Os antigos povos do Oriente, por muito elevado que fosse o seu grau de cultura, pouco prezavam a história… Era assaz generalizada a tese de que os séculos constituem ciclos fechados, os quais se repetem regulamente; acontecimentos já verificados no pretérito se reproduzirão em época futura; a sucessão dos tempos jamais conhecerá remate ou consumação final. Representavam esta concepção recorrendo à figura de uma serpente enrolada, cuja cabeça vem a morder a própria cauda (princípio e fim coincidem no mesmo ponto; todo o movimento que se registra entre os dois termos nada de novo acarreta!). Este circular contínuo e monótono da história era dito “o ritmo do yin e do yang”, “a aspiração e a expiração de Brama”, “a dança de Shiva que produz e destrói sucessivamente os mundos”, “a incessante alternância da Discórdia e da Amizade”.
Isto explica que os antigos orientais pouco se tenham preocupado com historiografia, ou seja, com o relato contínuo e fiel das fases sucessivas da evolução humana. Quando o faziam, visavam apenas episódios restritos ou envolviam as narrativas dentro de concepções lendárias, mitológicas, de sorte que os relatos já não transmitiam a notícia de fatos ocorridos, mas eram, em grau maior ou menor, a expressão da fantasia popular ou de uma religiosidade politeísta, exuberante (nos diversos acervos de ruínas escavados no Oriente até hoje, não se encontrou uma síntese histórica dos tempos antigos; apenas se descobriram elementos -, inscrições, documentos parciais – para se reconstituir a história da Assíria, do Egito, etc.). Ora nesse ambiente o povo de Israel se distingue por ter cultivado a história, e o ter feito com esmero tal que só foi superado pelos gregos, mestres da historiografia ocidental. É o que reconhecem, não sem admiração, os críticos modernos racionalistas:
Dentre todos os povos asiático-europeus, somente Israel e a Grécia possuem autêntica historiografia. Em Israel, que ocupa lugar privilegiado entre todos os povos civilizados do Oriente, a historiografia se originou em época tão remota que causa surpresa, e produziu logo de início obras de importância… Na Grécia surgiu mais tarde.
Com efeito, na literatura dos hebreus, que coincide com os escritos bíblicos, é delineada a história do povo em traços contínuos e de modo que pressupõe a pesquisa de fontes, a transcrição de documentos dos arquivos orientais … Quando é possível controlar as afirmações dos cronistas de Israel à luz de textos profanos, aqueles se comprovam fiéis à verdade, condizentes com o que referem outras fontes. A história de Israel assim descrita se desdobra uniformemente, sob a influência de uma ideologia monoteísta assaz forte para superar crises, aberrações, suscitadas entre os hebreus pela idolatria dos povos vizinhos. E como se explica que os rudes judeus, ultrapassando as categorias culturais do seu ambiente, tenham com tanto esmero cultivado a historiografia?
A razão do fenômeno está na religiosidade de Israel, inconfundível com a das outras nações do Oriente. Longe de professar que a sucessão dos tempos carece de sentido, os hebreus julgavam-na toda perpassada por um plano divino, que nela se vai atuando e tende à consumação no fim dos séculos; viam, pois, nos grandes acontecimentos da história comunicações, ora mais claras ora mais veladas, de Deus; o passado lhes aparecia qual mensagem divina a prenunciar realizações futuras ou a admoestar a melhor conduta de vida. Entende-se, pois, que, movidos por tal ideologia, os escritores de Israel se tenham preocupado com a redação de suas crônicas, dando-lhes côngruo desenvolvimento e realce. Não seria justo, porém, afirmar-se apenas esta nota da historiografia em Israel. Outras observações se devem acrescentar à precedente, a fim de se poderem interpretar com exatidão as crônicas existentes na Sagrada Escritura. Tenham-se em vista, portanto, ainda os seguintes itens:
a) a historiografia israelita é toda pragmática-religiosa, ou seja, procura realçar o sentido religioso dos acontecimentos; sempre que possível, o historiador deduz a lição contida nos fatos. Aliás, entre os próprios pagãos, a história era geralmente considerada qual “mestra da vida”, devendo as narrativas de feitos pretéritos servir de escola às gerações pósteras. Os israelitas tiveram consciência particularmente viva deste princípio, pois, por revelação divina, sabiam que, de fato, Deus fala e age pelos acontecimentos. Em consequência, ninguém estranhará, em algumas passagens historiográficas da Sagrada Escritura, a escassez de pormenores que se diriam de ordem meramente profana, valiosos, sim, para o erudito, mas destituídos de importância para a salvação dos fiéis.
Em consequência do seu pragmatismo, a cronografia bíblica é por exegetas modernos chamada “história profética”. 15Esta designação talvez pareça paradoxal, pois a história se refere ao passado, enquanto a profecia ao futuro. Note-se, porém, que a história bíblica foi escrita por homens inspirados (no sentido acima exposto), homens que tudo viam à luz de Deus; ora o Altíssimo não permitiu fizessem a descrição do pretérito como se fosse algo de fechado em si; ao contrário, fez que redigissem as suas narrativas de modo a conterem alusões ao futuro, constituindo o esquema ou prenúncio de realidades maiores vindouras – o que justamente é profecia. O que interessava os autores bíblicos não era nem simplesmente contar o passado, nem perscrutar o porvir, mas mostrar os traços de um grande desígnio divino que, imutável em si, se vai desdobrando em fases simétricas, adaptadas ao desenvolvimento moral e intelectual do gênero humano.
b) o senso de propriedade literária, de “direitos autorais”, era muito exíguo no Oriente antigo; ao ensinamento por escrito ou à atividade literária se atribuía pouco valor, quando comparados com o magistério de viva voz. Em consequência, os historiadores semitas, os nossos hagiógrafos inclusive, se permitiam transcrever documentos alheios sem indicar as respectivas fontes; praticavam assim o que se chama “citações implícitas”. É bem possível que não tivessem a intenção de garantir a veracidade das passagens assim transcritas, embora nada fizessem para se distinguir do autor de tais ditos.
c) visto que o senso de propriedade literária não suscitava escrúpulos, autores posteriores se permitiam retocar, ampliar, “modernizar” obras dos antigos, sem denunciar explicitamente o seu trabalho de remodelação. Tal caso é frequente na Torá (Lei), onde sê encontram coleções de leis que, embora justapostas, supõem circunstâncias e fases diversas da história de Israel, assim como o trabalho de mãos sucessivas;
d) não se dava grande importância a pormenores tais como os do acabamento literário de uma obra. Podia, pois, um autor transcrever dois ou mais relatos do mesmo fato provenientes de fontes diversas sem se preocupar com a fusão harmoniosa dos mesmos numa só peça literária bem trabalhada. Ao leitor ficava a tarefa de fazer a síntese de dados às vezes aparentemente contraditórios entre si, tendo, para isto, que reconstituir o ponto de vista próprio do autor de cada um dos documentos.
e) muitas vezes, ao referir ditos alheios, o historiador usava do discurso direto de preferência ao indireto. Esta tendência se explica pela dificuldade de abstrair, que caracterizava os hebreus. Em tais casos podia acontecer que o hagiógrafo não julgasse necessário reproduzir verbalmente o discurso; redigia então com suas palavras próprias o teor da oração, que ele colocava nos lábios de outrem, como se fora proferida tal qual figurava no texto;
f) vaga. Podia servir-se também de cronologia esquemática; assim no livro dos Juízes o período de quarenta anos (duração média de uma geração) costuma designar acontecimentos rematados, acarretando logicamente os períodos de vinte e oitenta anos (cf. Jz 3,11.30; 4,3; 5, 32; 8, 28; 13,1; 15,20; 16,31). As vezes os números de dias, meses ou anos não indicam, em absoluto, duração, mas, sim, qualidades dos indivíduos a quem são atribuídos; tenham-se na memória, por exemplo, as listas genealógicas dos setitas e dos semitas, em Gên 4,17-24 e 5,1-32, cujo significado será exposto adiante à pág. 67s. Também o autêntico grau de cultura e civilização dos quadros e personagens bíblicos parecia negligenciável aos historiadores sagrados. Para tornar mais significativos os episódios antigos, o hagiágrafo não raro os descreve anacronicamente, projetando no passado os dados da cultura do seu tempo, mais aptos a transmitir determinada mensagem aos destinatários do livro. É o que se dá na “pré-história bíblica” (Gên 1-11);
g) em particular, os primeiros capítulos do Gênesis pertencem a gênero literário próprio; não seria lícito, de um lado, interpretá-los tão segura e rigidamente como as demais seções de historiografia da Bíblia, nem por outro lado, entram na categoria de mitologia ou fábula. Referem, sem dúvida, acontecimentos ocorridos no pretérito, transmitidos, porém, mediante vocabulário e estilo muito dependentes de textos profanos; aludem provavelmente a certos tópicos das cosmogonias e da história das origens de outros povos. Como decorrer dos tempos e o progressivo conhecimento do mundo oriental antigo, é de esperar se nos tornem claras algumas expressões de Gên 1-11 hoje ainda sujeitas a mais de uma interpretação.
“O problema das formas literárias dos onze primeiros capítulos do Gênesis é muito mais obscuro e intrincado (que o da origem do Pentateuco). Estas formas literárias não correspondem a nenhuma das categorias clássicas e não podem ser julgadas segundo os gêneros literários greco-latinos ou modernos. Não se lhes pode, portanto, negar ou afirmar a historicidade em bloco sem lhes aplicar indevidamente as normas de um gênero literário sob o qual não podem ser classificados. Podemos concordar em que estes capítulos não formam uma história no sentido clássico e moderno; mas é preciso confessar também que os atuais dados científicos não permitem dar uma solução positiva a todos os problemas que eles suscitam. O primeiro dever da exegese científica neste particular consiste em estudar atentamente todas as questões literárias, científicas, históricas, culturais e religiosas relacionadas com estes capítulos; em seguida, seria preciso investigar os sistemas literários dos antigos povos orientais, sua psicologia, sua maneira de exprimir o pensamento e sua noção mesma de verdade histórica; seria necessário, numa palavra, reunir sem preconceitos todo o material das ciências paleontológica e histórica, epigráfica e literária. Somente assim se pode esperar entender mais claramente a verdadeira natureza de algumas narrativas dos primeiros capítulos do Gênesis. Proclamar de antemão que tais narrativas não são históricas no sentido moderno da palavra induziria facilmente a se acreditar que elas não o são em nenhum sentido, quando na realidade relatam as verdades fundamentais pressupostas à dispensação da salvação, em linguagem simples e figurada, adaptada às inteligências de uma humanidade pouco desenvolvida, juntamente com a descrição popular da origem do gênero humano e do povo escolhido. Enquanto se espera, é preciso praticar a paciência, que é prudência e sabedoria da vida.”
Eis as principais noções que elucidam o significado da expressão “BÍBLIA, O LIVRO QUE DEUS INSPIROU”
—– Retirado de: Estêvão Bettencourt – Para entender o Antigo Testamento.
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