O Caos, a Primeira Ordem e a Segunda Ordem

O CAOS

Atualmente, a origem do universo é explicada pelo big bang, um evento isolado que fez aparecer instantaneamente toda a matéria da qual tudo e todos são feitos.

Os gregos antigos tinham uma ideia diferente. Eles diziam que tudo começou não com uma explosão, mas com o CAOS.

Será que o Caos era um deus – um ser divino – ou simplesmente um estado de inexistência? Ou seria o Caos, exatamente como a palavra é usada hoje, um tipo de bagunça terrível, como um quarto de adolescente, só que pior?

Pense no Caos como, talvez, algum tipo de grande bocejo cósmico. Como um abismo ou um vácuo que boceja, no vazio da existência.

Se o Caos fez surgir vida e substâncias do nada, ou se o Caos bocejou vida, ou se a sonhou, ou a invocou de alguma outra maneira, eu não sei. Eu não estava lá. Nem você. No entanto, de algum modo, estávamos, porque todas as partes que nos compõem hoje estavam lá. Basta dizer que os gregos achavam que foi o Caos que, com um suspiro intenso, ou um grande encolher de ombros, ou um soluço, vômito ou tosse, começou a longa cadeia da criação que terminou com pelicanos e penicilina e sapotis e sapos, leões-marinhos, leões, mar, seres humanos e narcisos e assassinato e arte e amor e confusão e morte e loucura e biscoitos.

Seja lá qual for a verdade, a ciência hoje concorda que tudo está destinado a voltar ao Caos. Esse destino inevitável é chamado de entropia: parte do grande ciclo do Caos à ordem e de volta, outra vez, ao Caos. As calças que você veste começaram como átomos caóticos que de alguma maneira se agruparam formando matéria, que se arrumou ao longo de uma eternidade até virar uma substância viva, que lentamente evoluiu para uma planta de algodão, que foi tecida na coisa linda que recobre suas belas pernas. Daqui a um tempo, você vai abandonar suas calças – espero que não agora – e elas irão apodrecer num aterro ou acabar queimadas. Em ambos os casos, sua matéria será, ao fim, liberta para se tornar parte da atmosfera do planeta. E, quando o sol explodir e levar consigo cada partícula deste mundo, incluindo os componentes das suas calças, todos os átomos constituintes voltarão ao frio Caos. E o que vale para suas calças, claro, vale para você.

Então, o mesmo Caos que começou tudo é também o Caos que terminará tudo.

Agora, você talvez seja o tipo de pessoa que pergunta: “Mas quem ou o que havia antes do Caos?” ou “Quem ou o que havia antes do big bang? Deve ter havido alguma coisa”.

Bom, não havia. Temos de aceitar que não havia “antes” porque ainda não havia Tempo. Ninguém tinha apertado o botão de início do Tempo. Ninguém tinha gritado: Já! E, como o Tempo ainda teria de ser criado, advérbios de tempo como “antes”, “durante”, “quando”, “então”, “depois do almoço” e “quarta-feira passada” não tinham nenhum significado. Isso confunde as nossas ideias, mas é isso aí.

A palavra grega para “tudo o que existe”, o que poderíamos chamar de “o universo”, é COSMOS. E neste momento – embora “momento” seja um advérbio de tempo e não faça sentido exatamente agora (nem a expressão “exatamente agora”, aliás) –, neste momento, o Cosmos é Caos e apenas Caos, porque Caos é a única coisa que existe. Um alongamento antes dos exercícios, uma orquestra afinando os instrumentos…

Mas as coisas estão prestes a mudar bem rapidamente.

A PRIMEIRA ORDEM

Do Caos disforme surgiram duas criações: ÉREBO e NIX. O Érebo era a escuridão e a Nix, a noite. Sem demora, eles copularam e os frutos dessa união foram HEMERA, dia, e ÉTER, luz.

Ao mesmo tempo – porque tudo tem de ocorrer simultaneamente até que o Tempo chegue para separar os acontecimentos –, Caos criou mais duas entidades: GAIA, a terra, e TÁRTARO, as profundidades e cavernas abaixo da terra.

Posso adivinhar o que você está pensando. Essas criações parecem bastante charmosas – Dia, Noite, Luz, Profundezas e Cavernas. Mas não são deuses e deusas; sequer são personalidades. Você pode também ter percebido que, como não existia o tempo, não poderia haver narrativa dramática, não poderia haver histórias, porque as histórias dependem de “Era uma vez” e de “O que aconteceu em seguida”.

Você teria razão em pensar assim. O que surgiu primeiro do Caos foram os princípios primevos, elementares, destituídos de qualquer cor, caráter ou interesse reais. Eram as DIVINDADES PRIMORDIAIS, a primeira ordem dos seres divinos, dos quais vêm todos os deuses, heróis e monstros da mitologia grega. Agonizavam e jaziam embaixo de tudo… esperando.

Esse vazio silencioso do mundo foi preenchido quando Gaia teve dois filhos, sozinha.[1] O primeiro foi PONTO, o mar, e o segundo, URANO, o céu – mesmo nome do hoje conhecido planeta Urano, nome cujo som diverte crianças inglesas dos nove aos noventa anos. Hemera e Éter também se acasalaram, e da união deles surgiu TÁLASSA, a contraparte fêmea de Ponto, o mar.

Urano, que preferiria que seu nome fosse pronunciado em inglês como Uuranoss, era o céu e o firmamento, do ponto de vista de que – bem no início – as divindades primordiais sempre eram as coisas que elas representavam e sobre as quais imperavam.[2] Você poderia dizer que Gaia era a terra das colinas, dos vales, das cavernas e montanhas, mas capaz de adotar uma forma que andava e falava. As nuvens de Urano, o céu, rolavam e se agitavam acima de Gaia, mas também conseguiam se aglutinar numa fisionomia que podíamos reconhecer. Era tudo tão inicial na vida de tudo. Muito pouco estava estabelecido.

A SEGUNDA ORDEM

O céu, Urano, cobria inteiramente sua mãe, Gaia, a terra. Cobria Gaia nos dois sentidos: cobria-a do mesmo modo que o céu cobre a terra até hoje, e a cobria como um garanhão cobre uma égua. Ao fazer isso, aconteceu uma coisa notável. Começou o Tempo.

Começou também outra coisa… como vamos chamá-la? Personalidade? Drama? Individualidade? Caráter, com suas falhas e seus fracassos, suas opiniões e paixões, tramas e sonhos. Pode-se dizer que surgiu o significado. A semeadura de Gaia nos deu significado, uma germinação do pensamento, tomando forma. Semiologia semântica seminal do sêmen do céu. Deixarei essa especulação àqueles com melhores qualificações, mas foi, de toda forma, um grande momento. Ao criar Urano, seu filho e, agora, marido, e ao se unir a ele, Gaia desenrolou a fita da vida que corre até a história humana e a nós próprios, você e eu.

Desde o início, a união de Urano e Gaia foi satisfatoriamente produtiva. Doze filhos robustos, saudáveis, vieram primeiro – seis homens, seis mulheres. Os homens eram OCEANO, CEOS, CRIO, HIPERIÃO, JÁPETO e CRONOS. As mulheres, TEIA, TÊMIS, MNEMOSINE, FEBE, TÉTIS e REIA. Esses doze estavam destinados a se tornarem a segunda ordem dos seres divinos, fazendo jus a um nome lendário.

E em algum lugar, com o Tempo engatinhando para a existência, começou o relógio, o relógio da história cósmica, que funciona até hoje. Talvez o responsável tenha sido um desses recém-nascidos, podemos examinar isso mais tarde.

Não satisfeitos com esses doze irmãos fortes e lindos, Urano e Gaia deram ainda mais filhos ao mundo – dois conjuntos distintos, distintamente não lindos, de trigêmeos. Primeiro vieram os três CICLOPES, gigantes com um olho só que deram ao pai, o céu, toda uma nova gama de expressões e modulações. O Ciclope mais velho foi chamado BRONTES, o trovão,[3] depois veio ESTÉROPES, o raio, e então ARGES, o brilho. Urano agora podia encher os céus com lampejos de relâmpagos e estrépitos de trovões. Para ele, o barulho e o espetáculo eram a glória. Mas o segundo conjunto de trigêmeos nascidos de Gaia provocou ainda maior estremecimento, nele e em todos os que os viram.

Talvez seja mais gentil dizer que eles foram uma experiência de mutação a jamais ser repetida, um beco genético sem saída. Esses recém-nascidos – os HECATÔNQUIROS[4] – tinham, cada um, cinquenta cabeças e cem mãos, e eram mais horrendos, ferozes, violentos e poderosos do que qualquer coisa que já tivesse sido solta no mundo. Seus nomes eram COTO, o furioso, GIGES, de pernas longas, e EGÉON, o bode marinho, algumas vezes também chamado de BRIAREU, o vigoroso. Gaia os adorava. Urano lhes tinha repulsa. Talvez o pai ficasse ainda mais horrorizado com a ideia de que ele, o Senhor do Céu, pudesse ter gerado coisas tão estranhas e feias, mas acho que, como a maior parte dos ódios, essa repulsa tinha raízes no medo.

Repugnado, ele os amaldiçoou:

— Por ofenderem meus olhos, vocês jamais verão a luz outra vez!

E, ao vociferar essas palavras furiosas, ele os empurrou de volta para o útero de Gaia.

A vingança de Gaia

Temos bons motivos para nos perguntar, aqui, o que “ele os empurrou de volta para o útero de Gaia” realmente significa. Algumas pessoas interpretaram isso como indicação de que ele enterrou os Hecatônquiros na terra. A identidade divina, nessa época remota, era fluida, é difícil determinar quando um deus era uma pessoa e quando era um atributo. Ainda não havia maiúsculas. Gaia, a Mãe Terra, era o mesmo que gaia, a própria terra, assim como urano, o céu, e Urano, o Pai Céu, eram a mesma coisa.

O que é certo é que, ao reagir assim com os três Hecatônquiros, seus próprios filhos, e ao tratar sua mulher com uma maldade tão abominável, Urano estava cometendo o primeiro crime. Um crime fundamental, que não passaria sem punição.

A agonia de Gaia era insuportável e, dentro dela, lado a lado com o trio de Hecatônquiros se retorcendo, debatendo, arranhando com trezentas mãos e batendo cento e cinquenta cabeças, surgiu um ódio, um terrível e implacável ódio contra Urano, o filho que ela tinha gerado e o marido do qual tinha parido uma nova geração. Assim, como a hera que se enrosca em torno de uma árvore, cresceu em Gaia um plano de vingança.

Com a dor lancinante dos Hecatônquiros ainda a roendo por dentro, Gaia visitou Ótris, um grande monte com vista para o que agora chamamos de Ftiótida, na região da Grécia central. De seu cume, dá para ver a planície de Magnésia chegando até as águas azuis do Egeu ocidental, que se curvam em torno do golfo de Mália e abraçam a dispersão esporádica das ilhas chamadas Espórades. Mas Gaia estava consumida pelo excesso de dor e enfurecida demais para curtir uma das vistas mais encantadoras do mundo. No cume do monte Ótris, ela usou a pedra para começar a fabricar um artefato terrível e muito pouco comum. Durante nove dias e noites, labutou até ter produzido um objeto que, então, escondeu na fenda da montanha.

Em seguida, ela foi visitar seus doze filhos lindos e fortes.

— Você mataria seu pai Urano e reinaria sobre o cosmos comigo? — perguntou a cada um deles. — Você herdaria dele o céu, e, juntos, toda a criação estaria sob o nosso domínio.

Talvez possamos imaginar que Gaia – a Mãe Terra – seja macia, quente, generosa e gentil. Bem, algumas vezes ela é, mas lembre-se de que ela tem um fogo abafado dentro de si. Algumas vezes, consegue ser mais cruel, mais dura e mais aterradora do que o mar mais bravio.

Por falar do mundo marinho, os primeiros filhos que Gaia tentou arregimentar para seu lado foram Oceano e sua irmã Tétis.[5] Mas eles estavam no meio da negociação de uma porção de água com Tálassa, a deusa primordial do mar. Essa geração inteira estava, nessa época, se alongando e flexionando os músculos, estabelecendo suas áreas de perícia e controle, mordiscando, rosnando e testando a força e o domínio uns dos outros, como cachorrinhos numa cesta. Oceano tinha concebido a ideia de criar marés e correntes, que deveriam fluir como um grande rio salgado em torno do mundo. Tétis estava prestes a ter o seu bebê – naqueles dias primitivos não havia pecado, é claro: a propagação não seria possível sem cópulas incestuosas. Ela estava grávida do NILO, e viria a dar à luz outros rios e pelo menos três mil Oceânides, ou ninfas do mar, divindades atraentes que se movimentavam com a mesma facilidade em terra firme e nas águas do mar. Eles já tinham duas filhas crescidas: CLÍMENE, amante de Jápeto, e a inteligente e sábia MÉTIS, que desempenhará um papel muito importante no que está por vir.[6] O par estava feliz e antecipando a vida na onda do oceano, de modo que nenhum dos dois viu nenhum motivo para ajudar a matar o pai deles, Urano.

Em seguida, Gaia visitou sua filha Mnemosine, que estava ocupada sendo impronunciável. Ela aparentava ser uma entidade muito rasa, boba e ignorante, que não sabia de nada e parecia entender ainda menos. Ledo engano, porque, a cada dia que passava, ela se tornava mais bem informada e capaz. Seu nome significa “memória” (dando-nos a palavra “mnemônico”). Na época da visita da mãe, o mundo e o cosmos eram muito jovens, de modo que Mnemosine não tinha tido oportunidade de se munir de conhecimento ou experiência. À medida que os anos passaram, sua infinita capacidade para armazenar informações e experiências sensoriais a tornaria mais sábia do que quase qualquer outra pessoa. Um dia, ela teria nove filhas, as MUSAS, que conheceremos mais tarde.

— Você quer que eu a ajude a matar Urano? Certamente, o Pai Céu não pode morrer.

— Então, destroná-lo ou incapacitá-lo… Não é mais do que ele merece.

— Eu não vou ajudá-la.

— Por que não?

— Há um motivo e, quando eu souber qual é, vou lembrar e contar para você. Exasperada, Gaia foi em seguida a Teia, que estava também casada, em outra união fraterna, com seu irmão Hiperião. Na época devida, ela pariria HÉLIO, o sol, SELENE, a lua, e EOS, a aurora, filhos bastantes para cuidar, de modo que eles também não mostraram interesse nos planos de Gaia para depor Urano.

Desanimada com a recusa de sua prole pálida e pouco aventureira em corresponder ao que ela imaginava serem seus destinos divinos – sem mencionar a repugnância com o fato de todos eles, aparentemente, estarem sendo amados e domesticados –, Gaia em seguida tentou Febe, talvez a mais inteligente e perceptiva dos doze. Desde as épocas mais remotas, a brilhante Febe tinha mostrado que possuía o dom da profecia.

— Ah, não, Mãe Terra — disse ela ao ouvir o plano de Gaia. — Não há como eu fazer parte de um plano desse. Não vejo nada de bom vindo daí. Além do mais, estou grávida…

— Maldita seja — vociferou Gaia. — De quem? Ceos, aposto.

Ela estava certa. Ceos, irmão de Febe, era mesmo o seu consorte. Gaia saiu mais furiosa ainda para visitar a filha que restava. Será que nenhum deles teria estômago para uma luta?

Foi visitar Têmis, que um dia seria considerada por toda parte a incorporação da justiça e do conselho sábio,[7] e Têmis sabiamente aconselhou a mãe a esquecer a ideia injusta de depor Urano. Gaia escutou atentamente esse sábio conselho e – como todos nós, mortais ou imortais –, desconsiderou-o, preferindo, em vez disso, tentar a impetuosidade de seu filho Crio, que se casara com a filha dela com Ponto, EURÍBIA.

— Matar meu pai? — Crio olhou incrédulo para a mãe. — M-as como… quero dizer… por quê?… quero dizer… oh.

— O que ganhamos com isso, mãe? — perguntou Euríbia, que era conhecida como a “de coração de pedra”.

— Ah, apenas o mundo e tudo o que está nele — disse Gaia.

— Para dividir com você?

— Para dividir comigo.

— Não! — disse Crio. — Vá embora, mãe.

— Vale a pena considerar — opinou Euríbia.

— É perigoso demais — falou Crio. — Eu a proíbo.

Gaia se virou com um rosnado e buscou seu filho Jápeto.

— Jápeto, menino amado. Destrua o monstro Urano e reine comigo!

A Oceânide Clímene, que tinha dado dois filhos a Jápeto e estava grávida de outro, deu um passo à frente.

— Que mãe pediria uma coisa dessa? Um filho matar seu próprio pai seria o mais terrível dos crimes. O cosmos inteiro iria protestar.

— Tenho de concordar, mãe — disse Jápeto.

— Maldição sobre vocês e sobre seus filhos! — gritou Gaia.

Maldição de mãe é uma coisa terrível. Depois veremos como acabaram os filhos de Jápeto e Clímene, ATLAS, EPIMETEU e PROMETEU.

Reia, décima primeira filha de Gaia a ser consultada, disse que não faria parte do plano, mas – erguendo as mãos para fazer parar uma torrente selvagem de xingamentos da mãe – sugeriu que seu irmão Cronos, o último desses filhos fortes e lindos, poderia muito bem gostar da ideia de depor o pai. Ela, Reia, o tinha ouvido muitas vezes praguejar contra Urano e seu poder.

— É mesmo? — exclamou Gaia. — Você acha isso? Bem, onde está ele?

— Provavelmente vadiando pelas cavernas do Tártaro. Ele e Tártaro se dão tão bem. Os dois são sombrios. Melancólicos. Ruins. Magníficos. Cruéis.

— Oh, céus, não me diga que você está apaixonada por Cronos…

— Fale bem de mim para ele, mamãe, por favor! Ele é tão sonhador… Aqueles olhos negros faiscantes. As sobrancelhas ameaçadoras. Os longos silêncios.

Gaia sempre achara que os longos silêncios de seu caçula só indicavam pobreza de intelecto, mas, sensatamente, não disse nada. Depois de garantir a Reia que, é claro, a recomendaria calorosamente a Cronos, Gaia correu para baixo, para baixo, para baixo, para as cavernas do Tártaro, a fim de encontrá-lo.

Se você jogasse uma bigorna de bronze dos céus, ela levaria nove dias para chegar à terra. Se você jogasse uma bigorna da terra, seriam outros nove dias para chegar ao Tártaro. Em outras palavras, a terra fica a meio caminho entre o céu e o Tártaro. Ou poderíamos dizer que o Tártaro está tão longe do solo quanto o solo está longe do céu. Um lugar muito profundo, quase abismal, então, mas muito mais do que um lugar. Lembre-se de que o Tártaro também era um ser primordial, nascido do Caos ao mesmo tempo que Gaia. Assim, quando ela o abordou, eles se saudaram como membros da mesma família.

— Gaia, você engordou.

— Você está horrível, Tártaro.

— Que diabos você quer aqui embaixo?

— Se você calar a boca, eu digo…

Essas trocas impertinentes não os impediriam de, no futuro, acasalarem e produzir TIFÃO – o pior e mais mortal de todos os monstros.[8] Mas no momento Gaia não está a fim de amor ou de trocar insultos.

— Escute. Meu filho Cronos, ele está por perto?

Um gemido resignado por parte do irmão.

— Quase com certeza. Você bem que poderia pedir a ele que me deixe em paz. Ele não faz absolutamente nada o dia inteiro, a não ser ficar por aí olhando para mim com os olhos caídos e a boca aberta. Acho que ele tem algum tipo de paixão por mim. Copia meu penteado e fica se apoiando nas árvores e nas pedras, com aspecto sofredor, melancólico e incompreendido. Como se estivesse esperando que alguém o retrate ou qualquer coisa. Quando não está me contemplando, fica olhando fixo para aquele respiradouro de lava ali. Na verdade, ele está lá agora, olhe. Tente conversar com ele.

Gaia aproximou-se do filho.

A foice

Bem, Cronos (ou Kronos, como ele às vezes gostava de ser chamado) não era exatamente o jovem emo, sofredor e vulnerável que as descrições de Reia e Tártaro podem nos ter levado a imaginar; ele era o mais forte de uma raça incrivelmente forte. Sombriamente belo, certamente; e, sim, era temperamental. Se Cronos tivesse exemplos a seguir, talvez se identificasse com Hamlet em sua feição mais introspectiva, ou Jaques, em sua morbidez mais autotolerante. Konstantin, de A gaivota, com um toque de Morrissey. Mas havia nele também qualquer coisa de Macbeth, e mais do que um pouco de Hannibal Lecter – veremos.

Cronos foi o primeiro a descobrir que o silêncio contemplativo é muitas vezes considerado indicador de força, sabedoria e comando. Caçula dos doze, ele sempre odiou o pai. O veneno profundo e penetrante da inveja e do ressentimento estava começando a destruir sua sanidade, mas ele conseguia esconder a intensidade de seu ódio de todos, com exceção de sua amada irmã Reia, único membro da família com quem ele se sentia à vontade o bastante para revelar seu verdadeiro eu.

Enquanto subiam do Tártaro, Gaia despejou mais veneno em seu ouvido receptivo.

— Urano é cruel. É insano. Temo por mim mesma e por todos vocês, meus amados filhos. Vamos lá, garoto, vamos.

Ela o estava levando ao monte Ótris. Lembra-se do artefato estranho e terrível do qual falei, que ela tinha forjado e escondido na fenda da montanha antes de ir visitar cada filho? Gaia levou Cronos ao lugar e mostrou a ele o que ela tinha feito.

— Pega. Vai.

Os olhos negros de Cronos brilharam quando ele percebeu o formato e o significado do estranhíssimo objeto.

Era uma foice. Uma foice enorme, cuja grande lâmina encurvada tinha sido forjada de adamantina, que significa “indomável”. Um agregado maciço de sílex, granito, diamante e ofiólito, sua lâmina em meia-lua foi trabalhada até o gume mais afiado. Um gume que conseguia cortar qualquer coisa.

Cronos a retirou de seu esconderijo com tanta facilidade como você ou eu apanharíamos um lápis. Depois de sentir na mão o equilíbrio e o peso, ele a girou uma, duas vezes. O sibilar poderoso ao chicotear o ar fez Gaia sorrir.

— Cronos, meu filho — disse ela —, temos de esperar até que Hemera e Éter mergulhem nas águas do oeste e que Érebo e Nix preparem-se para lançar a escuridão…

— Você está dizendo que temos de esperar até a noite. — Cronos era impaciente e lhe faltavam poesia ou sentimentos mais delicados.

— Sim. Ao anoitecer. É então que seu pai vem até mim, como sempre vem. Ele gosta de…

Cronos fez um gesto seco. Ele não queria saber os detalhes do namoro de seus pais.

— Esconda-se aqui – continuou Gaia –, nesta mesma fenda em que escondi a foice. Quando você ouvir seu pai me cobrindo, e quando ele ficar ruidoso em seus rugidos de paixão e gemidos de luxúria… Ataque.

Noite e dia, luz e escuridão

Como Gaia previra, Hemera e Éter estavam cansados depois de doze horas de brincadeiras e, lentamente, dia e luz deslizaram para o mar a oeste. Ao mesmo tempo, Nix deixou cair seu véu escuro, e ela e Érebo o jogaram sobre o mundo como uma reluzente toalha de mesa preta.

Enquanto Cronos esperava na fenda, foice na mão, toda a criação prendeu a respiração. Digo “toda a criação” porque Urano e Gaia e seus filhos não eram os únicos seres que se reproduziam. Outros também tinham se multiplicado e propagado, sendo Érebo e Nix, de longe, os mais produtivos. Eles tiveram muitos filhos, alguns terríveis, alguns admiráveis e alguns adoráveis. Já vimos como pariram Hemera e Éter. Mas depois Nix, sem a ajuda de Érebo, deu à luz MOROS, deus do destino fatídico, que viria a ser a entidade mais temida na criação. O destino chega para todas as criaturas, mortais ou imortais, mas está sempre oculto. Mesmo os imortais temiam o controle todo-poderoso, onisciente, de Moros sobre o cosmos.

Depois de Moros, veio uma grande torrente de descendência, um depois do outro, como uma monstruosa invasão pelo ar. Primeiro veio APATE, o engano, que os romanos chamavam de FRAUS (de onde derivamos as palavras “fraude”, “fraudulento” e “fraudador”). Ela se mandou para Creta, onde ficou esperando. GERAS, a velhice, nasceu em seguida, e não era necessariamente um demônio tão temível como podemos achar hoje. Ao mesmo tempo que Geras pode retirar a flexibilidade, a juventude e a agilidade, para os gregos mais que compensava as desvantagens ao conferir dignidade, sabedoria e autoridade. Seu nome romano é SENECTUS, uma palavra que compartilha a mesma raiz que “sênior”, “senado” e “senil”.

Em seguida veio um par de gêmeos perfeitamente sinistros: OIZUS (em latim, MISÉRIA), o espírito do sofrimento, da depressão e da ansiedade, e seu irmão cruel, MOMO, a personificação malévola da zombaria, do desprezo e da acusação.[9]

Nix e Érebo estavam apenas começando. O filho seguinte deles, ÉRIS (DISCÓRDIA), o conflito, estava por trás de todas as discordâncias, divórcios, brigas, escaramuças, lutas, batalhas e guerras. Seu malicioso presente de casamento, o lendário Pomo da Discórdia, provocou a Guerra de Troia, embora esse choque de armas épico ainda estivesse muitos, muitos anos no futuro. A irmã de Éris, NÊMESIS, era a incorporação da vingança, essa vertente sem remorsos de justiça cósmica que castiga a excessiva ambição presunçosa – o vício que os gregos chamam de hubris. Nêmesis tinha elementos em comum com a ideia oriental de carma, e a usamos hoje para sugerir a fatídica rebelião justiceira que um dia enfrentará e derrubará os soberbos e os malvados. Acho que daria para dizer que Sherlock Holmes é nêmesis de Moriarty, Bond, de Blofeld, e Jerry, de Tom.[10]

Érebo e Nix foram também pais de CARONTE, cuja má fama cresceria quando ele adotou a tarefa de barqueiro dos mortos. HIPNOS, a personificação do Sono, também é filho deles. Além disso, eram os progenitores dos ONIROS – milhares de seres encarregados da elaboração e surgimento de sonhos para os adormecidos. Entre os Oniros cujos nomes conhecemos estão FOBETOR, deus dos pesadelos, e FÂNTASO, responsável pelo jeito fantástico como uma coisa se transforma em outra nos sonhos. Eles trabalhavam sob a supervisão de MORFEU, filho de Hipnos, cujo nome em si sugere os formatos cambiantes, inconstantes, do mundo dos sonhos.[11] “Morfina”, “fantasia”, “hipnótico”, “oniromancia” (interpretação dos sonhos) e muitas outras reminiscências verbais dos gregos sobreviveram em várias línguas. O irmão do Sono, TÂNATO, a própria Morte, nos dá a palavra “eutanásia”, “boa morte”. Os romanos o chamavam de MORS, de onde vêm “mortais”, “mortuários” e “mortificação”.

Esses novos seres eram assustadores e asquerosos ao extremo. Deixaram na criação marcas terríveis, mas necessárias, já que o mundo parece nunca oferecer qualquer coisa que valha a pena sem também fornecer seu terrível oposto.

Houve, entretanto, três exceções adoráveis:[12] três lindas irmãs, as HESPÉRIDES – ninfas do ocidente e filhas da noite. Elas anunciavam a chegada diária da mãe e do pai, mas com o ouro suave do crepúsculo, em vez do temível escuro da noite. O tempo delas era o que os cinegrafistas atuais chamam de “hora mágica”, quando a luz está em seu auge de sedução e beleza.

Esses eram, então, os filhos de Nix e Érebo, que naquele exato momento envolviam a terra na escuridão da noite, enquanto Gaia estava deitada esperando por seu marido, torcendo que aquela fosse a última vez, já que Cronos espreitava nas sombras daquela fenda no monte Ótris, segurando firmemente sua enorme foice.

Urano castrado

Por fim, Gaia e Cronos escutaram, vindo do ocidente, o som de um grande estampido e tremor. As folhas nas árvores estremeceram. Cronos, silencioso em seu esconderijo, não tremeu. Ele estava pronto.

— Gaia! — rugiu Urano ao se aproximar. — Prepare-se. Esta noite, vamos gerar algo ainda melhor do que mutantes com cem mãos e aberrações com um olho só…

— Venha a mim, filho glorioso, marido divino — chamou Gaia, com o que Cronos achou ser uma demonstração de avidez desagradavelmente convincente.

Os sons horríveis de uma divindade lasciva babando, estapeando e grunhindo levaram Cronos a pensar que seu pai estava tentando algum tipo de preliminares. Ele, em sua alcova, respirou e expirou cinco vezes. Nem por um segundo pesou a moralidade daquilo que estava prestes a fazer, seus pensamentos estavam apenas nas táticas e no timing. Com uma inalação profunda, ergueu a enorme foice e rapidamente saiu, se esgueirando, de seu esconderijo.

Urano, que se preparava para se deitar por cima de Gaia, deu um salto, com um rosnado raivoso de surpresa. Avançando com calma, Cronos girou a foice para trás e a desceu em um grande arco. A lâmina, sibilando no ar, decepou completamente os genitais de Urano.

O cosmos inteiro ouviu o grito enlouquecido de dor, angústia e raiva de Urano. Nunca antes na curta história da criação houvera um som tão alto ou tão horrível. Todas as coisas vivas o escutaram e temeram.

Cronos saltou para a frente com um grito obsceno de triunfo, agarrando o troféu gotejante nas mãos antes de ele atingir o solo.

Urano caiu, se retorcendo numa agonia imortal, e berrou o seguinte:

— Cronos, o mais vil de minha prole e o mais vil de toda a criação. O pior dos seres, pior do que os Ciclopes horrorosos e os Hecatônquiros repugnantes, com estas palavras eu o amaldiçoo: Que seus filhos o destruam como você me destruiu.

Cronos abaixou os olhos para Urano. Seus olhos pretos não demonstravam nada, mas sua boca se encurvou num sorriso sombrio.

— Você não tem mais o poder de amaldiçoar, papai. Seu poder está em minhas mãos.

Em frente ao pai, ele fez malabarismos com os despojos macabros da vitória, rebentados e pegajosos de sangue, vazando e escorregadios de sêmen. Rindo, ele lançou o braço para trás e atirou os genitais bem longe, longe das vistas. Eles voaram através das planícies da Grécia e por cima do mar que escurecia. Os três observaram os órgãos de geração de Urano desaparecendo em meio às águas.

Cronos ficou surpreso quando olhou para a mãe e a viu cobrir a boca numa expressão que parecia ser de horror. Lágrimas escorriam dos olhos de Gaia.

Ele deu de ombros. Até parece que ela se importava.

Erínias, Gigantes e Melíades

A criação, povoada como estava nessa época por divindades primárias, cujas energias e objetivos pareciam todos direcionados para a reprodução, era dotada de uma assombrosa fertilidade. O solo era abençoado com uma riqueza tão fecunda que se podia quase acreditar que, se você plantasse um lápis, ele explodiria em flor. Onde caísse sangue divino, a vida não tinha outra alternativa senão brotar da terra.

Assim, não importava quão assassino, cruel, ganancioso e destrutivo fosse o caráter de Urano, ele tinha sido o rei da criação, afinal de contas. O fato de seu filho tê-lo mutilado e emasculado constituía um crime muito terrível contra o cosmos.

Talvez o que aconteceu a seguir não seja tão surpreendente.

Grandes poças de sangue se formaram em torno da cena da castração de Urano. Desse sangue, do sangue que caiu da virilha destruída de Urano, emergiram seres vivos.

Os primeiros a saírem do solo encharcado foram as ERÍNIAS: ALECTO (sem remorsos), MEGERA (rancor) e TISÍFONE (castigo). Talvez um instinto inconsciente de Urano tenha provocado o surgimento desses seres vingativos. Seu eterno dever, a partir do momento de seu nascimento ctônico – ou seja, de sua saída do solo –, seria punir os piores e mais violentos crimes: perseguir incansavelmente os culpados e só descansar quando eles tivessem pagado o preço completo e terrível. Armadas com cruéis açoites metálicos, as Erínias esfolavam a carne dos ossos do culpado. Os gregos, ironicamente, apelidaram essas vingadoras fêmeas de EUMÊNIDES, “as bondosas”.

Os próximos a se erguerem do solo foram os GIGANTES. Herdamos deles “gigante”, “giga” e “gigantesco”, mas, embora eles certamente possuíssem uma força prodigiosa, não eram maiores em estatura do que seus meios-irmãos e meias-irmãs.[13]

Finalmente, naquele instante de dor e destruição, foram também criadas as MELÍADES, graciosas ninfas que viriam a ser as guardiãs de uma árvore chamada freixo, cuja casca produzia um maná doce e saudável.[14]

Quando todos esses novos seres inesperados emergiram vivos do solo encharcado de sangue, Cronos os olhou enojado e os espalhou com uma varredura de sua foice. Em seguida, ele se voltou para Gaia.

— Eu lhe prometi, Mãe Terra — disse ele —, que a libertaria de sua torturante agonia. Fique paradinha.

Com um outro golpe da foice, ele cortou a lateral do corpo de Gaia. De lá, caíram os Ciclopes e os Hecatônquiros. Cronos contemplou seus pais, os dois agora sangrando, arfando e rosnando como raivosos animais feridos.

— Você não mais cobrirá Gaia — disse para o pai. — Eu o expulso para viver a eternidade abaixo do solo, enterrado ainda mais fundo do que o Tártaro. Você pode ficar lá de mau humor, em sua fúria, castrado e impotente.

— Você se excedeu — sibilou Urano. — Haverá vingança. Amaldiçoo sua vida, que ela seja triturada numa eternidade lenta e impiedosa, que sua eternidade imortal seja um cargo insuportável, sem fim. Seus próprios filhos o destronarão, como…

— Como eu o destronei. Sim, eu sei. Você disse. Vamos ver.

— Você, seus irmãos e irmãs, eu os amaldiçoo todos, sua ambição excessiva os destruirá.

O “lutador, o esforçado”, ou TITÃ, é o título que reservamos para Cronos, seus onze irmãos e boa parte da prole deles. A intenção de Urano era que fosse um insulto, mas de algum modo o nome ressoou através dos tempos com um toque de grandeza. Ninguém, até hoje, ficaria insultado por ser chamado de Titã.

Cronos enfrentou essas maldições com escárnio e, encurralando seu pai mutilado e seus irmãos mutantes recém-liberados à ponta de foice, levouos para o Tártaro. Os Hecatônquiros e os Ciclopes foram aprisionados em cavernas, mas ele enterrou seu pai ainda mais fundo, o mais longe do seu domínio natural dos céus que conseguiu chegar.[15]

Remoendo, fervendo e furioso, bem fundo embaixo da terra que uma vez o amou, Urano comprimiu toda a sua fúria e a energia divinas na própria rocha, esperando que, um dia, alguma criatura, ao escavar em algum lugar, a mineraria e tentaria dominar o poder imortal que radiava dali de dentro. Isso, é claro, jamais iria acontecer. Seria perigoso demais. Certamente, ainda está por nascer a raça que seja tola a ponto de tentar libertar o poder do urânio.

Da espuma

Voltamos, agora, ao grande arco nos céus traçado pelas gônadas cortadas de Urano. Cronos atirara os culhões do Pai Céu longe, por cima do mar, como você deve se lembrar.

Podemos vê-lo, agora. Perto da ilha jônica de Citera, eles caem, chapinham, quicam, sobem outra vez e finalmente caem, e meio que afundam embaixo das ondas. Grandes cordas de sêmen seguem em sua esteira, como fitas de uma pipa. Nos lugares em que atingem a superfície do mar, aparece uma espuma furiosa. Logo, todas as águas borbulham e fervem. Alguma coisa sobe. Vindo dos horrores de uma castração parricida e de uma ambição desnaturada, deve ser – certamente – algo inimaginavelmente feio, algo terrível, algo violento, algo espantoso, que prenuncia apenas guerra, sangue e angústia.

O redemoinho de sangue e fluido seminal fomenta, efervesce e espuma. Do nevoeiro das ondas e das sementes emerge o topo de uma cabeça, depois uma sobrancelha e, então, um rosto. Mas que tipo de rosto?

O rosto mais lindo que a criação jamais vira ou verá outra vez. Não apenas uma coisa linda, mas a própria Beleza surge inteiramente formada da espuma. Em grego, “da espuma” pode ser escrito de forma parecida a AFRODITE, e esse é o nome daquela que agora se ergue da espuma e da maresia. Ela está em pé numa grande concha, um sorriso recatado e suave brincando nos lábios. Lentamente, ela chega a praia, em Chipre. Flores se abrem e nuvens de borboletas surgem onde ela pisa. Passarinhos voam em círculos em torno de sua cabeça, cantando em êxtases de alegria. O Amor e a Beleza perfeitos tinham desembarcado em terra, e o mundo jamais seria o mesmo.

Os romanos a chamaram de VÊNUS, e seu nascimento e sua chegada a Chipre sobre a concha nunca foram mais bem retratados do que no extraordinário quadro de Botticelli, que, uma vez visto, nunca é esquecido.

Deixamos Afrodite fazendo sua morada em Chipre e voltamos a Cronos, que está retornando das escuras cavernas do Tártaro.

Reia

Ao chegar ao monte Ótris, Cronos encontrou sua irmã Reia esperando por ele. A visão desse irmão sombriamente belo, com uma enorme foice pingando sangue na mão, a empolgou ao ponto de provocar uma explosão interna.

A autoridade dele estava estabelecida: nenhum de seus irmãos ou irmãs Titãs ousava questioná-lo.[16] Seu pai não tinha poder e Gaia, que descobriu não sentir alegria com a destruição violenta que pusera em ação, retirou-se para seu reino e para uma existência mais passiva. Gaia nunca perdeu sua força, autoridade ou alta posição como Mãe Terra e ancestral de todos, mas já não se aventurava a interagir ou se associar com ninguém. O senhor, agora, era Cronos. Depois de uma grande festa, na qual sua façanha de emascular e destronar Urano foi cantada de forma ruidosa e muito pouco musical, Cronos voltou-se para a ruborizada e trêmula Reia e a puxou de lado para fazer amor com ela.

A alegria de Reia estava completa. Ela tinha desempenhado seu papel ao ajudar o irmão que adorava a alcançar o domínio de toda a criação. E, agora, eles estavam unidos. Mais do que isso, com o passar do tempo, ela começou a sentir uma criança mexendo-se dentro dela. Uma menina, ela tinha certeza. Sua felicidade era sem nuvens.

Cronos, por outro lado… Sua disposição já macambúzia estava obscurecida por outra coisa. As palavras de seu pai Urano começaram a ecoar em sua cabeça:

Seus próprios filhos o destronarão, como você me destronou.

Durante as semanas e os meses seguintes, Cronos observou com taciturno pressentimento a barriga de Reia se encher e inchar.

Seus próprios filhos… seus próprios filhos…

Quando chegou o dia do parto, Reia deitou-se numa alcova na montanha – a mesma fenda nas rochas, aliás, em que Gaia escondera a foice e onde Cronos ficara escondido. Ali, ela deu à luz uma menina linda, que batizou de HÉSTIA.

O nome mal saiu da boca de Reia antes que Cronos avançasse, arrancasse a criança de seus braços e a engolisse inteira. Então, ele se virou e partiu sem nem ao menos um soluço, deixando Reia lívida de choque.

Os filhos de Reia

Cronos era agora o senhor da terra, do mar e do céu, e a foice era o símbolo de sua autoridade. Seu cetro. A terra, ele tomou de Gaia; o céu, de Urano. Com ameaças de violência, ele tirou o domínio do mar de Ponto e Tálassa e de seus irmãos Oceano e Tétis. Ele não confiava em ninguém e reinava sozinho.

Cronos ainda continuava a ter prazer com Reia e ela ainda consentia, amando-o irremediavelmente e acreditando que o monstruoso devorar de sua primogênita tinha sido algum tipo de aberração.

Não tinha. A criança seguinte, um menino que ela chamou de HADES, foi devorado exatamente da mesma maneira. Depois outra menininha, DEMÉTER. Em seguida foi POSEIDON, um segundo menino, e, finalmente, uma terceira menina, HERA. Todos engolidos inteiros com tanta facilidade quanto você e eu engoliríamos uma ostra ou uma colherada de gelatina.

Quando Cronos consumiu Hera, fruto da quinta gravidez de Reia, o amor dela por ele já tinha se transformado em ódio. Naquela mesma noite, ele a agarrou e fez amor com ela outra vez. Ela jurou a si mesma que, se engravidasse, ele jamais pegaria sua sexta criança. Mas como impedi-lo? Ele era todo-poderoso.

Uma manhã, ela acordou e sentiu o enjoo costumeiro. Estava grávida. Seus instintos divinos lhe disseram que seu sexto filho seria um menino.

Ela saiu do Ótris e se mandou em busca de seus pais. Por mais que tivesse contribuído para a queda deles, mantinha uma confiança de filha no juízo e na boa vontade deles. Sabia também que a fúria deles com o papel dela em sua ruína não era nada em comparação ao ódio imortal que nutriam por Cronos.

Durante três dias suas chamadas por Gaia e Urano soaram pelos montes e cavernas do mundo.

— Mãe Terra, Pai Céu, escutem sua filha e venham ajudá-la! O filho que o mutilou e o destituiu se tornou o pior dos ogros, a criatura mais depravada e antinatural do mundo. Cinco de seus netos, ele comeu. Tenho mais um bebê dentro de mim, pronto para vir ao mundo. Ensinem-me como salvá-lo. Ensinem-me, eu imploro, e o criarei para que sempre os reverencie.

Ouviu-se um profundo e terrível ribombar vindo de baixo. O solo sacudiu sob os pés de Reia. A voz de Urano chegou rugindo aos seus ouvidos, mas, em meio a ela, Reia ouviu também os tons mais calmos da mãe.

Juntos, os três armaram um plano maravilhoso.

A mudança

Com o objetivo de dar andamento a esse maravilhoso plano, Reia foi a Creta consultar uma cabra chamada AMALTEIA. Moravam também na ilha as Melíades, ninfas da árvore produtora de maná. Como você deve se lembrar, elas brotaram do solo encharcado com o sangue de Urano, como as Erínias e os Gigantes. Após uma conversa encorajadora com Amalteia, Reia consultou essas doces e suaves ninfas. Convencida de que as coisas que precisava conseguir em Creta eram possíveis, ela voltou ao monte Ótris a fim de se preparar para o parto.

Cronos, a essa altura, já percebera que sua mulher estava gestando e se preparou para o feliz dia em que poderia consumir o sexto de seus filhos. Ele não queria arriscar nada. A profecia de Urano ainda soava em seus ouvidos, e as aflições supersticiosas da paranoia, que assolam todos os usurpadores despóticos, a cada dia cresciam mais ferozes nesse projeto digno de Stálin.

Gaia tinha falado a Reia a respeito de uma determinada pedra – um objeto de magnetita perfeito, com o tamanho exato para seus objetivos, liso e com o formato de um feijão – que podia ser encontrada em outros montes próximos ao próprio Ótris.[17]

Pela manhã, Cronos gostava de caminhar a passos largos de uma extremidade da Grécia a outra, visitando cada um de seus irmãos Titãs, supostamente para consultá-los, mas, na verdade, para se certificar de que não estavam tramando contra ele. Quando soube que ele estaria à beira-mar, visitando Oceano e Tétis, Reia foi ao palácio que Gaia descrevera, encontrou a pedra e a levou para casa, para o monte Ótris, onde a envolveu em linho. O plano estava sendo montado.

Uma tarde, pouco depois, com Cronos perto o suficiente para escutá-la, mas longe o bastante para levar algum tempo para chegar, Reia começou a lançar os gritos do parto. Cada vez mais altos, seus berros de agonia rasgaram o ar, até que, depois, de um silêncio repentino, foram substituídos pela melhor simulação que ela podia fazer dos primeiros vagidos de um bebê.

Não deu outra: Cronos se aproximou. Sua sombra recaiu sobre Reia.

— Dê-me a criança — disse ele.

— Temido senhor e marido — Reia lhe lançou um olhar implorativo. — Não pode me deixar ficar com este? Olhe para ele, tão doce, tão inocente. Tão inofensivo.

Com um riso áspero, Cronos arrancou o bebê bem embrulhado dos braços aninhados de Reia e o arremessou com um grande gole garganta abaixo, envolto em linho e tudo. Desceu como os outros, sem sequer tocar os lados. Dando um soco no osso do peito, depois outro, Cronos soltou um sonoro arroto e deixou sua atormentada mulher com seus soluços de dor.

No momento em que ele saiu, os soluços se tornaram engasgos e gritos histéricos e mal suprimidos. Engasgos e gritos de riso.

Recuperando o fôlego e levantando-se da cama, Reia desceu a montanha e foi para Creta, viajando o mais rápido possível para alguém num estado de gravidez tão avançado.

O filho cretense

O parto de Reia em Creta foi bastante fácil. Ternamente auxiliada pela cabra e pelas Melíades, ela se preparou para dar à luz na segurança e no conforto de uma caverna no monte Ida. Logo, nasceu um menino transcendentemente lindo. Ela deu a ele o nome de ZEUS.

Do mesmo modo que Gaia tinha recrutado seu filho caçula, Cronos, para se vingar de seu filho e marido, Urano, Reia jurou que criaria este seu filho mais novo, Zeus, para destruir seu marido e irmão, Cronos. O horrível ciclo de sede de sangue, ganância e assassinatos que marcaram as dores do parto do mundo primordial continuaria pela geração seguinte.

Reia sabia que precisava voltar para o monte Ótris antes que Cronos notasse sua ausência e suspeitasse de que algo estava errado. Como tinha sido combinado, a cabra Amalteia amamentaria o bebê com seu leite rico e nutritivo, enquanto as Melíades o alimentariam com o doce e saudável maná que corria na seiva de seus freixos. Dessa maneira, o jovem Zeus cresceria em Creta, forte e bem nutrido. Reia o visitaria o mais frequentemente possível, para guiá-lo na arte da vingança.

Embora essa seja a versão mais conhecida, há muitos relatos diferentes de como Zeus escapou da atenção do grande Cronos, deus da terra, do céu e dos mares. Um deles conta que uma ninfa, chamada ADAMANTEIA, suspendeu o recém-nascido Zeus numa árvore com uma corda. Amarrado entre a terra, o mar e o céu, ele permaneceu, assim, invisível ao pai. É uma imagem agradável, que remete ao surrealismo de Dalí – o bebê que viria a se tornar o mais poderoso dos seres gorgolejando, balbuciando e dando risadinhas no ar, pendurado entre os elementos sobre os quais estava destinado a reinar.

O juramento de submissão

Enquanto, sem que seu pai soubesse, Zeus se fortalecia em Creta com o leite de cabra e o maná e aprendia a andar, falar e compreender o mundo ao seu redor, Cronos convocou seus irmãos Titãs ao monte Ótris para renovarem seus votos de lealdade e obediência.

— Agora, este mundo é nosso — anunciou a eles. — O Destino decretou que não posso ter filhos, para reinar melhor. Mas vocês têm de fazer seu dever. Procriem! Encham o mundo com sua raça de Titãs. Eles devem ser criados para que me obedeçam em tudo, e eu concederei a vocês terras e províncias próprias. Agora, inclinem-se diante de mim.

Os Titãs fizeram uma profunda mesura e Cronos deu um grunhido de satisfação, o mais próximo que ele já chegou de uma expressão de felicidade. A profecia vingativa de seu pai tinha sido afastada; a eterna Era dos Titãs podia começar.

O menino de Creta

Cronos pode ter grunhido de satisfação, mas Moros, a figuração da Sorte e do Destino, sorriu – como sempre faz quando os poderosos exibem confiança. Nessa ocasião, Moros sorriu porque podia ver que Zeus estava progredindo em Creta. Crescia e se transformava no homem mais forte e mais impressionante de toda a criação – de fato, seu brilho chegava a quase doer nos olhos.[18] A excelência do leite de cabra e a potência nutritiva do maná tinham dado a ele ossos fortes, pele clara, olhos cintilantes e cabelo brilhante. Ele tinha feito o caminho, para usar os termos gregos, de pais (menino) e ephebos (adolescente) para kouros (jovem) e, daí, para um belo exemplar do que poderíamos hoje chamar de jovem adulto. Já agora, os primeiros esboços aveludados do que se tornaria um exemplo lendário e poderoso da arte da barba estavam aparecendo em seu queixo e suas bochechas.[19] Ele tinha a confiança, o ar de comando descontraído que assinala aqueles destinados a liderar. Tendia mais a rir do que a se zangar, mas, quando despertavam sua ira, conseguia assustar qualquer criatura viva dentro de sua órbita.

Desde o início, ele exibiu uma mistura de prazer pela vida e força de vontade que enchia até sua mãe de assombro, e alguns asseguravam que o leite de Amalteia conferira capacidades extraordinárias ao jovem durante seu crescimento. Até hoje, guias em Creta divertem os turistas com histórias dos notáveis poderes do jovem Zeus. Contam a história (como se tivesse acontecido durante a vida deles) de quando Zeus era bebê e estava brincando com sua adorada babá-cabra e, inconsciente de sua força, acidentalmente quebrou um dos chifres dela.[20] Por virtude de seus já prodigiosos poderes divinos, esse chifre quebrado, instantaneamente, se encheu das comidas mais deliciosas – pão fresco, verduras, frutas, carnes curadas e peixes defumados –, um suprimento que nunca se acabava, não importando quanto se tirasse dele. Assim, se originou a famosa CORNUCÓPIA da Abundância.

A determinada mãe de Zeus visitava Creta todas as vezes que conseguia escapar do sempre vigilante Cronos.

— Nunca se esqueça do que seu pai fez. Ele comeu seus irmãos e irmãs. Ele tentou comer você. Ele é seu inimigo.

Zeus escutava enquanto Reia descrevia as condições infelizes do mundo governado por Cronos.

— Ele governa pelo medo. Não tem nenhum senso de lealdade ou confiança. Esse não é o caminho, meu Zeus.

— Isso não o torna forte?

— Não! Torna-o fraco. Os Titãs são sua família, seus irmãos e irmãs, sobrinhos e sobrinhas. Alguns já estão começando a se ressentir de sua monstruosa tirania. Quando sua hora chegar, você vai se aproveitar desse ressentimento.

— Sim, mãe.

— Um verdadeiro líder forja alianças. Um verdadeiro líder é admirado e confiável.

— Sim, mãe.

— Um verdadeiro líder é amado.

— Sim, mãe.

— Você ri de mim, mas é verdade.

— Sim, m…

Reia deu um tapa no filho.

— Fique sério. Você não é bobo, posso ver isso por mim mesma. Adamanteia me diz que você é inteligente, mas impetuoso. Que você passa tempo demais caçando lobos, implicando com os carneiros, subindo nas árvores, seduzindo as ninfas dos freixos. Já é hora de você ser adequadamente educado. Você já tem dezesseis anos e logo devemos fazer nossa jogada.

— Sim, mãe.

As Oceânides e a poção

Reia pediu à sua amiga Métis, filha sábia e linda de Tétis e Oceano, que preparasse seu filho para o futuro.

— Ele é inteligente, mas caprichoso e precipitado. Ensine a ele paciência, habilidade e astúcia.

Zeus ficou cativado por Métis desde o início. Ele nunca vira beleza igual. A Titânide era um pouco menor do que a maior parte de sua raça, mas dotada de uma graça e uma gravidade que a faziam brilhar. O passo de uma gazela e a astúcia de uma raposa, a força de um leão, a suavidade de uma pomba, tudo isso aliado a uma presença e a uma força mental que estonteava o jovem.

— Deite-se comigo.

— Não. Vamos dar uma caminhada. Tenho muita coisa a lhe dizer.

— Aqui. Na grama.

Métis sorriu e pegou a mão dele.

— Temos trabalho a fazer, Zeus.

— Mas eu a amo.

— Então, fará o que digo. Quando amamos alguém, sempre queremos agradar, não é?

— Você não me ama?

Métis riu, embora, na verdade, estivesse espantada com o halo de sedução e carisma que irradiava desse jovem audacioso e belo. Mas sua amiga Reia tinha pedido que se encarregasse da educação dele, e Métis jamais traía uma confiança.

Durante um ano, ela o ensinou a enxergar dentro dos corações e julgar as intenções dos outros. A imaginar e a raciocinar. A encontrar a força para deixar as paixões esfriarem antes de agir. A elaborar um plano e a saber quando ele precisava ser mudado ou abandonado. A deixar a cabeça dominar o coração, e o coração ganhar o afeto dos outros.

Sua recusa em permitir que o relacionamento deles tomasse uma dimensão física apenas fez com que Zeus a amasse ainda mais. Embora nunca tivesse dito a ele, Métis retribuía esse amor. Como resultado, sempre que os dois estavam próximos, havia um tipo de estalo no ar.

Um dia, Zeus viu Métis de pé sobre uma grande rocha, esfregando sua superfície plana com uma pequena pedra arredondada.

— Que diabos você está fazendo?

— Esmagando sementes de mostarda e cristais de sal.

— Mas é claro.

— Hoje — disse Métis —, é seu décimo sétimo aniversário. Você está pronto para ir até o monte Ótris e cumprir o seu destino. Reia logo estará aqui, mas, primeiro, devo terminar um pequeno preparado que eu mesma inventei.

— O que há no pote?

— Aqui está uma mistura de suco de papoula e sulfato de cobre, adoçada com um xarope de maná fornecido pelas Melíades, nossas amigas do freixo. Vou juntar todos os ingredientes e sacudir. Assim.

— Não estou entendendo.

— Olhe, aqui está sua mãe. Ela explicará.

Sob o olhar de Métis, Reia detalhou o plano para Zeus. Mãe e filho olharam nos olhos um do outro, respiraram fundo e fizeram um juramento, de filho para mãe, de mãe para filho. Estavam prontos.

Renascimento dos cinco

Meia-noite. O espesso pano que Érebo e Nix jogaram sobre a terra, o mar e o céu para marcar o final da ronda diurna de Hemera e Éter cobria o mundo. Em um vale nas alturas do monte Ótris, o Senhor de Todos andava sozinho de um lado para outro, batendo no peito, irrequieto e infeliz. Cronos tinha se transformado no Titã mais mal-humorado e descontente que havia. O poder sobre tudo não lhe dava satisfação. Desde que Reia – sem dar explicações – o expulsara do leito conjugal, o sono também se tornara um estranho para ele. Desprovido de seu bálsamo calmante, seu humor e sua digestão, que já eram ruins, pioraram. O último bebê que ele engolira parecia ter provocado um agudo refluxo, ao contrário dos cinco anteriores. Qual era o prazer da onipotência, quando seu estômago o atormentava e seus pensamentos tropeçavam cegamente no espesso nevoeiro da insônia?

Entretanto, seu coração elevou-se a um estado próximo de algo parecido com felicidade quando ele escutou, inesperadamente, o som da voz suave de Reia sussurrando delicadamente para si mesma enquanto subia na direção do topo da montanha. Irmã mais adorável e esposa mais querida! Era bastante natural que ela tivesse ficado um pouco chateada com a ingestão de seus seis filhos, mas, certamente, entendia que ele não havia tido escolha. Ela era uma Titã, sabia o que eram dever e destino. Chamou-a.

— Reia?

— Cronos! Acordado a esta hora?

— Estou acordado há mais dias e noites do que consigo contar. Hipnos e Morfeu se tornaram estranhos para mim. Minha mente está cheia de escorpiões, querida esposa. — Macbeth, outro assassino privado de sono e atormentado por profecias sombrias, viria a dizer a mesma coisa, mas não por muitos anos.

— Ah, bobagem, meu amor. Será que a perspicácia e a habilidade de uma Titânide não conseguem sobrepujar esses tolos demônios do sono? Não há nada que Hipnos e Morfeu possam fazer para abrandar seu corpo dolorido, acalmar sua mente acelerada e sossegar seu espírito ferido, que eu não possa equiparar com algo meu, doce e quente.

— Seus doces e quentes lábios! Suas doces e quentes coxas! Sua doce e quente…

— Tudo a seu tempo, meu impaciente senhor! Primeiro, eu lhe trouxe um presente. Um menino adorável para ser seu copeiro.

Do recesso, saiu Zeus, com um sorriso radiante iluminando seu belo rosto. Fez uma reverência e ofereceu a Cronos uma taça cravada de pedras preciosas, que o Titã agarrou avidamente.

— Lindo, muito lindo. Posso experimentá-lo mais tarde — disse ele, lançando um olhar admirador para Zeus, e bebendo o conteúdo da taça em um trago ávido. — Mas, Reia, é você que eu amo.

Estava escuro demais para que ele pudesse ver a sobrancelha que Reia levantou num arco de incredulidade desdenhosa.

— Você me ama? — sibilou ela. — Você? Me? Ama? Você, que comeu todos menos um dos meus queridos filhos? Você ousa me falar de amor?

Cronos soltou um soluço infeliz. Ele estava experimentando as sensações mais estranhas. Franziu a testa e tentou focar. O que Reia estava dizendo? Impossível que ela não o amasse mais. A mente dele estava cada vez mais enevoada e seu estômago, ainda mais turbulento do que o usual. O que estava errado com ele? Ah, e havia mais uma coisa que ela dissera. Algo que não fazia nenhum sentido.

— O que você quis dizer — perguntou ele com uma voz espessa de confusão e náusea — quando mencionou que eu comi “todos menos um” de seus filhos? Eu comi todos. Lembro-me claramente.

Uma voz forte e jovem estalou pelo ar da noite como um chicote.

— Não exatamente todos, pai!

A náusea vinha subindo numa onda alarmante; Cronos se voltou em choque ao ver o jovem copeiro sair das sombras.

— Quem… quem… Queeeeeemmmm! — A pergunta de Cronos se transformou subitamente num acesso de vômito incontrolável. De suas entranhas, lançada num espasmo, saiu com ímpeto uma grande pedra. O linho em que tinha sido envolta há muito fora dissolvido pelo ácido do estômago. Cronos ficou olhando para ela estupidamente, os olhos rodando e o rosto pálido. Mas, antes que ele pudesse entender o que estava vendo, foi assaltado por aquele sentimento horrível e inconfundível que diz a quem está vomitando que ainda vem mais. Muito mais.

Zeus pulou rapidamente para a frente, apanhou a pedra regurgitada e a atirou longe, bem longe, do mesmo modo e do mesmo lugar de onde Cronos tinha uma vez atirado os órgãos genitais de Urano longe, bem longe. Mais tarde, descobriremos onde ela aterrissou e o que aconteceu.

Dentro de Cronos, o composto de sal, mostarda e ipecacuanha continuou a desempenhar sua tarefa emética.[21] Um a um, ele expeliu os cinco filhos que tinha engolido. A primeira a sair foi Hera.[22] Depois, vieram Poseidon, Démeter, Hades e, finalmente, Héstia, antes que o atormentado Titã desabasse num paroxismo de exaustão.

Você deve se lembrar de que a poção de Métis incluía também uma quantidade de suco de papoula, que imediatamente começou a fazer um efeito sonífero. Cronos soltou um último gemido retumbante, rolou e caiu num sono muito, muito profundo.

Num grito exultante, Zeus inclinou-se sobre o pai que roncava para agarrar a grande foice e administrar o golpe de misericórdia. Ele cortaria a cabeça de Cronos num golpe só e a elevaria em triunfo frente ao mundo, criando um quadro de vitória que jamais seria esquecido e que artistas pintariam até o final dos tempos. Mas a foice forjada por Gaia para Cronos não podia ser usada contra ele. Por mais poderoso que Zeus fosse, não conseguia sequer apanhá-la. Tentou uma vez, mas parecia que ela estava fixada no solo.

— Gaia a deu para ele e só Gaia a pode tirar dele — disse Reia. — Deixe para lá.

— Mas eu tenho de matá-lo — contestou Zeus. — Temos de ser vingados.

— A mãe dele, a Terra, o protege. Não a faça ficar zangada. Você vai precisar dela no futuro. Você terá sua vingança.

Zeus desistiu de suas tentativas de mover a foice. Era um vexame ele não conseguir decapitar o pai, que jazia ali, roncando como um porco, mas sua mãe tinha razão. Isso podia esperar. Havia coisa demais para celebrar.

À luz das estrelas sobre o monte Ótris, ele e seus cinco irmãos liberados riam e dançavam e assoviavam e uivavam, deliciados. A mãe deles também ria, batendo palmas de alegria ao ver seus filhos e filhas radiantes, tão bem e tão felizes, por fim, no mundo e prontos para reivindicar sua herança. Cada um dos resgatados, por sua vez, foi abraçar Zeus, seu irmão caçula, mas agora mais velho, seu salvador e líder. Juraram fidelidade a ele para sempre. Juntos, destronariam Cronos e toda a sua raça horrível, e estabeleceriam uma nova ordem…

Apesar de seus genitores, eles não se chamariam “Titãs”. Seriam apenas deuses. E não apenas deuses, mas os deuses.