Cupido e Psiquê

Erotes

Os gregos destrincharam a entrelaçada complexidade do amor dando a cada filão um nome exclusivo e uma divindade que o representasse. Afrodite, a suprema deusa do amor e da beleza, era assistida por uma comitiva de deuses menores, alados e nus, chamados Erotes. Como muitos outros seres divinos (Hades e seu bando no mundo inferior, por exemplo), os Erotes subitamente se viram muito atarefados, já que a humanidade tinha se estabelecido e estava em progressão. Cada um dos Erotes era encarregado de promulgar e promover um tipo especial de paixão amorosa.

ANTERO – o padroeiro jovial do abnegado amor incondicional.

EROS – o líder dos Erotes, deus do amor físico e do desejo sexual.

HEDILOGO – o espírito da linguagem do amor e dos termos carinhosos, e que agora, supõe-se, cuida dos cartões do Dia dos Namorados, de cartas de amor e da ficção romântica.

HERMAFRODITO – o protetor dos homens afeminados, das mulheres masculinizadas e daqueles que hoje chamamos de gênero fluido.

HIMEROS – a personificação do amor desesperado, impetuoso, o amor que está impaciente por ser satisfeito e prestes a estourar.

HIMENEU – o guardião da câmara nupcial e da música de casamento.

POTHOS – a personificação do desejo lânguido, do amor pelo ausente e do que já partiu.

Desses todos, Eros era o mais influente e abrasador, com seu poder e sua capacidade de semear travessuras e discórdia. Há duas histórias com respeito a sua origem e identidade. Em um relato do surgimento do cosmos, ele eclodiu de um ovo chocado por Nix para semear toda a vida no universo. Poderia, portanto, ser contado entre os primeiríssimos espíritos primordiais que deram a partida na torrente da criação. Uma visão, talvez mais comumente adotada no mundo clássico, diz que ele era filho de Ares e Afrodite. Sob seu nome romano, CUPIDO, ele costuma ser representado como uma criança alada sorridente, prestes a atirar uma flecha de seu arco de prata, uma imagem bastante conhecida até hoje, fazendo de Eros o deus talvez mais instantaneamente identificado dentre todos os da Antiguidade clássica.

Cupidez e desejo erótico estão associados a ele, do mesmo modo que a paixão instantânea e incontrolável, resultante de se ter sido atingido por seu dardo, a flecha que compele sua vítima, uma vez alvejada, a se apaixonar pela primeira pessoa (ou até animal) que vir. Eros pode ser tão caprichoso, travesso, aleatório e cruel quanto o próprio amor.

Amor, amor, amor

Os gregos tinham pelo menos quatro palavras para amor:

ÁGAPE – era o tipo de amor grande e generoso que descreveríamos como “caridade”, e que poderia se referir ao tipo de amor santo, como o dos pais pelos filhos ou o do devoto por seu deus.

EROS – o tipo de amor que recebeu o nome em homenagem ao deus, ou segundo o qual o deus foi batizado. O tipo que nos mete em mais encrencas. Muito mais do que afetuoso, muito menos do que espiritual, eros e o erótico podem nos levar à glória e à desgraça, ao mais alto píncaro de felicidade e ao mais profundo poço de desespero.

FILIA – A forma de amor aplicada à amizade, à parcialidade e à estima. Vemos seus traços em palavras como “francófilo”, “necrófilo” e “filantropia”.

ESTÓRGICO – o amor e a lealdade que alguém possa ter pelo seu país ou pelo seu time de futebol pode ser encarado como estórgico.

O próprio Eros, embora mais tarde retratado por artistas da Renascença e do Barroco do modo como descrevi – um querubim risonho, esperto e com covinhas (algumas vezes, usando uma venda para representar a natureza imprevisível e arbitrária de sua mira) –, era, para os gregos, um jovem já completamente crescido e cheio de atributos. Artista, atleta (tanto sexual como esportivo), ele era considerado patrono e protetor do amor gay masculino, além de ser presença de destaque nos ginásios e nas pistas de corrida. Era associado a golfinhos, galos, rosas, tochas, liras e, é claro, àquele arco com a aljava cheia de flechas.

Talvez o mito mais conhecido envolvendo Eros e Psiquê – Amor Físico e Alma – seja quase absurdamente propício a interpretações e explicações. Acho, no entanto, que, como todos os mitos, é melhor narrá-lo não como alegoria, fábula simbólica ou metáfora, mas como história, mesmo. Apenas uma história. Tem muitos dos ritmos e enredos que associamos a narrativas de busca e a contos de fadas, talvez porque tenha chegado até nós por meio daquele que muitos consideram o mais forte candidato a Primeiro Romance de Todos: O asno de ouro, do escritor romano Apuleio. A influência dessa história sobre uma parte tão grande do pensamento ocidental, da literatura popular e da arte – sem mencionar seu charme – justifica, espero, contá-la novamente de forma completa.

Psiquê

Era uma vez uma terra cujo nome se perdeu, onde moravam um rei e uma rainha e suas três lindas filhas. Vamos chamar o rei de ARISTIDES e a rainha de DAMÁRIS. As duas garotas mais velhas, CALANTE e ZONA, eram lindas o bastante para serem admiradas em toda parte; mas a mais nova, cujo nome era PSIQUÊ, era tão inteiramente maravilhosa que muitos no reino abandonaram o culto de Afrodite e passaram, em vez disso, a reverenciar a menina. Afrodite era uma deusa ciumenta e vingativa e não suportava ter uma rival, ainda mais uma mortal. Ela chamou seu filho, Eros.

— Eu quero que você encontre um porco — disse ela —, o mais feio e peludo de toda a terra. Vá ao palácio onde mora Psiquê, atire uma flecha nela e certifique-se de que o porco seja a primeira coisa que ela veja.

Acostumado aos modos encantadores de sua mãe, Eros partiu muito alegremente em sua incumbência. Comprou um porco especialmente eriçado e fedorento de um guardador de porcos que vivia próximo ao palácio e o levou naquela noite para a janela do quarto onde Psiquê dormia. Mais desajeitadamente do que se poderia supor de um esbelto deus atlético, ele tentou subir pela janela sem fazer barulho, com o porco embaixo do braço.

Uma série de coisas aconteceu muito rapidamente.

Eros aterrissou em segurança no quarto iluminado pela lua.

Psiquê continuou dormindo tranquilamente.

Eros segurou o porco com firmeza entre as pernas.

Eros estendeu a mão para trás do ombro para tirar uma flecha da aljava.

O porco berrou.

Eros, aturdido, arranhou seu próprio braço com a ponta da flecha, quando puxou o arco.

Psiquê acordou sobressaltada e acendeu uma vela.

Eros viu Psiquê e ficou profundamente apaixonado por ela.

Que bagunça. O próprio deus do amor apaixonado. Seria possível achar que, em seguida, ele acertaria uma flecha em Psiquê e tudo acabaria bem. Mas, aqui, Eros se sai bastante bem. Seu amor era tão real, tão puro e tão absoluto que ele sequer pensava em tirar a escolha de Psiquê. Lançou sobre ela um último olhar desejoso, virou-se e pulou a janela de volta para a noite.

Psiquê viu o porco correndo, enlouquecido, fuçando em círculos no chão do seu quarto, concluiu que devia estar sonhando, apagou a vela e voltou a dormir.

Profecia e abandono

Na manhã seguinte, o rei Aristides ficou alarmado ao saber por um empregado que sua filha mais nova parecia ter transformado o quarto dela em algum tipo de chiqueiro. Ele e a rainha Damáris já estavam bastante preocupados com o fato de que, ao contrário de suas irmãs, Calante e Zona, que tinham se unido a ricos proprietários de terras, Psiquê teimava em não querer se casar. As notícias de que ela, agora, estava convivendo com porcos fizeram-no tomar uma decisão. Viajou até o oráculo de Apolo para indagar sobre o futuro da garota.

Depois dos sacrifícios e das preces apropriadas, a Sibila deu esta resposta:

— Enfeite sua filha com flores e a leve para um lugar alto. Deite-a sobre uma rocha. Aquele que virá para tomá-la como noiva é o ser mais perigoso da terra, do céu ou da água. Seu poder é temido por todos os deuses do Olimpo. Assim foi ordenado, assim terá de ser. Se não fizer isso, a criatura devastará todo o seu reino, e a discórdia e o desespero virão em sua esteira. Você, Aristides, será acusado de destruir a felicidade de seu povo.

Dez dias mais tarde, uma estranha procissão saiu da cidade. Carregada no alto de uma liteira, enfeitada com uma grinalda de flores e vestida no mais puro branco, sentava-se Psiquê, melancólica mas resignada. Tinham contado a ela sobre o pronunciamento do oráculo e ela tinha se resignado. Sua propalada beleza fora sempre uma fonte de irritação para ela. Ela odiava todo o rebuliço que causava, o comportamento estranho provocado por sua presença e o fato de se sentir extravagante e posta de lado. Ela planejara nunca se casar, mas, se fosse obrigada, um bicho voraz não seria pior do que um príncipe chato e bajulador com olhos de peixe morto. A agonia pelas atenções, pelo menos, terminaria rápido.

O povo avançou entoando comoventes lamentos de pesar e dor montanha acima, até a grande rocha de basalto na qual Psiquê seria deitada para o sacrifício. A mãe dela, Damáris, uivava, guinchava e soluçava. O rei Aristides dava tapinhas na mão dela e desejava estar em qualquer outro lugar. Calante e Zona, acompanhadas por seus maridos chatos e velhos, mas ricos, tentavam o melhor que podiam esconder a profunda satisfação sentida por saberem que em breve seriam, incontestavelmente, as mais belas da terra.

Psiquê fechou os olhos e respirou fundo, enquanto era amarrada à rocha, esperando todo mundo acabar com as lamentações e demonstrações de dor. Logo, todo o sofrimento e a dor estariam terminados.

Entoando hinos a Apolo, a multidão voltou morro abaixo, deixando Psiquê sozinha sobre a rocha. O sol brilhava sobre ela. Cotovias cantavam no céu azul. Ela tinha imaginado nuvens pesadas, ventos uivantes, chuvas torrenciais e trovões aterrorizantes como acompanhamento de sua violação e morte, não esse idílio glorioso, de sol de fim de primavera e cantos de pássaros.

Quem ou o que seria essa criatura? Se o relato de seu pai quanto à previsão do oráculo estivesse correto, até os altos olímpicos o temiam. Mas ela nunca tinha ouvido falar de nenhum monstro terrível em nenhuma das lendas e rumores de lendas com que tinha crescido. Nem mesmo Tufão e Equidna tinham o poder de alarmar os poderosos deuses.

De repente, um cálido sopro de vento enrugou sua túnica branca cerimonial. O sopro se tornou uma lufada, que criou um colchão de ar entre ela e o basalto frio sobre o qual jazia. Para sua grande surpresa, Psiquê se viu sendo erguida. O vento parecia ser quase uma coisa sólida – a sustentava, segurando-a firme e a carregando pelo ar.

O castelo encantado

Psiquê voava alto, acima do solo, segura nos braços fortes mas delicados de ZÉFIRO, o Vento do Oeste.

Isto não pode ser a besta que todos nós teríamos de temer, pensou consigo mesma. Este vento deve ser o mensageiro e arauto da besta. Ele está me levando para meu destino. Bem, pelo menos, a viagem é confortável.

Ela olhou para baixo, para a cidade onde crescera. Como as coisas todas pareciam pequenas, nítidas e arrumadas. Tão diferente do município grande demais, fedorento e caindo aos pedaços que ela conhecia e odiava. Zéfiro ganhou velocidade e altura e logo estavam passando sobre montes e ao longo de vales, planando sobre o oceano azul e zunindo por ilhas, até chegarem a um país que ela não reconheceu. Era fértil e densamente arborizado, e, durante a descida gradual, ela viu, construído numa clareira, um palácio magnífico, com torres redondas nos cantos, coroadas com torreões. Psiquê foi baixada, delicadamente e com facilidade, até aterrissar com um passo deslizante na grama florida em frente a um par de portões dourados. O vento foi embora soltando um chiado e um suspiro, e ela se viu sozinha. Não ouviu nenhum rugido, urro ou rosnado voraz, apenas uma música distante, flutuando do interior do palácio. Ao se aproximar, hesitante, os portões se abriram.

O palácio real onde Psiquê cresceu era – para os cidadãos comuns de seu país – ornamentado, opulento e avassalador, mas, ao lado do deslumbrante edifício fantástico em que ela estava entrando, não passava de uma choupana grosseira. Enquanto ela entrava, seus olhos corriam sobre colunas de ouro, madeira de cidra e marfim, painéis em relevo de prata esculpida com complexidade e talento artístico que ela nunca sonhara ser possível, e estátuas de mármore tão perfeitamente reproduzidas que pareciam se mexer e respirar. A luz brilhava nos saguões e corredores tremulantes de ouro, o chão em que ela pisava era um mosaico de pedras preciosas a dançar, e a música misteriosa ficava mais forte quanto mais ela entrava. Passou por fontes em que águas cristalinas brincavam em arcos milagrosos, se formando e reformando e quase desafiando a gravidade. Percebeu vozes femininas baixas. Ou ela estava sonhando, ou o palácio era divino. Nenhum mortal e, certamente, nenhum monstro poderia ter encomendado uma habitação tão fabulosa.

Chegou a um aposento central, quadrado, cujos painéis pintados mostravam cenas do nascimento dos deuses e da guerra com os Titãs. O ar era perfumado com sândalo, rosas e especiarias.

Vozes, visões e um visitante

Os sussurros e a música pareciam vir de todo lugar e de lugar nenhum, mas, de repente, cessaram. No grande silêncio que restou, uma voz baixa a chamou.

— Psiquê, Psiquê, não fique tímida. Não arregale os olhos e estremeça como uma corça assustada. Você não sabe que isso tudo é seu? Toda essa beleza, essas pedras preciosas, esse palácio grandioso e as terras em torno dele: tudo seu. Atravesse aquela porta e tome um banho. As vozes que você escuta são suas servas, para fazerem o que você mandar. Quando você estiver pronta, será servido um grande festim. Bem-vinda, amada Psiquê, bem-vinda e aproveite.

A garota, aturdida, entrou no aposento seguinte, uma câmara enorme cheia de tapeçarias e painéis de seda, iluminada por tochas flamejantes em suportes de bronze. Em uma extremidade havia uma reluzente banheira de cobre, e no centro uma cama simplesmente colossal, cuja estrutura envolta em murta era de cipreste polido e os lençóis eram salpicados de pétalas de rosa. Psiquê estava tão cansada, tão zonza e tão incapaz de qualquer entendimento que se deitou na cama e fechou os olhos, na esperança confusa de que o sono pudesse acordá-la desse sonho maluco.

Mas, quando acordou, ainda estava dentro do sonho. Levantou-se das macias almofadas de brocado e viu vapor subindo da banheira. Tirou a roupa e entrou na água.

Foi aí que as coisas ficaram muito estranhas.

Um frasco de prata ao lado da banheira se ergueu, dançou no ar e entornou seu conteúdo na água. Antes que ela tivesse tempo para soltar um grito de surpresa, uma gloriosa nuvem de fragrâncias desconhecidas assaltou seus sentidos. Agora, uma escova com cabo de marfim estava esfregando suas costas e uma jarra de água quente estava sendo esvaziada sobre seus cabelos. Mãos invisíveis massagearam, tocaram, bateram, provocaram e apertaram. Psiquê riu como uma garotinha e deixou que tudo acontecesse. Se era um sonho dentro do mundo real ou um momento de realidade dentro de um sonho, já não parecia ter importância. Ela ia curtir a aventura e ver aonde a levaria.

Damascos, sedas, cetins e gazes voavam de armários ocultos e planavam até a cama, para brilhar ao lado dela, farfalhando na antecipação de serem os escolhidos. Ela escolheu uma túnica de gaze lápis-lazúli – solta, confortável e excitante.

As portas do quarto se abriram e ela, um tanto hesitante, voltou à sala principal. Um grande banquete estava posto sobre a mesa. Mãos invisíveis iam de um lado para outro com travessas de frutas, copos de mel fermentado, pratos com aves exóticas assadas e pratos de doces. Nunca Psiquê vira ou imaginara tal banquete. Fora de si de alegria, ela mergulhou os dedos em pratos tão deliciosos que a fizeram dar gritos de entusiasmo. Os porcos no chiqueiro das fazendas de seus pais não fuçavam ou farejavam seus cochos de madeira com um abandono mais desinibido do que ela chafurdava nos mágicos recipientes de cristal, prata e ouro que se enchiam sozinhos com a mesma velocidade com que ela os esvaziava. Guardanapos voavam para limpar seus lábios manchados de vinho e seu queixo sujo de comida. Um coro invisível cantava baladas delicadas e hinos ao amor humano, enquanto ela devorava e engolia, extasiada.

Finalmente, ela acabou. Um sentimento de grande quentura e bem-estar se instalou sobre ela. Se ela estivesse sendo engordada para alimentar um ogro, que assim fosse.

As velas da mesa, então, se ergueram e levaram Psiquê de volta ao quarto de dormir. As tochas tremulantes e as suaves lâmpadas a óleo tinham se apagado e o quarto estava em escuridão quase completa. As mãos invisíveis a empurraram delicadamente para a beirada da cama e seu vestido de gaze foi erguido e retirado. Nua, ela se deitou de costas entre os lençóis de cetim e fechou os olhos.

Um instante mais tarde, arquejou, em choque. Alguém ou alguma coisa tinha deslizado para a cama, ao lado dela. Um hálito doce e caloroso se misturou ao dela. A pele dela tocou o corpo não de um bicho, mas de um homem. Ele não tinha barba e – ela sabia disso mesmo sem vê-lo – era lindo. Ela não conseguia ver nem sua silhueta, apenas sentir seu calor e sua firmeza juvenil. Ele beijou os lábios dela e eles se entrelaçaram.

Na manhã seguinte, a cama estava vazia e Psiquê foi banhada outra vez pelas servas invisíveis. À medida que o longo dia passava, ela conseguiu reunir a coragem para fazer perguntas.

— Onde estou?

— Ora, está aqui, alteza.

— E onde é aqui?

— Longe de lá, mas perto das proximidades.

— Quem é o dono deste palácio?

— Você é a dona.

Nunca uma resposta direta. Ela não pressionou. Sabia que estava num palácio encantado e podia sentir que suas servas eram escravas de suas próprias regras e exigências.

Naquela noite, na plena escuridão, o lindo jovem veio de novo para a cama dela. Ela tentou falar com ele, mas ele pôs um dedo sobre seus lábios e uma voz soou dentro da cabeça dela.

— Silêncio, Psiquê. Não faça perguntas. Ame-me como eu a amo.

E lentamente, à medida que os dias se passavam, ela se deu conta de que amava muito, sim, esse homem nunca visto. Todas as noites, eles faziam amor. Cada manhã, ela acordava e ele tinha partido.

O palácio era glorioso e não havia nada que as servas de Psiquê não fizessem para ela. Ela tinha tudo o que poderia desejar, o melhor para comer ou beber e música que a acompanhava por toda parte. Mas como eram longos os dias solitários que se estendiam entre as noites de amor delicioso, como ela achava difícil passar o tempo…

O “monstro” com quem ela dormia todas as noites era, você deve ter adivinhado, o deus Eros, cuja flecha autoinfligida tinha feito com que ele se apaixonasse por Psiquê, um amor agora ampliado pelas repetidas noites de deleite mútuo. O oráculo estivera certo ao dizer que Eros era um ser cujos poderes assustavam os deuses, porque não havia um, no Olimpo, que não tivesse sido conquistado por Eros em algum momento. Afinal, talvez ele fosse mesmo um monstro. Mas podia ser sensível e doce, além de caprichoso e cruel. Ele viu que Psiquê não estava inteiramente feliz e, uma noite, enquanto estavam deitados na escuridão, a inquiriu ternamente.

— O que a aflige, amada esposa?

— Detesto dizer isso quando você já me deu tanto, mas durante o dia eu me sinto só. Tenho saudade das minhas irmãs.

— Suas irmãs?

— Calante e Zona. Elas acham que eu estou morta.

— A convivência com elas só poderá trazer infelicidade, sofrimento e desespero, para elas e para você.

— Mas eu as amo…

— Sofrimento e desespero, estou lhe dizendo.

Psiquê suspirou.

— Por favor, acredite em mim — ele pediu. — É para o seu bem, isso de você ficar longe delas.

— E você? Não posso vê-lo? Será que jamais poderei ver o rosto daquele que amo tanto?

— Você não deve me pedir isso. Nunca me peça isso.

Os dias se passaram e Eros viu que Psiquê – apesar de todo o vinho e de toda a comida, de toda a música e das fontes mágicas e vozes encantadas – estava ansiosa.

— Alegre-se, amada! Amanhã é nosso aniversário de casamento — disse ele.

Um ano! Já se havia passado um ano inteiro?

— Meu presente para você é conceder seu desejo. Amanhã, meu amigo Zéfiro vai esperar por você do lado de fora do palácio e levá-la para onde você precisa estar. Mas, por favor, tenha cuidado. Não se deixe envolver demais na vida de sua família. Você tem de prometer nunca contar a eles nada a meu respeito. Nem uma palavra a meu respeito.

Psiquê prometeu e eles caíram um nos braços do outro para a noite de amor de aniversário. Nunca ela sentira mais adoração apaixonada ou deleite físico, e percebeu sentimentos de ardor e de amor iguais nele também.

Na manhã seguinte ela acordou, como sempre, na cama vazia. Com impaciência febril, ela se deixou vestir e tomou o café da manhã apresentado por suas serviçais, antes de correr, animada, para o grande portão na frente do palácio. Mal pisou do lado de fora e Zéfiro a arrebatou e voou com ela em seus braços fortes.

Irmãs

Enquanto isso, na terra natal de Psiquê, o povo lembrava o aniversário de sua captura pelo famoso mostro invisível. O rei Aristides e a rainha Damáris haviam liderado uma procissão de luto montanha acima até a laje de basalto na qual a filha tinha sido amarrada – desde então, chamada de “Rocha de Psiquê” em sua homenagem. Agora, permaneciam no monumento apenas as duas princesas Calante e Zona, que tinham avisado em alto e bom som a quem quisesse ouvir que desejavam ficar para trás a fim de prantearem em particular.

Uma vez sumida a multidão, elas arrancaram seus véus de luto e começaram a rir.

— Imagine que tipo de criatura a levou — disse Zona.

— Com asas, como uma Erínia… — sugeriu Calante.

— Com garras de ferro…

— E hálito causticante…

— Grandes caninos amarelos…

— Cabelos de serpente…

— Uma grande cauda que… O que foi isso?

Uma súbita lufada de vento fez com que se voltassem. E, aí, deram um grito de susto.

A irmã delas, Psiquê, estava de pé na frente delas, radiante, em um reluzente vestido branco com bordas de ouro. Estava espantosamente linda.

— Mas… — começou Calante.

— Achamos… — gaguejou Zona.

E, então, as duas em uníssono:

— Irmã!

Psiquê avançou com as mãos estendidas e o rosto iluminado com o mais doce sorriso de amor fraternal. Calante e Zona pegaram uma mão cada para beijar.

— Você está viva!

— E tão… tão…

— E esse vestido… deve ter custado, quer dizer, parece…

— E você parece… — disse Zona — tão… tão… Calante, qual é mesmo a palavra?

— Feliz? — sugeriu Psiquê.

— Alguma coisa — as irmãs concordaram. — Você definitivamente parece alguma coisa.

— Mas conte-nos, Psiquê querida…

— O que aconteceu com você?

— Nós aqui lamentando, soluçando um monte por você.

— Quem te deu esse vestido?

— Como é que você saiu da rocha?

— É ouro de verdade?

— Um monstro veio te buscar? Uma besta? Um ogro?

— E esse tecido!

— Um dragão, talvez?

— Como é que você faz para não amassar?

— Ele a levou para a cova dele?

— Quem arruma seu cabelo?

— Ele tentou mastigar seus ossos?

— Isso não é uma esmeralda de verdade, é?

Rindo, Psiquê levantou uma mão.

— Queridas irmãs! Vou contar-lhes tudo. Melhor ainda, vou mostrar-lhes tudo. Venha, vento, leve-nos lá.

Antes que as irmãs pudessem se dar conta do que estava acontecendo, as três foram erguidas e estavam viajando rapidamente pelo ar, na segurança dos braços do Vento do Oeste.

— Não resistam. Relaxem — recomendou Psiquê quando Zéfiro fez um giro sobre a montanha. Os gemidos de Zona começaram a diminuir e os soluços abafados de Calante se transformaram num choramingo. Não demorou muito para elas conseguirem até abrir os olhos durante alguns segundos sem gritar.

Quando o vento finalmente as depositou na grama em frente ao palácio encantado, Calante decidiu que aquele era o único modo de se viajar.

— Quem precisa de um cavalo estúpido puxando uma velha carruagem cambaleante e barulhenta? — questionou. — De agora em diante, vou pegar o vento…

Mas Zona não estava escutando. Ela estava de olhar fixo, petrificada, nos muros, nos torreões e na porta com rebites de prata do palácio, tudo brilhando ao sol da manhã.

— Entrem — convidou Psiquê. Que sentimento empolgante, mostrar às queridas irmãs o seu novo lar. Era pena que não pudessem conhecer seu amado marido.

Dizer que as garotas ficaram impressionadas seria subestimar criminosamente a questão. É claro que elas fungaram, bocejaram, deram risadas silenciosas, sacudiram a cabeça e fizeram muxoxos durante o trajeto de cômodo dourado a cômodo dourado através de corredores com painéis de prata e passagens encrustadas com pedras preciosas. Seus narizes empinados e franzidos pareciam sugerir que elas estavam acostumadas a coisa melhor.

— Só um pouco vulgar, não achamos, querida? — sugeriu Zona. Por dentro, ela disse para si mesma: Isto é a casa de um deus!

Calante estava pensando: Se eu pudesse parar e fingir consertar as tiras da minha sandália, conseguiria arrancar um dos rubis encrustados naquela cadeira…

Quando a equipe invisível de mordomos, lacaios e servas começou a servir o almoço, as irmãs passaram a ter mais dificuldade em mascarar a admiração e o assombro. Depois, cada uma por sua vez foi massageada com óleo e banhada.

Pressionada para dar detalhes sobre o senhor do castelo, Psiquê se lembrou da promessa e rapidamente inventou alguma coisa.

— Ele é um belo caçador e proprietário de terras local.

— Qual é o nome dele?

— Os olhos mais bondosos.

— E o nome dele é…?

— Ele ficou com muita pena de não estar com vocês. Mas, durante o dia, sempre sai para o campo com seus cães. Ele queria demais saudá-las pessoalmente. Talvez numa outra ocasião.

— Sim, mas como ele se chama?

— Na verdade, ele não tem um nome.

— O quê?

— Bem, ele tem um nome. É claro que ele tem um nome, todo mundo tem um nome, Zona, quer dizer, óbvio! Mas ele não o usa.

— Mas qual é?

— Meu deus, rápido! Já está escurecendo e Zéfiro não voa à noite. Vamos, queridas irmãs, sirvam-se de algumas coisinhas para levarem para casa. Aqui está um punhado de ametistas. Essas são safiras. Há ouro, prata… Não deixem de levar presentes para a mãe e o pai também.

Carregadas de tesouros preciosos, as irmãs se deixaram ser transportadas de volta à rocha. Psiquê foi se despedir, acenando, mas, ao mesmo tempo que estava aliviada, estava também com pena de vê-las irem embora. Embora tivesse apreciado a companhia delas e a oportunidade de mostrar seu ambiente e dar-lhes presentes, sua determinação em manter a promessa que fizera ao marido tornara a evasão a todas aquelas perguntas um negócio exaustivo.

De volta a casa, as irmãs – apesar dos tesouros fabulosos que agora possuíam – estavam se roendo de inveja, ressentimento e fúria. Como é que a irmã caçula, a burra e egoísta Psiquê, se encontrava agora na posição mais ou menos de uma deusa? Era tão terrivelmente injusto! Criatura mimada, vaidosa, feia! Bem, feia, talvez, não. Tinha certa beleza óbvia, um tanto vulgar, mas dificilmente comparável à beleza majestosa delas. Era tudo monstruosamente injusto: havia, quase com certeza, alguma coisa de bruxaria e maldade no fundo disso tudo. Como é que ela nem sequer sabia o nome de seu amo e senhor?

— O reumatismo do meu marido Sato — disse Calante — está piorando tanto que toda noite tenho de esfregar seus dedos, um a um, e depois aplicar emplastros e cataplasmas. É nojento e humilhante.

— Você acha que a sua vida é um inferno? — declarou Zona. — O meu Charion é careca como uma cebola, seu hálito fede e ele tem a energia sexual de um porco morto. Enquanto que Psiquê…

— Aquela puta egoísta…

As irmãs se agarraram uma na outra e se acabaram de soluçar.

Naquela noite, o marido de Psiquê, Eros, tinha boas notícias para ela. Ela estava despejando sobre ele toda a sua gratidão e explicando seu sucesso em conseguir evitar descrevê-lo para as irmãs, quando ele colocou o dedo sobre os lábios dela.

— Doce criança confiante. Tenho medo dessas irmãs e do que elas podem fazer com você. Mas estou contente por você estar feliz. Deixe-me fazê-la ainda mais feliz. — Ela sentiu a mão quente dele deslizar pela frente dela e delicadamente alisar sua barriga. — Nosso filho está crescendo aqui.

Psiquê perdeu o fôlego e o abraçou apertado, tonta de alegria.

— Se você mantiver isto em segredo — continuou ele —, a criança será um deus. Se você falar com um vivente que seja, será mortal.

— Vou guardar segredo — garantiu Psiquê. — Mas, antes de a minha condição se tornar aparente, deixe-me pelo menos ver Calante e Zona mais uma vez e me despedir delas.

Eros ficou perturbado, mas não tinha como negar um pedido tão decente e fraternal, de modo que consentiu.

— Zéfiro enviará um sinal para elas, e elas virão — disse ele, se inclinando para dar um beijo. — Mas lembre-se: nem uma palavra sobre mim ou sobre nosso bebê.

Uma gota de óleo

Na manhã seguinte, Calante e Zona acordaram sentindo o hálito de Zéfiro, parecendo um cachorrinho com fome, arfando e puxando as roupas de cama. Ao abrirem os olhos e sentarem-se, o vento foi embora, mas o instinto, a cobiça e a astúcia natos as fizeram perceber o significado daquilo, e elas correram até a rocha para esperar o transporte. Desta vez, estavam determinadas a chegar ao fundo do mistério do amado da irmã.

Psiquê estava lá para recebê-las quando desceram à frente do palácio. Abraçando-a carinhosamente, as irmãs esconderam a inveja furiosa que sentiam da boa sorte de Psiquê, manifestando, em vez disso, uma enxurrada de cacarejos e um clicar de dentes solícitos, acompanhados de muita abanação de cabeça.

— O que houve, Calante? — perguntou Psiquê, intrigada, quando se sentaram para um maravilhoso café da manhã com frutas, bolos e vinho de mel. — Por que tão tristonha, Zona? Vocês não estão felizes em me ver?

— Felizes? — gemeu Calante.

— Quem dera… — suspirou Zona.

— O que poderia estar preocupando vocês?

— Ah, menina, menina — disse Calante com um gemido. — Você é tão nova. Tão doce. Tão sem malícia.

— Tão fácil de ser enganada.

— Não estou entendendo.

As irmãs se entreolharam como se ponderando se revelariam duras verdades.

— O quanto, se é que algo, você conhece isso… essa coisa que vem todas as noites visitá-la?

— Não é uma coisa! — protestou Psiquê.

— Claro que é uma coisa. É o monstro previsto pelo oráculo.

— Cheio de escamas, aposto — disse Zona. — Ou, se não escamoso, peludo.

— Ele não é nada disso — respondeu Psiquê, indignada. — Ele é jovem e lindo e gentil. Tem a pele macia, músculos firmes…

— Qual a cor dos olhos dele?

— Bem…

— Ele é louro ou moreno?

— Irmãs queridas — disse Psiquê. — Vocês conseguem guardar um segredo?

Calante e Zona se aproximaram e deram palmadinhas amorosas na irmã.

— Se conseguimos guardar segredo? Que pergunta!

— O que acontece é — continuou Psiquê —, bem, acontece que eu na verdade não sei como ele é. Nunca o vi… apenas… senti.

— O quê? — Calante estava chocada.

— Quer dizer que você nunca nem olhou para o rosto dele?

— Ele insiste que eu não o devo ver. Vem até mim na maior escuridão da noite, desliza entre os lençóis e nós… bem, nós… vocês sabem… — Psiquê enrubesceu. — Mas consigo traçar o perfil dele e o que sinto não é o corpo de um monstro. É o corpo de um homem esplêndido e maravilhoso. Só que, pela manhã, ele já foi embora.

— Oh, sua bobalhona! — riu Zona. — Você não sabe — ela se interrompeu como se estivesse com medo de continuar.

As irmãs trocaram olhares penalizados e conhecedores.

— Ah, meu deus…

— Psiquê não sabe!

Calante respondeu com um som que era algo entre um riso e um suspiro.

Psiquê olhou de uma para a outra, perplexa.

— Sei o quê?

Calante pôs os braços em torno dela e explicou, com Zona interpondo suas próprias observações e afirmações. Os piores e mais horrendos monstros – na verdade, exatamente o tipo que o oráculo de Apolo havia previsto que a viria devorar! – possuem poderes – sempre possuíram, eram famosos por possuir, eram celebrados pelo mundo inteiro por isso! –, por exemplo, o poder de se transformar, de adotar formas enganosas – formas que podiam parecer empolgantes e atraentes ao toque de uma garota jovem – a inocente e boba! –, de modo a um dia plantar sua semente demoníaca dentro dela – pobre menina, ela não entende essas coisas, mas os homens conseguem fazer isso – e obrigá-la a dar à luz uma nova abominação, um monstro ainda mais terrível – uma mutação –, é como eles propagam sua espécie vil.

Psiquê levantou a mão.

— Parem! Por favor! Eu sei que vocês têm as melhores das intenções, mas vocês não sabem como ele é terno, como é gentil, como é delicado…

— É assim que eles são! É exatamente assim que eles são!

— Você não vê? Se alguma coisa prova a crueldade feroz desse monstro é exatamente a sua ternura e delicadeza!

— Um sinal certo de que deve ser um demônio horroroso.

Psiquê pensou na nova vida que crescia dentro dela e na insistência de seu marido para que não contasse nada. E na sua recusa em se deixar ver. Ah, meu deus. Talvez suas irmãs tivessem razão.

Elas viram que Psiquê estava vacilando e voltaram ao ataque.

— Eis o que você vai fazer, querida. Quando ele se unir a você esta noite, você o deixa fazer o que quiser…

— Argh!

— E, então, espere até ele adormecer. Mas deverá continuar acordada.

— De toda maneira, fique acordada.

— Quando você tiver certeza de que ele está absoluta e profundamente adormecido, você deverá se levantar e pegar uma lâmpada.

— E aquela navalha que suas servas usam para cortar o seu cabelo.

— É, você vai precisar dela!

— Acenda a lanterna no canto do quarto e a cubra para que ele não acorde.

— Depois volte até a cama, pé ante pé…

— Erga a lanterna…

— E corte seu pescoço escamoso de dragão…

— Serre suas veias nodosas…

— Mate-o…

— Mate a besta…

— Depois, reúna todo o ouro e a prata…

— E as pedras preciosas, isso é o mais importante…

E as irmãs continuaram falando, e falando, até que Psiquê ficasse plenamente convencida.

E assim, naquela noite aconteceu que, com Eros dormindo pacificamente na cama, Psiquê se viu de pé ao lado dele, com uma lanterna coberta em uma mão e uma navalha na outra. Ela ergueu o pano que cobria a lanterna. A luz caiu sobre a forma enroscada, nua, do mais lindo ser que ela jamais contemplara. O brilho tépido dançava em uma pele lisa, jovem – e sobre o mais maravilhoso par de asas emplumadas.

Psiquê não conseguiu conter um frêmito de assombro. Ela soube imediatamente para quem estava olhando. Não era nenhum dragão ou monstro, nenhum ogro ou abominação. Era o jovem deus do amor. Era o próprio Eros. Pensar que ela podia ter sonhado em fazer mal a ele. Como era lindo. Seus lábios cheios, rosados, estavam ligeiramente entreabertos e o dulçor de seu hálito chegou até ela quando se inclinou para o olhar mais de perto. Tudo nele era tão perfeito! O suave subir e baixar dos músculos dava à sua beleza juvenil um aspecto masculino, mas sem aquela feiura inchada que ela tinha visto nos corpos dos atletas e guerreiros campeões de seu pai. Seu cabelo desfeito brilhava com uma luz cálida que ficava entre o ouro de Apolo e o mogno de Hermes. E aquelas asas! Dobradas sob seu corpo, tinham a plenitude e a brancura das asas de um cisne. Ela estendeu uma mão trêmula e correu o dedo ao longo da linha das penas. A reação foi um leve sussurro trêmulo que mal fizeram qualquer som, mas foi o suficiente para fazer com que Eros adormecido se mexesse e murmurasse.

Psiquê deu um passo atrás e cobriu a lanterna, mas dentro de poucos momentos uma respiração serena e rítmica a assegurou de que Eros ainda estava dormindo profundamente. Ela descobriu a lanterna outra vez e viu que ele agora estava de costas para ela. Viu também que o movimento dele tinha feito com que um objeto curioso ficasse à mostra. A luz da lâmpada caiu sobre um cilindro de prata que ficava entre suas asas. Sua aljava!

Mal ousando respirar, Psiquê se inclinou para a frente e puxou uma única flecha. Virando-a na mão, ela lentamente passou o dedo na haste de ébano brilhante. A ponta da flecha estava afixada por uma fita de ouro… Segurando a lanterna no alto em sua mão esquerda, ela passou o polegar direito ao longo da ponta e então – ai! A ponta era tão afiada que tirou sangue. Nesse momento, passou sobre ela um sentimento, um sentimento de amor tão intenso por Eros adormecido, tal calor, paixão e desejo, tal devoção completa e eterna, que ela não conseguiu se conter e se aproximou para beijar os cachos em sua nuca.

Ai, tristeza! Ao fazer isso, um pingo de óleo quente da lanterna caiu sobre o ombro direito dele. Ele acordou com um grito de dor que, quando viu Psiquê de pé sobre ele, cresceu e se tornou um grande rugido de decepção e desespero. Suas asas se abriram e começaram a bater no ar. Enquanto ele se levantava, Psiquê se jogou para a frente e se agarrou à sua perna direita, mas a força dele era grande demais e ele a sacudiu para longe, sem uma palavra, e voou para a noite.

No momento em que ele saiu, tudo desmoronou. As paredes do palácio se romperam, desbotaram e dissolveram no ar da noite. Psiquê, desesperada, viu as colunas de ouro ao seu redor se fragmentarem em uma escura colunata de árvores e os ladrilhos de mosaico de pedras preciosas sob seus pés se misturarem numa confusão de lama e cascalho. Não demorou para que o palácio, os metais preciosos, as pedras preciosas – tudo – desaparecesse. O doce canto das servas se transformou no uivar de lobos e no grito das corujas, e os perfumes cálidos e misteriosos viraram açoites de ventos frios e impiedosos.

Sozinha

Uma garota assustada e infeliz se encontrava numa floresta fria e deserta. Ela escorregou pelo tronco de uma árvore até se sentar sobre as raízes duras. A única coisa em que conseguia pensar era em dar fim à própria vida.

Foi acordada com um besouro que passava sobre seus lábios. Sentou-se com um estremecimento e tirou uma folha molhada que estava grudada na testa. Os horrores da noite anterior não tinham sido um sonho. Ela estava realmente sozinha numa floresta. Talvez tudo o que tinha acontecido antes fosse um sonho, e esta foi sempre a realidade? Ou será que ela tinha acordado dentro de outro episódio de um sonho mais amplo? Dificilmente valia a pena se dar o trabalho de tentar decifrar tudo. Sonho ou realidade, estava tudo intolerável para ela.

— Não faça isso, menina bonita.

Chocada, Psiquê elevou os olhos e viu o deus Pan de pé à sua frente. A carranca engraçada, o cabelo grosso e enrolado do qual saíam dois chifres, as largas ancas peludas que terminavam em pés de cabra – não podia ser outro personagem, mortal ou imortal.

— Não, não — disse Pan, sapateando com os cascos no solo lamacento. — Posso ler na sua cara, e não vai acontecer. Não permitirei.

— Não permitirá o quê? — desafiou Psiquê.

— Não permitirei que você se jogue de um penhasco alto sobre as rochas. Não permitirei que você atraia as atenções mortais de um animal selvagem. Não permitirei que você colha beladona e beba seus sucos venenosos. Não permitirei nada disso.

— Mas não posso viver! — gritou Psiquê. — Se você soubesse a minha história, entenderia e me ajudaria a morrer.

— Você tem de perguntar a si mesma o que a trouxe aqui — disse Pan. — Se foi amor, tem de rezar para Afrodite e Eros pedindo orientação e alívio. Se foi sua própria maldade o que causou a sua queda, então, tem de viver para se arrepender. Se foi provocado por outros, tem de viver para se vingar.

Vingança! Psiquê de repente entendeu o que precisava ser feito. Levantou-se.

— Obrigada, Pan — agradeceu ela. — Você me mostrou o caminho.

Pan mostrou os dentes num sorriso e fez uma mesura. Seus lábios sopraram um floreado de despedida no conjunto de flautas em sua mão.

Quatro dias mais tarde, Psiquê bateu aos portões da grande mansão de seu cunhado, Sato, marido de Calante. Um empregado a acompanhou até a sala de visitas de sua irmã.

— Psiquê! Querida! Funcionou tudo como planejado? Você parece um pouco…

— Não se importe comigo, querida irmã. Vou contar o que aconteceu. Segui suas instruções à risca, acendi a lâmpada sobre a forma adormecida do meu marido e quem seria ele, senão o grande deus Eros. O próprio Eros!

— Eros! — Calante apertou seu colar de âmbar.

— Oh, irmã, imagine minha decepção e como ele partiu meu coração quando me contou que só tinha me levado para seu palácio como um meio de conseguir você.

— Eu?

— Esse era o plano malévolo. “Traga-me sua linda irmã Calante”, ele me disse. “Aquela dos olhos verdes e do cabelo ruivo.”

— Mais acaju do que ruivo.

— “Traga-me. Diga a ela para ir até a rocha alta e lançar-se sobre Zéfiro, que a apanhará e a trará para mim. Diga tudo isso à linda Calante, Psiquê, eu imploro.” Essa foi a mensagem dele, que fielmente reproduzi.

Pode-se imaginar a pressa com que Calante se preparou. Rabiscou uma mensagem para o marido explicando que eles não eram mais marido e mulher, afinal de contas, que o casamento deles tinha sido um erro calamitoso, que o oficiante que os casou o fizera bêbado, incapaz e sem qualificações, que ela nunca o amara, de qualquer modo, e que agora era uma mulher livre, e pronto.

Em cima da rocha alta de basalto, ela ouviu o sussurrar de uma brisa e, com um gemido de alegria e êxtase, lançou-se para o que achou ser Zéfiro.

Mas o espírito do Vento do Oeste não estava nem por perto. Com um grito de frustração, raiva, decepção e medo, Calante despencou morro abaixo, quicando de rocha afiada em rocha afiada até que seu corpo inteiro tivesse se virado do avesso, e ela aterrissou no fundo, morta como uma pedra.

Destino igual teve Zona, sua irmã, a quem Psiquê contou a mesma história.

As tarefas de Afrodite

Terminada a vingança, Psiquê tinha o resto da vida para pensar. Cada momento era preenchido com o amor e a saudade que ela sentia de Eros e com as pontadas de sofrimento, sabendo que ela estava fadada a jamais tornar a vê-lo.

Eros, enquanto isso, jazia numa câmara secreta, atormentado pela agonia da ferida no ombro. Você e eu conseguiríamos suportar com facilidade a chateação de uma queimadura de óleo de lâmpada, mas, embora Eros fosse imortal, aquele era um machucado infligido pela pessoa que ele amava. Essas feridas demoram muito para sarar, se é que saram.

A indisposição de Eros fez com que o mundo começasse a sofrer. Jovens e donzelas pararam de se apaixonar. Não havia casamentos. As pessoas começaram a murmurar e resmungar. Orações infelizes começaram a ser feitas para Afrodite. Quando ela as ouviu e soube que Eros estava escondido e negligenciando seus deveres, ficou aborrecida. A notícia de que uma garota mortal tinha roubado o coração de seu filho e feito tanto mal a ele transformou seu aborrecimento em raiva. Mas, quando ela descobriu que era a mesma garota mortal que ela certa vez tinha mandado que Eros humilhasse, ficou lívida. Como é que o plano de fazer Psiquê se apaixonar por um porco tinha saído tão terrivelmente pela culatra? Bem, desta vez, ela iria pessoalmente e de garantir forma conclusiva a queda da garota.

Por conta de encantamentos que ela não sabia que estavam sendo feitos, Psiquê viu-se um dia batendo à porta de um grande palácio. Criaturas terríveis a puxaram para dentro pelos cabelos e a jogaram numa masmorra. A própria Afrodite a visitou, levando sacos de trigo, cevada, milheto, sementes de papoula, grão-de-bico, lentilhas e feijão, que esvaziou na pedra e misturou.

— Se você quiser sua liberdade — disse —, separe todos os grãos e sementes diferentes e os arrume cada um em sua pilha. Termine essa tarefa antes do próximo nascer do sol e eu a libertarei.

Com uma risada que – nada adequada para uma deusa do amor e da beleza – estava entre um cacarejo e um guincho, Afrodite foi embora batendo a porta da cela às suas costas.

Psiquê caiu no chão soluçando. Seria impossível separar aquelas sementes, mesmo que ela tivesse um mês para fazê-lo.

Nesse exato momento, uma formiga, trafegando pelas pedras do chão, foi engolfada por uma lágrima quente e salgada, caída da face de Psiquê.

— Cuidado! — gritou ela, zangada. — Para você, pode ser uma pequena lágrima, mas para mim é um dilúvio.

— Mil desculpas — disse Psiquê. — Temo não a ter visto. Meu sofrimento tomou conta de mim.

— Que sofrimento pode ser tão grande que faz com que você saia por aí afogando formigas honestas?

Psiquê explicou sua situação e a formiga, que tinha uma natureza prestativa e generosa, se ofereceu para ajudar. Com um chamado inaudível para o ouvido humano, ela convocou sua grande família de irmãos e irmãs e, juntos, começaram a separar as sementes.

Com as lágrimas secando nas faces, Psiquê observou assombrada dezenas de milhares de alegres formigas correndo apressadas para lá e para cá, peneirando e separando as sementes com precisão militar. Bem antes dos dedos rosados de Eos terem aberto os portões da aurora, o serviço estava feito e sete pilhas arrumadas, perfeitas, aguardavam a inspeção de Afrodite.

A fúria frustrada da deusa foi algo digno de nota. Outra tarefa impossível foi imediatamente planejada.

— Você está vendo aquele bosque lá adiante, no outro lado do rio? — disse Afrodite puxando Psiquê pelo cabelo e obrigando-a a olhar pela janela. — Há carneiros pastando e perambulando desprotegidos. Carneiros especiais, com lã de ouro. Vá até lá imediatamente e me traga de volta um tufo da lã deles.

Psiquê partiu para o bosque com boa vontade, mas sem a menor intenção de obedecer a essa última ordem. Ela resolveu usar sua liberdade para fugir, não apenas da prisão da odiosa maldição de Afrodite mas da prisão da própria vida odiosa. Mergulharia no rio e se afogaria.

Só que, enquanto ela estava à beira do rio, respirando fundo e reunindo coragem para mergulhar, um dos juncos se sacudiu – embora não estivesse soprando brisa nenhuma – e sussurrou para ela.

— Psiquê, minha doce Psiquê. Atormentada por grandes desafios como você está, não polua minhas águas limpas com sua morte. Há um jeito de evitar seus problemas. Aqueles carneiros são selvagens e violentos, guardados pelo macho mais feroz, cujos chifres podem rasgá-la como uma fruta madura. Você os está vendo pastar ali, sob aquela figueira na margem de lá? Aproximar-se deles agora significa uma morte rápida e dolorosa. Mas se você se deitar para dormir, à tarde, eles terão ido para outras pastagens e você poderá nadar até a árvore e encontrará maçarocas de lã dourada presas aos galhos mais baixos.

Naquela noite, a confusa e enraivecida Afrodite jogou de lado a lã dourada e insistiu para que Psiquê descesse ao mundo inferior para pedir uma amostra de um creme de beleza à Perséfone. Como ela pouco pensava em outra coisa que não na morte desde que Eros a deixara, a pobre menina consentiu de boa vontade e seguiu as orientações de Afrodite até o Hades, onde tinha a plena intenção de ficar e suportar uma eternidade miserável, solitária e sem amor.

A união do amor e da alma

Certo dia, uma andorinha faladeira relatou a Eros as tarefas atribuídas a Psiquê por sua mãe ciumenta e sem limites. Tentando ignorar a dor ainda agonizante de sua ferida, ele se levantou e, com um esforço enorme, abriu as asas. Voou direto para o Olimpo, onde exigiu uma audiência imediata com Zeus.

Eros contou a história dele para uma plateia enlevada de olímpicos fascinados. A mãe dele sempre detestara Psiquê. A dignidade e a honra de Afrodite como olímpica tinham sido ameaçadas pela beleza da menina e pela disposição de um punhado de humanos idiotas para venerar uma donzela mortal em vez de uma deusa imortal. Aí, ela enviara Eros para fazer com que Psiquê se apaixonasse por um porco. Ele apresentou bem o caso.

Zeus mandou Hermes até o mundo inferior para buscar Psiquê e uma águia para chamar Afrodite. Quando as duas estavam presentes à frente da companhia celeste, Zeus falou.

— Essa confusão foi extraordinária e indigna. Afrodite, amada. Sua posição não está ameaçada; jamais poderá estar. Olhe para baixo, para a terra, e veja como seu nome é santificado e louvado em toda parte. Eros, você tem sido durante muito tempo um menino bobo, impudente e irresponsável. O fato de você amar e ser amado fará com que você cresça, e poderá salvar o mundo dos piores excessos de suas flechas travessas e mal direcionadas. Psiquê, venha e beba da minha taça. Isto é ambrosia e, agora que a provou, você é imortal. Aqui, com todos testemunhando, você estará para sempre unida a Eros. Abrace sua nora, Afrodite, e vamos todos festejar.

Tudo foi riso e prazer no casamento de Eros com Psiquê. Apolo cantou e tocou sua lira, Pan se juntou com sua flauta. Hera dançou com Zeus, Afrodite dançou com Ares e Eros dançou com Psiquê. E estão dançando juntos até hoje.