um de seus serviçais. Faz-lhe um sinal para que venha até ela.
Clitemnestra— Conheço você. É o serviçal direto de meu esposo, Agamenon, e sei que são íntimos o bastante para que ele de você nada oculte. Conte-me, então, tudo o que se planeja com relação à minha filha, ou vou armar uma intriga tão medonha para o seu lado que Agamenon em menos de vinte e quatro horas mandará fazê-lo em pedaços e lançar seus restos aos cães. Fui clara, lacaio?
Serviçal— Mas não posso trair a confiança de meu senhor.
Clitemnestra — Você já disse o principal. Realmente aquele cão trama algo contra minha Ifigênia. Diga o resto, vamos!
Serviçal, intimidado: — O oráculo da deusa Diana exige o sacrifício de sua filha para que os exércitos possam ter sucesso em sua campanha. Agamenon foi obrigado a ceder. Eis tudo.
Clitemnestra, horrorizada, abraça-se à sua filha: — Ifigênia posta sob a pedra dos sacrifícios!
Estarei escutando isto?
Aquiles — Isto é terrível! Por que usaram meu nome para acobertar tal monstruosidade?
Ifigênia — Acalme-se, mamãe! Papai é contra esse sacrifício e impedirá que tal coisa aconteça!
Clitemnestra— Seu pai é um fraco, um joguete nas mãos daquele imbecil de seu tio!
Além do mais sua vaidade falará mais alto quando tiver a oportunidade de ostentar seu poder perante essa canalha inteira. Ouça o que estou lhe dizendo!
Ifigênia— Não, mamãe, não diga tal coisa!
Agamenon sai de sua tenda e vem em direção ao pequeno grupo.
Serviçal— Meu senhor aproxima-se. Devo retirar-me.
Aquiles— Também vou junto com você.
Clitemnestra— Vejamos o que este pulha tem a nos dizer!
Agamenon -Vamos para dentro, minhas queridas. O temporal pode desabar a qualquer momento.
Ifigênia, para seu pai: — Meu pai, que mal fiz eu para Diana para que queira meu sangue em holocausto?
Agamenon, arregalando os olhos: — O que dizes, minha filha?
Clitemnestra, enfurecida: — Vamos, fingido, já sabemos de tudo! Como ousa oferecer sua própria filha em sacrifício para saciar a ambição e o despeito de seu irmão? Prefere, então, este pulha à sua própria filha?
Ifigênia, tomando as mãos de Agamenon: — Papai, você não permitirá isto, não é?
Agamenon, completamente abatido: — Pensa, minha filha, que não sofro diante desse terrível fado que pesa sobre você?
Clitemnestra -Monstro insensível! Quer levar avante, ainda, esse plano hediondo? Vai permitir que mãos assassinas enterrem o punhal do sacrifício no peito da filha que viu sair de minhas entranhas? Espera, então, que eu retorne para nossa casa sem ela? Que direi a todos? Que direi a Orestes, irmão dela, quando o pobre indagar de sua irmã? Diz em falsete: — “Orestes, meu filho, sua irmã casou, é verdade, mas em vez do belo Aquiles, tomou Caronte por esposo!”
Agamenon — Minha esposa… Desgraçadamente coube a mim a má sorte de fazer o primeiro grande sacrifício desta guerra! Muitos outros ainda virão, no entanto, e não cairão somente sobre nós. Os tempos são negros, e a cada qual caberá uma cota de sacrifício e de dor…
Ouvem-se vozes e brados distantes.
Primeira voz— Chegou a hora de aplacarmos a ira da deusa!
Segunda voz— Basta! Nossos homens morrem como moscas!
Terceira voz — Procedamos logo ao sacrifício!
Ifigênia corre aos prantos para os braços do pai, enquanto Clitemnestra permanece hirta, com o ar feroz e determinado. Cai o pano.
O SACRIFÍCIO
Ainda no acampamento. Aquiles entra correndo e dirige-se a Clitemnestra e Ifigênia. Os relâmpagos estão mais intensos e trovões ribombam a todo instante.
Aquiles— Os soldados exigem que Ifigênia seja levada imediatamente ao altar!
Agamenon — Espere, tentarei ainda demovê-los.
Agamenon retira-se.
Ifigênia, para Clitemnestra: — É o fim, minha mãe! As Parcas cruéis já têm em suas mãos a tesoura que cortará o fio de minha vida.
Clitemnestra— Não, minha filha! Aquiles está aqui e há de proteger-te.
Aquiles— Infelizmente meus próprios homens se rebelam, Ifigênia! Mas nem por isso arredarei pé de seu lado. Saca então sua espada e põe-se em posição de defesa.
Ifigênia — É loucura, Aquiles amado! À parte: (Amado, que digo? Sim, amado, porque você me defendeu, ainda mais que meu próprio pai!)
O ruído dos gritos aumenta.
Ifigênia desvencilha-se da mãe e de Aquiles e aponta na direção de onde vêm os gritos: — Eles todos têm razão! É preciso que se proceda ao sacrifício sem mais demora!
Clitemnestra— Não, minha filha! Você não sabe o que diz!
Aquiles— Somente sobre o meu cadáver a levarão para a terrível pedra dos sacrifícios!
Ifigênia, tornando-se serena: — Guarde sua espada, nobre Aquiles. Depois, voltando-se para Clitemnestra: — Quanto a você, minha mãe, serene sua alma, pois a minha não pertence mais a ninguém, senão à deusa que a reclama. Nossos navios devem partir sem mais tardança para Tróia, pois há uma infâmia que atinge a todos nós e deve ser a todo custo reparada. Esse ato infame perpetrado por Páris deve ser castigado, ou a ira divina voltar-se-á inteira contra nós mesmos.
Ifigênia compõe suas vestes e seu cabelo.
Ifigênia, afastando com um gesto de mão Clitemnestra, que faz menção de se aproximar da filha: —
Não, minha mãe, fique aqui. Irei sozinha até o altar e, lá, na presença do sacerdote e dos exércitos, oferecerei meu sangue em holocausto a fim de que seja finalmente aplacada a ira de Diana.
Ifigênia faz menção de seguir, mas a meio caminho retorna, lançando-se aos braços da mãe.
Ifigênia — Adeus, minha mãe… Um dia a deusa permitirá que nos vejamos outra vez, estou certa. Sua cólera há de ser tão curta quão longa há de ser a sua clemência.
Ifigênia retira-se, enquanto Aquiles retém, a custo, Clitemnestra.
Aquiles— É inútil, sua filha já tomou a decisão, e receio que tenha sido a mais acertada…
Clitemnestra, arrancando os cabelos: — Jamais concordarei com o sacrifício de minha filha!
Nenhuma disputa suja de ambições ou despeites valerá jamais o sangue virgem e puro de Ifigênia!
Tenta desvencilhar-se, mas Aquiles novamente a retém.
Clitemnestra, de joelhos e nos braços de Aquiles, finalmente rendendo-se à fatalidade: — Vamos, deixe-me! Vou me recolher à tenda e só sairei dali quando tudo estiver terminado…
Aquiles aguarda que Clitemnestra entre na tenda. Depois afasta-se, lenta e pesarosamente. Relâmpagos e trovões sacodem o céu. Então, tudo fica escuro.
Ainda sob a escuridão começa-se a escutar o sopro do vento, a princípio fraco, que vai avolumando-se até tornar-se quase um vendaval. Ouve-se o ruído da lona da barraca onde está alojada Clitemnestra sacudir e esbater-se. A cena clareia-se.
O serviçal visto anteriormente surge correndo.
Serviçal— Minha senhora! Um milagre espantoso aconteceu!
Clitemnestra sai de sua tenda, sacudida pelo vento. Seu rosto traz as marcas ensangüentadas de suas unhas. Ela nada diz.
Serviçal— Um milagre, minha senhora… Um milagre aconteceu!
Clitemnestra move apenas os olhos na direção do lacaio. Sua voz é cava e quase sem emoção, embora se perceba nitidamente que o ódio ferve em sua alma: — Julga, então, que sou surda, lacaio? Bem sei que minha filha já está morta. Depois, olha ao redor: — Os ventos são mais rápidos que os homens.
Serviçal— Mas senhora, sua filha não está morta! Eis o milagre!
Não vendo reação alguma de Clitemnestra, ele prossegue:
Serviçal— Ifigênia foi levada viva pela deusa! Após subir os degraus do altar e oferecer, com admirável coragem, o seu pescoço ao oficiante, vimos quando este finalmente ergueu o seu punhal. Todos viraram os rostos, pois ninguém, por mais rude ou valente que fosse, pôde sequer admitir a idéia de ver com seus próprios olhos tão terrível cena. Todavia, escutamos perfeitamente quando o punhal foi enterrado na vítima. Porém, quando erguemos nossos olhos, não era mais a doce Ifigênia quem estava no altar, mas um cervo, a se debater nos últimos estertores! “Milagre! Milagre!”, gritamos todos. O sacerdote, então, ordenou que silenciássemos, dizendo em seguida: “Eis que a deusa compadeceu-se de Ifigênia e decidiu poupar sua vida!
Prosternem-se todos à sua divina clemência!” Todos dobramos contritamente nossos joelhos, enquanto o sacerdote retomava a palavra, dizendo: “A deusa levou Ifigênia consigo para Táuris, para que lá seja, a partir de hoje, a sua sacerdotisa. Sua cólera está, enfim, aplacada. Regozijemo-nos!” Neste mesmo instante um forte vento começou a soprar e os soldados ergueram um grito de triunfo e alegria: “Viva! Podemos já partir para Tróia!”.
Nesse instante Agamenon surge em cena. Traz um ar de alegria no rosto e abraça-se à sua esposa.
Agamenon— Alegre-se, Clitemnestra, minha adorada esposa! Nossa filha está salva! A deusa bondosa levou-a, para que seja sua sacerdotisa! Tamanha honra jamais esperamos que um dia viria a nos caber! Depois, voltando-se para o serviçal: — Vamos, temos muita coisa a fazer. Veja, o vento sopra com força cada vez maior! Aproveitemos para lançar ao mar nossa frota e vingarmos, finalmente, a meu irmão Menelau!
Ele deixa sua esposa, após dar-lhe um beijo. O serviçal o segue.
Clitemnestra está agora só diante da tenda. Os relâmpagos cessam, bem como os trovões. Apenas o vento continua a esbater suas vestes e seus cabelos desgrenhados. Então, aos poucos, uma chuva, a princípio fina, começa a cair sobre a solitária figura. Sem perceber, ela permanece imóvel. A chuva aumenta, e Clitemnestra, dando-se conta do fato, ergue sua face ferida e a oferece à água que desce copiosamente do céu. Depois, ergue ambas as mãos e as esfrega na face, para ajudar a limpar o sangue acumulado.
Clitemnestra, olhando para as mãos, que misteriosamente permanecem tintas do sangue, apesar da água que delas escorre, diz, então, com o ar malignamente determinado: -Vingança, Agamenon… Amas, então, a vingança?… Pois seja assim…
Cai o pano.
O ASSASSINATO DE AGAMENON
-… Senhora… acuda…
Clitemnestra, rainha de Argos, estava ainda semi-adormecida, sob a claridade baça das cortinas de seu quarto, quando escutou os gritos quase incompreensíveis de sua escrava.
— Como…? O que dizes aí, louca…? — disse a rainha, emergindo do sono.
— Minha senhora — repetiu a escrava -, acuda logo ao que dizem lá embaixo!
Uma forma indistinta remexeu-se abaixo das cobertas, ao lado da rainha, enquanto esta rumava inteiramente despida para a janela de seu quarto. Depois de encobrir a nudez com a cortina, espiou para fora.
— A guerra terminou, minha rainha! — disse o arauto do reino, montado num cavalo que reluzia de suor. — Tróia está em ruínas, e Agamenon, nosso rei, está prestes a retornar!
— Escrava! — bradou Clitemnestra, voltando-se para dentro. — Mande o arauto subir até meu quarto. — Depois, lançando-se sobre a cama, sacudiu a forma que ainda permanecia adormecida e indiferente, sob as cobertas.
— Egisto, vamos, acorde! — disse a rainha, nervosa. Um rosto sonolento emergiu dos lençóis.
— O que houve… ? — murmurou.
— Vamos, levante-se de uma vez! — disse ela, vestindo-se. — Não é bom que o arauto veja você aqui dentro.
O homem ergueu-se, inteiramente nu, e depois de vestir às pressas seu manto desapareceu por uma porta secreta.
— Avise-me quando o arauto chegar — disse ela à escrava. Dali a instantes ele adentrava a peça.
— Conte-me direito tudo quanto você soube — ordenou-lhe a rainha.
Ele contou, então, que os primeiros combatentes já haviam chegado às cidades próximas, com a boa nova da vitória dos exércitos de Agamenon e Menelau sobre as forças troianas de Príamo e seus filhos Páris e Heitor.
— Nossos exércitos não tardam, rainha, a estar novamente entre nós! -completou ele.
— Então Menelau, meu cunhado, finalmente conseguiu trazer de volta sua querida Helena… E Páris, o raptor e causador de tudo, recebeu seu justo castigo?
— Páris está morto, bem como Heitor, seu irmão — disse o mensageiro, satisfeito. —
Não resta uma pedra inteira em Tróia, ao que dizem. Nossa vitória foi completa.
Clitemnestra, afetando uma alegria exagerada, rodopiou pelo quarto.
— Que maravilha…!
Depois, procurando dar um tom de alegre ansiedade à sua voz, perguntou finalmente por Agamenon, seu marido.
— Ele… vive ainda?
— Sim, rainha, Agamenon, embora ferido, está vivo e goza de boa saúde! Clitemnestra deu largas, então, à sua decepção, chorando copiosamente.
Em seguida fez um gesto brusco com a mão, despedindo o arauto.
— Foi sublime! — cochichou ele, ao cruzar na saída com a escrava. — A rainha não conseguiu conter as lágrimas…!
— Então adeus, arauto, pois já não consigo conter o meu riso! — disse ela, abafando as palavras ao cobrir a boca com a mão.
Clitemnestra ficou ainda um longo tempo andando de um lado para o outro no seu quarto. Uma leve dor começara a latejar no lado direito de sua cabeça. “O desgraçado retorna…!”, pensava ela, nervosamente, no seu ir e vir. “Ele, o pulha, que entregou a própria filha, minha Ifigênia, ao carrasco, espera, então, que eu o receba em meu leito novamente?”
Enquanto Clitemnestra remoia seu ódio, o reino inteiro, no entanto, regozijava-se.
— Clitemnestra, o que faremos? — perguntou-lhe Egisto, seu amante, ainda no mesmo dia. — Seu esposo deve chegar muito em breve.
— Pois bem, que chegue, então! — disse-lhe Clitemnestra, afetando uma despreocupação que não sentia. — Preparemos-lhe uma bela recepção.
— Querida, não se faça de boba! — disse Egisto, tomando-a pelo braço. -Cedo ou tarde a notícia de nosso envolvimento chegará aos ouvidos dele.
Ambos ficaram um longo tempo em silêncio remoendo suas preocupações. Egisto esquadrinhava as paredes em busca de uma solução, quando Clitemnestra tornou a falar; seu tom de voz agora era sério e tinha um fundo de perversidade.
— Uma bela recepção…
— De novo essa bobagem? — disse Egisto, perdendo de vez a paciência. -Vamos, não temos tempo para graças!
— Não compreendeu ainda, seu tolo? — disse a rainha, abraçando-se ao usurpador.
— Não está pensando em… — disse Egisto, feliz ao ver que sua amante compreendera logo o que era preciso ser feito. Afinal, ele tinha na história de sua família uma longa série de atos infames, que remontavam até Tântalo, seu remoto e cruel ancestral.
— Calemos a palavra… As paredes costumam criar orelhas quando ela soa de maneira inadvertida! — disse ela, acariciando o peito nu do amante.
Egisto sorriu, satisfeito. Depois, arrancando o manto de Clitemnestra, levou-a até o leito.
♦♦♦
Finalmente havia chegado o dia em que Agamenon pisaria novamente o solo de sua pátria. O povo, exaltado, enfeitara ruas e praças para recebê-lo. Por toda parte reinava a alegria mais franca. No palácio da rainha, no entanto, as coisas não se passavam exatamente assim: Clitemnestra, tendo passado a semana inteira que antecedera a chegada de seu esposo muito nervosa, havia brigado com seu amante e ofendido-o seriamente. Ela ainda podia sentir no rosto a força da mão direita de Egisto.
“Idiota que fui, também!”, pensava ela, tentando dar alguma razão ao gesto tresloucado de Egisto. “Chamá-lo justamente de ‘filho do incesto’, lembrá-lo que era filho de Tiestes e da própria filha, Pelópia, a única injúria que verdadeiramente o põe louco…!”
— Ora, basta! — disse ela, abanando a cabeça, como quem afasta uma mosca importuna.
— Esqueçamos isto, por enquanto, e retomemos nossa lição…
Rumou então para diante do grande espelho que ornamentava seu quarto. Ali, perfilada, recomeçou seus exercícios de cinismo, que dias antes uma alcoviteira escolada lhe havia ensinado.
— Pratique sempre, minha querida — dissera a megera, com seu peculiar esfregar de mãos aduncas. — Pratique dia e noite!
— “Aga… menon! O… ! Benditos sejam os deuses… !” — disse ela, enquanto fazia um esforço tremendo para estender ao máximo a comissura dos lábios.
“Não esqueça da pausa”, insistira a conselheira: “Aga… menon!” Nesse instante, já quase noite, Agamenon finalmente chegou ao palácio. Estava todo suado da viagem e dos festejos em praça pública.
Clitemnestra, à porta, o aguardava de braços abertos. No seu rosto luzia aquele mesmo sorriso que uma semana de árduo treinamento lhe ensinara a improvisar.
— Aga… menon! O… Benditos sejam os deuses! — disse ela, à perfeição. Agamenon abraçou, perdido de felicidade, a esposa, sob o olhar comovido de todos. Depois ambos foram para dentro do palácio. Junto dele vinha uma mulher de estranho aspecto, que arregalou os olhos de maneira medonha assim que os pôs sobre Clitemnestra.
— Quem é esta mulher, com ar de louca, que trazes contigo? — perguntou a rainha ao esposo, tão logo ficaram a sós em seu quarto.
— É Cassandra, filha do falecido rei de Tróia — disse Agamenon, meio sem jeito. —
Será, doravante, nossa escrava.
Nesse instante, porém, o rei avistara por uma fenda do manto um pedaço do seio branco da esposa, e isto foi o bastante para que começasse a arfar descontroladamente.
— Clitemnestra… — resfolegou o rei, despejando nas faces da rainha o seu bafo quente.
Em seguida agarrou-a com os modos rudes da época, despiu-a brutalmente e consumou ali mesmo, de maneira cega e egoísta, o ato de amor há tanto tempo protelado.
-Agamenon! Acalme-se! — dissera Clitemnestra, tentando em vão aplacar os furores de Vênus que o dominavam por inteiro.
Após saciar seu desejo por várias vezes, Agamenon abandonou aquele corpo e estendeu-se ao largo do leito para recuperar o fôlego. Clitemnestra, por sua vez, sentindo o suor daquele homem grudado ao seu corpo, virou-se para ele e lhe disse, com a mais descuidada das vozes:
— Querido, não quer agora tomar um banho revigorante para recuperar as forças?
Lembre que ainda temos um longo banquete pela frente!
— Banquete? — perguntou Agamenon, de olhos fechados e quase adormecido.
— Sim, meu esposo — disse Clitemnestra, voltando à carga. — Vamos comer e beber até que o flamante carro de Apoio surja outra vez no horizonte.
Aquelas duas palavras, comer e beber, haviam despertado outra vez os vigorosos instintos de Agamenon. Lançando para fora do leito suas pernas de músculos tesos como cordas, Agamenon estava logo em pé, outra vez.
— Tem razão, não podemos frustrar nossos convidados — disse ele, novamente disposto.
Clitemnestra ordenou, então, que Cassandra, a nova escrava, preparasse um banho para Agamenon. Este, reanimado, encaminhou-se para a sala de banhos que ficava no fim do corredor.
Neste mesmo instante Clitemnestra, ainda nua, correu ligeiro até aquela mesma porta secreta que dava acesso ao seu quarto e bateu repetidas vezes. Logo surgiu por uma fresta a cabeça sinistramente alerta de Egisto. Após vasculhar com os olhos a peça inteira, abriu a porta mais um pouco e por ela passou, espremendo o seu corpo robusto.
— Vamos, entre logo! — ciciou sua amante.
— Por que permitiu tantas vezes… ? — foi logo dizendo Egisto, todo alterado, com as unhas ainda enterradas nas palmas das mãos.
— Pssssiu! Que estás dizendo, louco? — disse Clitemnestra, baixinho. Egisto ignorou-a e, após colar seus lábios úmidos aos ombros da amante,
por alguns instantes, arremessou-a em seguida ao leito, com fúria.
— Puá! — fez ele, cuspindo para o lado. — Sua pele fede à saliva podre do cão!
— Cale a boca, idiota! — falou Clitemnestra. — Quer botar tudo a perder com seus ciúmes ridículos?
— Chamas de “ciúme ridículo” ter de assistir à mulher amada ser lambida por um bode asqueroso, feito um osso ordinário?
Algo disse à Clitemnestra que era hora de devolver aquela bofetada anterior, e ela não hesitou em aproveitar a ocasião.
— Veja como usa as suas comparações imundas para comigo! — disse, aplicando às barbas de Egisto uma sonora bofetada.
— Chamou, minha senhora? — disse Cassandra, a nova escrava, entrando abruptamente, alguns segundos depois do tempestuoso idílio.
— Sim, venha até aqui — disse Clitemnestra, cujos olhos despediam faíscas. Cassandra aproximou-se e, tão logo esteve ao pé da rainha, recebeu desta, também, outra sonora bofetada.
— Isto é para você aprender, desde já, a não entrar em meus aposentos sem antes se anunciar! — disse Clitemnestra, escarlate de fúria. — Já para fora!
Para sorte do casal de amantes, Egisto, prudentemente, ocultara-se antes da entrada da infeliz Cassandra. Entretanto, também fora tudo em vão, pois a nova escrava já sabia do romance que ambos mantinham, mesmo antes de chegar à terra de Agamenon, agraciada que fora pelos deuses com o dom da profecia. Por várias vezes havia alertado inutilmente o rei, durante a viagem de retorno a Argos, que sua mulher o traía e que um dia haveria de tramar a sua morte, além da dela própria, Cassandra.
Infelizmente não pudera prever que isto se daria tão em breve.
— Vamos de uma vez! — disse Clitemnestra ao amante, que reaparecera como num passe de mágica, esquecido já da agressão.
Os dois puseram-se, então, porta afora. Egisto tomara uma rede de grossa e intrincada trama e a levava enrolada no braço, enquanto Clitemnestra segurava atrás das costas um pequeno machado de dois gumes.
Assim, pé ante pé e encostados à parede, atravessaram o corredor parcamente iluminado por um archote quase exaurido, que ainda bruxuleava, envolto na penumbra.
Escutaram a voz de Agamenon, que parecia devanear sob a água tépida do banho:
— A sombra do Hades… Silêncio, Cassandra… Um crime hediondo… Silêncio…
Sua barba brilhava, orvalhada pelos respingos da água, enquanto mais acima seus olhos cerrados moviam-se celeremente por baixo das pálpebras.
— Ele sonha…! — disse Egisto, com os lábios colados à orelha de Clitemnestra.
— Vamos acordá-lo, então! — replicou em surdina a mulher, a quem a piedade não consegue afrouxar um único músculo. Depois, erguendo a voz, exclamou, ainda no corredor:
— Agamenon, meu marido! Apresse seu banho que seus convidados lhe esperam!
O marido de Clitemnestra, subitamente desperto, mergulha então a cabeça mais uma vez no fundo da tina. Alguns segundos depois a retira, dando um longo hausto que espalha uma chuva de gotas d’água por toda a peça. Em seguida, põe-se em pé, procurando manter o equilíbrio. O ruído intenso da água que escorre através dos espessos pêlos de todo o seu corpo, indo desaguar na tina quase repleta, dá a impressão de uma chuva abundante que cai naquela peça.
— Chegou a hora, Egisto… VAI! — ordena Clitemnestra a seu amante.
Egisto pula para dentro da peça e lança sobre Agamenon a rede de fios solidamente tecidos.
— O que é isto… ? — exclama Agamenon, debatendo-se feito um inseto na teia. Nesse mesmo instante Clitemnestra, num salto de felina, põe-se às costas do marido e exclama, erguendo ao alto o machado recoberto de crostas de ferrugem:
— Para trás, Egisto! — diz ela, afastando seu cúmplice.
O machado desce velozmente, arrancando do ar um zunido.
Clitemnestra, entretanto, erra o alvo, acertando, em vez da cabeça de Agamenon, a sua clavícula direita. O rei lança um grito terrível e dobra um joelho, envolto sempre nas malhas da rede.
— Isto, celerado, é por ter me arrebatado Ifigênia! — diz Clitemnestra, num tom de voz claro o bastante para ser compreendido.
Com um puxão, Clitemnestra arranca das carnes de Agamenon o ferro imundo e, erguendo-o ao alto outra vez, desce-o em novo golpe feroz. Desta vez obtém sucesso, acertando a cabeça do esposo, que se fende como uma romã.
— Veja, Egisto! — diz ela, tomada por um furor quase báquico. — Com que profusão seu sangue negro verte pelo chão até esquentar os meus pés.
Agamenon já estertora, quando Clitemnestra aplica-lhe um terceiro e definitivo golpe sobre o peito.
Tudo consumado, Clitemnestra e o amante já se preparam para deixar o local do crime quando Cassandra, a filha de Príamo, surge à sua frente. Sua boca espuma e seus olhos esgazeados rebrilham sob a luz tremida do archote, que quase se apagara pela violência dos arremessos do machado.
— Assassina… Assassina… Oh, lugar de maldição! — diz Cassandra, horrorizada.
— Eis, então, a cadela que o porco trouxe de Tróia maldita, para refocilarem juntos! —
exclama Clitemnestra, segurando ainda o cabo do machado, agora completamente molhado do sangue que cai da lâmina.
Ato contínuo, desce a arma sobre a indefesa mulher, que cai morta ao chão.
— Vamos embora, Clitemnestra! — diz Egisto, o assassino de Atreu, que desta vez apenas assistira à consumação de mais uma infâmia.
Quando ambos chegam, enfim, ao quarto de Clitemnestra, a rainha abraça-se finalmente a Egisto.
— Está feito, querido! — diz ela, cujos olhos luzem de satisfação.
— Sim, minha amada! — responde Egisto, enterrando os dedos nos cabelos da rainha.
— “Sim, minha cúmplice”! — diz ela, pedindo com os olhos. — Vamos, repita! Egisto reluta, a princípio, mas finalmente, rendido ao olhar de Clitemnestra, obedece:
— Sim, minha cúmplice. Sim, minha cúmplice adorada!
— Logo, meu amado Egisto, você será feito senhor de todo este reino diz ela, acariciando o largo peito do amante com as mãos que empunharam a arma fatal.
Acostumado, porém, ao odor do sangue das suas vítimas, o ardente Egisto sequer percebe que é seu peito, agora, que está todo manchado de um vermelho escuro e sinistro.
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