Io
Os humanos do mundo mediterrâneo eram, naquela época, governados principalmente por reis. O modo como esses autocratas estabeleciam domínio sobre seu povo variava. Alguns eram descendentes de imortais, até de deuses. Outros, como é característico dos humanos, tomavam o poder pela força das armas ou intrigas políticas.
ÍNACO foi um dos primeiríssimos governantes na Grécia. Ele foi o primeiro rei de Argos, na península do Peloponeso, então uma cidade nova, movimentada e, hoje, uma das mais velhas cidades continuamente habitadas no mundo. Mais tarde, Ínaco foi semideificado e transformado num rio, mas, durante sua vida como humano, sua consorte MÉLIA lhe deus duas filhas, IO e MICENA.
Micena casou-se satisfatoriamente com um nobre chamado ARESTOR, mas o destino de Io era ser a primeira garota mortal a atrair as atenções predatórias de Zeus. Ínaco tinha escolhido Hera, a Rainha do Céu, como divindade padroeira de Argos, e sua filha Io tinha sido criada como sacerdotisa no mais importante santuário dedicado a Hera no mundo grego. Os flertes de Zeus com qualquer mulher já eram suficientes para provocar indignação em sua esposa, mas uma tentativa de deflorar uma de suas próprias sacerdotisas levaria sua zanga aos limites. Mesmo assim, ele desejava muito a adorável Io. Como tê-la sem Hera descobrir?
Zeus alisou a barba, pensou, pensou e encontrou o que ele acreditava ser um golpe de mestre. Transformou Io em uma vaca, uma linda novilha jovem, roliça, com flancos amplos e tremulantes e grandes olhos gentis.[102] Se pudesse escondê-la num pasto, Hera jamais a veria e ele poderia visitá-la quando quisesse. Ou assim ele imaginou. Quando a luxúria vem, a discrição, o bom senso e a sabedoria vão embora, e o que pode parecer um esconderijo esperto para alguém nas garras da paixão parece uma idiotice transparentemente desajeitada para todo mundo mais.
É mais fácil esconder de uma esposa ciumenta uma centena de montanhas do que uma amante. Hera, para quem as vacas eram sagradas e que possuía, portanto, um olho aguçado, experiente, para avaliar a espécie, notou o animal e imediatamente suspeitou sua identidade verdadeira.
— Que novilha adorável — comentou Hera displicentemente para Zeus certo dia durante o café da manhã no Olimpo. — Que forma perfeita. Pestanas tão longas e olhos atraentes.
— Ahn? Aquela coisa velha? — disse Zeus, olhando para baixo com um ar de tédio fingido para onde Hera estava apontando.
— Aquele é um dos seus pastos, querido, de modo que ela deve ser uma das suas.
— É possível — respondeu Zeus —, bem possível. Tenho milhares de vacas perambulando por aí. Não se pode esperar que eu identifique todas elas.
— Eu gostaria muito de ter essa novilha em particular — pediu Hera —, como presente de aniversário.
— Er… Mesmo? Aquela? Estou certo de que posso encontrar um animal muito mais gordo e mais adequado.
— Não — disse Hera, e aqueles que a conheciam teriam reconhecido um brilho nos olhos dela e o aço em sua voz. — É aquela que eu quero.
— Certamente, certamente — concordou Zeus, fingindo um bocejo. — É sua. Há um pote de ambrosia perto do seu cotovelo… Empurra para mim, por favor?
Hera conhecia muito bem o marido que tinha. Não havia como parar suas propensões libidinosas, uma vez excitadas. Ela mandou transferir Io para um pequeno piquete com portão e colocou seu servidor ARGO, neto de Ínaco, para vigiá-la.
Argo, filho de Micena e Arestor, era seguidor fiel de Hera, como todos os argivos da época, mas, além disso, tinha um dom especial que o tornava o guardião perfeito para sua tia Io. Ele tinha cem olhos. Seu apelido era PANOPTES, “o que vê tudo”. Obedecendo à vontade de Hera, ele estacionou no pasto, fixou cinquenta olhos em Io e deixou os outros cinquenta varrendo o entorno, acima e abaixo, à espreita de algum saqueador.
Zeus viu isso e ficou andando para lá e para cá, furioso. Seu sangue fervia. Deu um soco na palma da mão. Ele teria Io. Passou a ser uma questão de honra derrotar Hera nessa guerra silenciosa e não admitida. Ele conhecia os limites de sua própria esperteza, no entanto, de modo que chamou o malandro mais astuto e amoral do Olimpo para ajudá-lo.
Hermes entendeu imediatamente o que precisava ser feito. Sempre feliz em agradar a Zeus e semear travessuras, correu para o piquete de Io.
— Oi, Argo. Deixe-me fazer companhia a você por um tempo — disse ele, destrancando o portão e entrando. — Bela novilha você tem aqui.
Argo voltou uma dúzia de olhos na direção de Hermes, que se sentou no capim, puxou um conjunto de flautas e começou a tocar. Durante duas horas, ele tocou e cantou. A música, o calor da tarde, o perfume de papoulas, lavanda e tomilho silvestre, o suave rumorejar e remoinhar de um riacho por perto… Lentamente, os olhos de Argo começaram a se fechar, um a um.
Quando o centésimo olho por fim se fechou, Hermes baixou as flautas, avançou e apunhalou Argo no coração. Todos os deuses eram capazes de grande crueldade – Hermes podia ser tão mau quanto qualquer um deles.
Com Argo morto, Zeus abriu o portão para o pasto e soltou Io. Mas, antes que ele tivesse uma chance de mudá-la de volta para a forma humana, Hera, que tinha visto tudo, mandou uma mutuca, que ferroou Io de forma tão dolorida e persistente que a vaca pinoteou, gritou e fugiu a galope, para longe do alcance de Zeus.
Lamentando a morte de seu amado serviçal, Hera tirou os cem olhos brilhantes de Argo e os fixou na cauda de uma velha ave muito sem graça e deselegante, transformando-a no que hoje conhecemos como pavão. Foi assim que a ave, agora altiva, colorida e prosa, passou a ser para sempre associada com a deusa.
Io, enquanto isso, continuou correndo ao longo da margem norte do mar Egeu, nadando pelo lugar em que a Europa se transforma na Ásia, o ponto que ainda chamamos, em sua homenagem, de a travessia da vaca, ou, do grego, Bósforo. Sempre em frente, ela correu, se debatendo, pulando e guinchando em agonia, até chegar ao Cáucaso. Lá, a mutuca pareceu abrandar durante algum tempo, o suficiente para ela ver a figura de Prometeu torturado de dor, acorrentado na vertente da montanha.
— Sente-se e recupere um pouco o fôlego, Io — disse o Titã. — Alegre-se. As coisas vão melhorar.
— Dificilmente ficariam piores — gemeu Io. — Sou uma vaca. Estou sendo atacada pela maior e mais rancorosa mosca que o mundo já viu. E Hera vai me destruir. É só uma questão de eu ser picada até a morte ou enlouquecer e me afogar no mar.
— Sei que parece difícil para você — disse Prometeu —, mas eu algumas vezes vejo o futuro e sei o seguinte: você vai voltar à forma humana. Vai fundar uma grande dinastia na terra onde o Nilo se arrasta. E, de sua linhagem, vai surgir o maior de todos os heróis. Então, queixo para cima e alegre-se, hein?
Foi difícil para Io, mesmo em seu tormento, não dar atenção a essas palavras de alguém que – enquanto ela olhava horrorizada – estava sendo rasgado e deglutido por um par de abutres mal-encarados. O que eram suas inconveniências menores contra essa perpétua agonia?
Ao fim, Io voltou mesmo à forma humana. Ela se encontrou com Zeus no Egito e teve dele um filho, ÉPAFO, que desempenhará uma parte importante na história de Faetonte, a seguir. Supostamente, Zeus engravidou Io apenas pousando delicadamente a mão sobre ela – Épafo significa “toque”. Io também teve uma filha com Zeus, chamada KEROESSA, cujo filho BISAS foi fundador da grande cidade de Bizâncio. Se Keroessa foi concebida por toque ou pelo método mais tradicional de geração, não sabemos.
Io pode ter sido uma vaca, mas era uma vaca muito influente e importante.
A echarpe encharcada de sêmen
Uma história bastante tocante conta como Atena, sem sacrificar sua castidade, teve um papel na concepção e no nascimento de um dos fundadores da cidade-Estado de Atenas.
O manco Hefesto, desde que partira a cabeça de Zeus, ajudando a trazer Atena ao mundo, desenvolvera uma forte paixão pela deusa. Um dia, incapaz de controlar sua luxúria, seguiu-a até algum canto do alto Olimpo e tentou tomá-la à força. Deu que, em sua excitação, ele só conseguiu derramar sua semente na coxa dela. Atena, em nojo silencioso, retirou o turbante e o usou para limpar a bagunça, antes de o jogar montanha abaixo.
O pano encharcado aterrissou no solo, bem abaixo. O sêmen divino de Hefesto empapou a terra e engravidou Gaia. Dela, nasceu um menino, ERECTEU. Do céu, Atena olhou para baixo, viu aquilo e determinou que a criança deveria ser imortal. Ela desceu do Olimpo, botou a criança numa cesta de vime, fechou e a colocou sob os cuidados de três irmãs mortais, HERSE, AGLAUROS e PANDROSO. Por motivo algum, Atena disse a elas, a cesta deveria ser aberta. Mas Aglauros e Herse não conseguiram resistir e deram uma espiada. Viram um bebê se debatendo, preso nos anéis de uma cobra que se retorcia. Todas as cobras eram sagradas para Atena, e essa fazia parte do encantamento que a deusa estava usando para dotar o bebê Erecteu com a imortalidade. A visão chocante fez com que as duas mulheres instantaneamente enlouquecessem e se jogassem do ponto mais alto do morro, agora, chamado Acrópole, ou “cidadela alta”. Erecteu mais tarde se tornou (ou foi pai, as versões da história discordam) ERICTÔNIO, o lendário fundador de Atenas.
Se você hoje visitar a Acrópole, em Atenas, ainda poderá ver, bem ao norte do Partenon, o lindo templo chamado Erecteion. Seu pórtico famoso, de colunas cariátides em forma de donzelas drapeadas, é um dos grandes tesouros arquitetônicos do mundo. Perto dali, foram erigidos santuários à pobre Aglauros e também a Herse, o mínimo que deviam fazer.