Vimos deuses transformarem homens e mulheres em animais por pena, punição ou ciúme. Mas, assim como eles podiam ser tão orgulhosos e mesquinhos quanto os humanos, podiam ser igualmente motivados pelo desejo. A carne mortal, como já vimos, era tão apetitosa para eles quanto a imortal. Algumas vezes, seus impulsos eram pouco mais do que luxúria primitiva, mas eles também podiam se apaixonar genuinamente. Há muitas histórias de deuses perseguindo e transformando os moços e as moças mais adoráveis em animais, novas plantas e flores, e até rochas e cursos de água.
Niso e Cila
NISO era um rei de Megara, uma cidade no litoral da Ática. A invencibilidade dele tinha sido concedida sob a forma de um único cacho de cabelo roxo, que o mantinha imune a qualquer dano humano. Por algum motivo, seu reino foi atacado pelas forças do rei Mino, de Creta. Um dia, a filha de Niso, a princesa CILA, avistou Mino a bordo de um de seus navios de guerra, quando ele passava perto dos muros de Megara, e se apaixonou. Ficou tão enlouquecida de desejo que resolveu roubar o cacho roxo de seu pai e dá-lo para Mino, em seu navio; em compensação, ele compensaria a generosidade dela com amor. Só que, sem a mecha, Niso ficou tão vulnerável quanto qualquer mortal. E, enquanto ela secretamente ia até Mino, o pai dela foi morto numa revolta no palácio.
Mino, longe de apreciar o ato de deslealdade de Cila com seu próprio pai, ficou tão aborrecido que não quis nada com ela. Chutou-a para fora do navio, levantou velas e foi embora de Megara para nunca mais voltar.
A paixão era tão avassaladora que, mesmo assim, Cila não conseguia desistir do homem que amava. Ela nadou atrás de Mino, chamando-o pateticamente. Miou e gritou tão lamentosamente atrás dele que foi transformada numa gaivota. O humor dos deuses era de tal ordem que, ao mesmo tempo, o pai dela, Niso, foi transformado numa águia marinha.
Desde então, por vingança, ele é incansável em atormentar a filha através dos oceanos.
Calisto
Antes de ser transformado num lobo – como você pode lembrar – durante os primeiros dias da humanidade pelasgiana, o rei Licaão da Arcádia tinha uma filha linda, chamada CALISTO. Ela foi criada como uma ninfa dedicada à caçadora virgem Ártemis.
Há muito, Zeus espumava de desejo por essa garota linda, inatingível, e a enganou um dia, transformando-se na própria imagem de Ártemis. Ela prontamente caiu nos braços da grande deusa que seguia, só para se ver violada por Zeus.
Algum tempo mais tarde, banhando-se nua no rio, ela foi vista por Ártemis, que, enraivecida pelo estado de gravidez de sua seguidora, expulsou a pobre Calisto de seu círculo. Sozinha e infeliz, ela perambulou pelo mundo, antes de dar à luz um filho, ARCAS. Hera, que nunca demonstrou piedade nem pela menos astuta e mais inocente das amantes de seu marido, puniu Calisto transformando-a numa ursa.
Alguns anos mais tarde, Arcas, agora um rapaz, estava caçando na floresta quando encontrou uma grande ursa. Estava prestes a atirar sua lança sobre ela, quando Zeus interveio para evitar um matricídio inadvertido, e os elevou aos céus como as constelações de Ursa Maior e Ursa Menor. Hera, ainda zangada, amaldiçoou essas constelações de modo que elas jamais compartilhassem as mesmas águas, o que (disseram-me) explica suas posições circumpolares permanentemente opostas.
Procne e Filomela
O rei PANDIÃO de Atenas tinha duas lindas filhas, PROCNE e FILOMELA. Procne, a mais velha, deixou Atenas para se casar com o rei TEREU da Trácia, com quem teve um filho, ICTYS.
Certo ano, sua irmã mais nova, Filomela, veio passar o verão inteiro com a família na Trácia. O coração tenebroso de Tereu, um dos mais tenebrosos que já bateram, ficou ferozmente perturbado pela beleza de sua jovem cunhada e, uma noite, ele a arrastou até seus aposentos e a estuprou. Com medo de que sua mulher e o mundo pudessem descobrir o crime odioso, Tereu arrancou a língua de Filomela. Sabendo que ela não sabia ler e escrever, sentiu-se seguro de que ela jamais conseguiria comunicar a nenhuma pessoa a verdade abominável do que havia ocorrido.
Mas, ao longo da semana seguinte, Filomela teceu uma tapeçaria na qual descreveu para sua irmã Procne todos os detalhes de sua violação. As irmãs, lesadas e enraivecidas, planejaram uma vingança que se equipararia com o mal monstruoso do crime. Sabiam como ferir Tereu mais profundamente. Ele era um homem violento e repulsivo, dado a raivas desenfreadas e depravações indizíveis, mas tinha um ponto fraco – o profundo amor por seu filho Ictys. Procne e Filomela conheciam bem esse afeto ilimitado. Ictys era também filho de Procne, mas qualquer amor maternal que ela tivesse alguma vez sentido tinha sido completamente dominado pelo ódio e por um insaciável desejo de vingança. Depois de deixar toda piedade de lado, as irmãs foram até o quarto do menino e o assassinaram enquanto dormia.
— Filomela voltará para Atenas logo — Procne disse ao marido na manhã seguinte. — Por que hoje à noite não damos um banquete de despedida a ela, como agradecimento pela gentil hospitalidade que você ofereceu?
Filomela murmurou e acenou vigorosamente com a cabeça.
— Ela também parece achar que é uma boa ideia.
Tereu grunhiu seu consentimento.
Na festa daquela noite, foi servido um suculento ensopado, que o rei consumiu gulosamente. Embebeu todos os molhos em pedaços de pão, mas achou que ainda tinha espaço para mais. A pouca distância da mão, havia uma travessa coberta com uma cúpula de prata.
— O que tem aí embaixo?
Filomela empurrou a travessa em sua direção com um sorriso. Tereu ergueu a tampa e deu um grito de horror ao ver a cabeça do filho morto rindo para ele. As irmãs deram gritos de júbilo. Quando percebeu o que tinha sido feito a ele e compreendeu por que o ensopado estava tão deliciosamente tenro, Tereu deu um grande rugido e agarrou uma lança da parede. As duas mulheres correram da sala e gritaram aos deuses pedindo ajuda. Enquanto o rei Tereu as perseguia fora do palácio e pela rua, ele se sentiu repentinamente subindo no ar. Estava sendo transformado em uma poupa, e seus brados de dor e de fúria começaram a soar como gritos desesperados. Ao mesmo tempo, Procne foi transformada numa andorinha e Filomela, num rouxinol.
Embora os rouxinóis sejam conhecidos pela melodiosa beleza de seu canto, só o macho da espécie é que canta. As fêmeas, como Filomela sem língua, permanecem mudas. Até hoje, muitas espécies de andorinhas trazem o nome de Procne e a poupa ainda usa uma coroa real.
Ganímedes e a águia
No canto noroeste da Ásia Menor, havia um reino chamado Trôade ou Troia, em homenagem a seu governante, o rei Tros. Troia ficava do outro lado do mar Egeu, a oeste da Grécia continental; atrás dela, ficavam todo o resto do que é agora a Turquia e as terras antigas a leste. Ao norte, estavam os Dardanelos e Galípoli e, ao sul, a grande ilha de Lesbos. A cidade principal, Illium (que viria a ser conhecida simplesmente como cidade de Troia), derivava seu nome de ILOS, o filho mais velho de Tros, e de sua rainha, CALÍRROE, filha do deus-rio local, ESCAMANDRO. Pouco se falou do segundo filho, ASSÁRRACO, pois era o terceiro filho que atraía o olhar e tirava o fôlego de todos os que o avistavam.
Nenhum jovem mais lindo do que esse príncipe, GANÍMEDES, jamais viveu ou se movimentou sobre a terra. O cabelo dele era dourado; a pele, como mel cálido; seus lábios, um suave e doce convite para se perder em beijos loucos e mágicos.
Sabia-se que meninas e mulheres de todas as idades gritavam e até desmaiavam quando ele olhava para elas. Homens que nunca na vida tinham cogitado a atração por seu próprio sexo descobriam seus corações martelando, o sangue subindo e pulsando em seus ouvidos quando o viam. A boca ficava seca e eles se viam gaguejando bobagens e dizendo qualquer coisa para tentar agradar ou atrair sua atenção. Quando chegavam em casa, escreviam e imediatamente rasgavam poemas que rimavam olhar com amar, lábios com sábios, juventude com atitude, felicidade com saudade e desejo com beijo.
Ao contrário de muitos nascidos com o terrível privilégio da beleza, Ganímedes não era amuado, petulante ou mimado. Seus modos eram encantadores e nada afetados. Quando sorria, seu sorriso era bondoso e seus olhos cor de âmbar se acendiam num calor amistoso. Quem o conhecia bem dizia que sua beleza interior se equiparava com, ou até mesmo excedia, a exterior.
Se ele não fosse um príncipe, é provável que tivessem feito mais espalhafato por causa de sua aparência espantosa, e a vida dele teria sido impossível. Mas, como era o filho preferido de um grande governante, ninguém ousava seduzi-lo, e ele vivia uma comportada vida de cavalos, música, esportes e amigos. Supostamente, um dia, o rei Tros o casaria com uma princesa grega e ele se tornaria um homem belo e viril. A adolescência, afinal de contas, era uma coisa passageira.
Não contaram com o Rei dos Deuses. Se Zeus tinha ouvido falar desse resplandecente farol de beleza juvenil, ou se acidentalmente o avistou, não se sabe. O certo é que o deus ficou simplesmente enlouquecido de desejo. Apesar da linhagem régia do importante mortal, apesar do escândalo que causaria, apesar da fúria e do ciúme certos de Hera, Zeus se transformou numa águia, voou para baixo, pegou o menino em suas garras e voou com ele para o Olimpo.
Foi uma coisa terrível de se fazer, mas, para surpresa geral, acabou sendo mais do que apenas um ato de luxúria devassa. Pelo jeito, realmente tinha algo a ver com amor de verdade. Zeus adorava o garoto e queria estar sempre ao seu lado. Os atos de amor físico entre os dois só reforçavam sua adoração. Zeus deu a ele o dom da imortalidade e a eterna juventude, e o nomeou seu copeiro. Desde então, até o fim dos tempos, ele seria sempre Ganímedes, cuja beleza de formas e de alma tinha feito o deus se apaixonar. Todos os demais deuses, com a exceção inevitável de Hera, receberam bem o rapaz no céu. Era impossível não gostar dele: sua presença iluminou o Olimpo.
Zeus despachou Hermes com um presente de cavalos divinos para o rei Tros, a fim de compensar a família pela perda.
— Seu filho é um acréscimo bem-vindo e amado no Olimpo — Hermes disse a ele. — Ele jamais morrerá e, ao contrário de qualquer mortal, sua beleza exterior se equiparará sempre com sua beleza interior, o que quer dizer que ele estará eternamente satisfeito. O Pai Céu o ama completamente.
Bem, o rei e a rainha de Troia tinham mais dois filhos, e os cavalos eram mesmo os melhores do mundo, sem precisar olhar os dentes, e se o Ganímedes deles ia ser um membro permanente da companhia de Olímpicos imortais e Zeus realmente o amava…
Mas será que o garoto amava Zeus? É difícil saber. Os antigos acreditavam que sim. Ele costuma ser representado sorrindo e feliz. Tornou-se um símbolo daquele tipo particular de amor entre pessoas do mesmo sexo que viria a se tornar uma parte tão central na vida grega. Parece que seu nome era uma espécie de trocadilho deliberado, derivando de ganumai, “alegrando”, e medon, “príncipe” e/ou medeon, “genitália”. “Ganímedes”, o príncipe alegre com a genitália que traz alegria, com o tempo, se alterou para a palavra “catamito”.
Zeus e Ganímedes ficaram juntos como um casal feliz durante muito tempo. É claro que o deus era tão infiel a ele quanto à sua própria mulher, mas eles mesmo assim se tornaram amantes quase permanentes.
Quando o reino dos deuses estava chegando ao fim, Zeus recompensou esse lindo adolescente, seu dedicado subordinado, amante e amigo, enviando-o como uma constelação para a parte mais importante dos céus, o Zodíaco, onde ele ainda brilha como Aquário, o Copeiro.
Amantes do luar
Uma palavra a respeito de duas irmãs imortais. Já conhecemos, de passagem, Eos, ou AURORA, como os romanos a chamavam, e sabemos que sua tarefa era começar cada dia abrindo os portões que deixavam, primeiro, o deus Apolo, depois, o irmão dele, Hélio, passar com sua carruagem. Uma irmã deles, Selene (LUNA, para os romanos), dirigia pelo céu da noite o equivalente noturno, a carruagem da lua. Com Selene, Zeus teve duas filhas, PANDIA (que os atenienses celebravam a cada lua cheia) e ERSA (algumas vezes, HERSE), a personificação divina do orvalho.
Eos, irmã de Selene, se apaixonou algumas vezes. Um adolescente lindo e heroico chamado CÉFALO atraiu seus olhares e ela o raptou. Nem pensou no fato de que ele já estava comprometido – casado, aliás, com PRÓCRIS, filha de Erecteu, primeiro rei de Atenas (produto do sêmen derramado de Hefesto) e sua rainha, PRAXITEIA. Apesar da beleza radiante de Eos e do luxuoso Palácio do Sol em que o instalou, Céfalo, raptado, se viu morrendo de saudades de sua esposa Prócris. Não importava quais artes do amor a deusa da aurora empregasse, não conseguia excitá-lo. Decepcionada e humilhada, ela concordou em devolvê-lo à mulher. Só que o ciúme e o amor-próprio ferido estavam o tempo todo fervendo dentro dela. Como ousava ele preferir uma humana a uma deusa? A ideia de que uma mulher comum pudesse estimular Céfalo, enquanto seu ser divino o deixava frio…
Com uma displicência maldosa, ela começou a plantar dúvidas na cabeça dele.
— Ééé… — suspirou ela, sacudindo tristemente a cabeça, quando se aproximaram da casa dele. — Fico triste de imaginar como é que a oh-tão-pura Prócris andou se comportando na sua ausência.
— O que você está querendo dizer?
— Ah, o número de homens que ela andou acolhendo. Nem dá para pensar.
— Como você a conhece pouco! — respondeu Céfalo, acaloradamente. — Ela é tão fiel quanto adorável.
— Rá! — disse Eos. — É só ter mel e dinheiro.
— Como assim?
— Palavras doces e moedas de prata levam as mais virtuosas à traição.
— Como você é cínica.
— Eu me levanto sobre o mundo com a primeira luz e vejo o que as pessoas fazem no escuro. Não é cinismo, é realismo.
— Mas você não conhece Prócris — insistiu Céfalo. — Ela não é como as outras pessoas. É fiel e leal.
— Pff! Ela pularia para a cama de qualquer um assim que você virasse as costas. Eu diria… — Eos parou, como se uma ideia lhe tivesse de repente vindo à cabeça. — E se você a fosse conhecer disfarçado? Mostre-se disposto, inunde-a de elogios, diga que a ama, ofereça alguns presentinhos… Aposto que ela vai cair por você.
— Nunca!
— Como quiser, mas… — Eos deu de ombros e apontou para a margem ao longo da qual estavam caminhando. — Ah, olhe, há um monte de roupas e um elmo. Imagine se você também tivesse uma barba…
Eos desapareceu e, naquele exato momento, Céfalo descobriu que estava realmente barbado. A muda de roupa que aparecera inexplicavelmente à beira da estrada parecia chamá-lo.
Apesar de seus protestos em contrário, as palavras de Eos tinham plantado nele uma semente de dúvida. Ao vestir aquela fantasia absurda, Céfalo se convenceu de que não estava cedendo à dúvida, mas se preparando para mostrar a Eos como seu cinismo estava mal colocado. Ele e Prócris a chamariam naquela mesma alvorada, enquanto o céu ficava cor-de-rosa, dizendo:
“Como você estava errada, deusa da madrugada!”, exclamariam. “Como conhece pouco o coração de um mortal apaixonado.” Coisas desse tipo. Ela ia ver.
Logo depois, Prócris abriu a porta para um belo estranho barbado, com elmo e túnica. A aparência dela era um tanto fatigada e cansada. O desaparecimento súbito e inexplicável de seu marido não tinha sido nada fácil. Antes de ela ter tempo de perguntar o que o visitante queria, no entanto, Céfalo meteu o ombro na porta e dispensou os empregados.
— Você é uma mulher muito linda — disse ele, num forte sotaque da Trácia.
Prócris enrubesceu.
— Senhor, tenho de…
— Venha, vamos nos sentar neste sofá.
— Realmente, não posso…
— Vamos lá, ninguém está olhando.
Prócris sabia que isso ultrapassava os limites da xênia mais do que o necessário, mas consentiu. O homem era muito invasivo.
— O que uma beldade como você está fazendo sozinha em uma casa tão grande? — Céfalo apanhou um figo numa tigela de cobre, deu uma dentada lasciva e balançou a metade suculenta que restou na frente de Prócris.
— Senhor!
Quando ela abriu a boca para protestar, Céfalo empurrou o figo para dentro.
— Uma visão para inflamar os próprios deuses — disse ele. — Seja minha!
— Sou casada! — Ela tentou dizer através das sementes e polpa.
— Casamento? O que é isso? Sou um homem rico e darei a você todas as joias e todos os ornamentos que pedir, se você ceder. Você é tão linda! E eu a amo.
Prócris fez uma pausa. Pode ter sido porque ela estava tentando engolir o resto do figo. Pode ser que ela tivesse ficado tentada pela oferta de coisas preciosas. Talvez estivesse emocionada com a repentina e intensa declaração de amor. A pausa foi longa o suficiente para fazer com que Céfalo se levantasse furioso, jogasse fora seu disfarce e se revelasse.
— Então! — trovejou ele. — É isso o que acontece quando você fica sozinha! Mulher desonrada e traiçoeira!
Prócris arregalou os olhos, sem acreditar.
— Céfalo? É você?
— Sim! Sim, é seu pobre marido! É assim que você se comporta quando não estou aqui. Vá embora! Saia das minhas vistas, infiel Prócris. Fora!
Ele avançou sacudindo o punho, e Prócris, aterrada, fugiu. Fora de casa, ela correu, correu para a floresta, sem parar até cair de exaustão na beira de um bosque dedicado a Ártemis.
A deusa descobriu Prócris deitada ali na manhã seguinte e extraiu dela a história do que havia acontecido.
Durante um ano e um dia, Prócris acompanhou a caçadora divina e sua comitiva de donzelas ferozes, mas, por fim, já não aguentava mais.
— Ártemis, você cuidou de mim, me ensinou as artes da caça e me mostrou como os homens devem sempre ser afastados. Mas não posso mentir: em meu coração, amo meu marido, Céfalo, como sempre amei. Ele errou comigo, mas o que ele fez de errado foi provocado por seu grande amor por mim, e anseio por perdoá-lo e me deitar em seus braços, mais uma vez sua mulher.
Ártemis ficou com pena de vê-la partir, mas estava num humor caridoso. Não apenas deixou Prócris voltar para o marido sem primeiro arrancar os olhos dela ou lançá-la aos porcos (ações nada estranhas a ela) como deu a ela dois presentes notáveis para apresentar a Céfalo, como oferenda de paz.
Laelaps e Alopex Teumesios
Um dos presentes que Prócris recebeu foi um cachorro notável, chamado LAELAPS, que tinha o poder de pegar qualquer coisa, absolutamente qualquer coisa que perseguisse. Fosse para caçar um veado, um javali, um leão ou até mesmo um ser humano, jamais deixava de derrubar sua presa. O segundo presente, de igual valor, era uma lança que sempre acertava o alvo. Quem possuísse as duas coisas poderia, com todo o direito, se chamar de maior caçador humano no mundo. Não espanta que Céfalo tenha ficado contente em receber sua mulher, carregada com esses presentes, de volta ao lar e à casa, ao seio e à cama.
A fama de Céfalo cresceu e cresceu – histórias de sua perícia como caçador eram sussurradas em admiração de reino a reino. As notícias chegaram aos ouvidos do regente tebano, CREONTE. Como tão frequentemente nesta história incivilizada, Tebas nessa época estava sendo assolada por um flagelo, desta vez uma raposa feroz, chamada localmente de Raposa Cadmeana e temida pelo mundo grego como ALOPEX TEUMESIOS, a Raposa Teumessiana, uma predadora cujo dom especial era, por ordem divina, nunca ser apanhada, não importando quantos cães, cavalos ou homens estivessem em seu encalço ou em posição de prendê-la. Achava-se que esse terror vulpino tinha sido solto por Dioniso, ainda com sede de vingança da cidade que o tinha rejeitado e zombado de sua mãe Sêmele.
Creonte, cada vez mais desesperado, tendo ouvido falar dos dons quase sobrenaturais de Céfalo e seu cachorro-maravilha, Laelaps, mandou um recado para Atena, implorando por tê-lo emprestado. Céfalo tinha o maior prazer em emprestar o cão maravilhoso, que foi logo posto no rastro da raposa.
O desastre que se seguiu revela uma maravilhosa qualidade da mente grega: a fascinação pelo paradoxo. O que acontece quando uma raposa inalcançável é posta contra um cão inescapável? É parecido com o problema da força irresistível que encontra um objeto irremovível.
A Raposa Cadmeana corria em círculos enquanto, rente em seus calcanhares, voava Laelaps, do qual presa nenhuma conseguia escapar. Eles ainda estariam presos nesse circuito lógico, imagino, se Zeus não tivesse feito algo a respeito.
O Rei dos Deuses olhou para a cena abaixo e ponderou o estranho problema autocontraditório, que apresentava uma afronta a qualquer raciocínio e sentido adequados, e que irritantemente subvertia as ideias incorporadas na esplêndida palavra grega nous. A autoridade de Zeus estava subscrita por uma lei maior que dizia que deus nenhum tinha o poder de desfazer os encantamentos divinos de outro. Isso significava que o cachorro e a raposa estavam fadados a ficar presos naquela condição impossível para sempre, zombando publicamente da ordem das coisas. Zeus resolveu o enigma transformando a raposa e o cão em pedra. Desse modo, ficariam congelados no tempo, suas possibilidades perfeitas inalcançadas pela eternidade, seus destinos para sempre irreconciliados. Com o tempo, até mesmo esse estado imobilizado lhe pareceu desafiar o bom senso, de modo que ele os catasterizou – mandou-os para o céu, onde se tornaram as constelações do Cão Maior e do Cão Menor, Canis Major e Canis Minor.
Céfalo e Prócris, lamento dizer, não foram muito longe. Sem Laelaps, mas ainda armado com a lança encantada que não podia errar o alvo, o que Céfalo mais gostava de fazer era perambular pelos morros e vales que cercavam Atenas, apanhando qualquer presa que aparecesse. Em uma tarde muito quente, depois de três horas perseguindo presas e lançando, cansado e ensopado de suor, ele se deitou para cochilar. O calor do dia, mesmo à sombra de seu grande carvalho preferido, o deixou incomodado.
— Venha, Zéfiro — ele chamou, preguiçosamente, o Vento do Oeste. — Deixe-me senti-lo na minha pele. Abrace-me, acalme-me, tranquilize-me, console-me, brinque em mim…
Para o maior azar, Prócris tinha ido até onde Céfalo estava, para surpreendê-lo com um prato de azeitonas e um pouco de vinho. Exatamente quando ela chegou perto, ouviu as últimas palavras do marido, “deixe-me senti-lo na minha pele. Abrace-me, acalme-me, tranquilize-me, console-me, brinque em mim…”. Depois de todo aquele estardalhaço de raiva possessiva, ele agora a estava traindo? Prócris não podia acreditar em seus ouvidos! O prato e o odre de vinho caíram de seus dedos sem forças e ela soltou um gritinho involuntário.
Céfalo sentou-se. O que era aquilo tropeçando na vegetação? Aquele fungado! Um porco, pelos céus! Ele apanhou sua lança e a jogou na direção dos arbustos dos quais tinha vindo o barulho. Ele nem precisava mirar com cuidado. A lança encantada faria todo o trabalho.
Fez. Prócris morreu em seus braços aflitos.
Uma história encantadoramente estranha e infeliz. Tudo aconteceu, temos de nos lembrar, simplesmente porque Eos resolveu raptar um apetitoso mortal.
Endimião
Céfalo não foi o único rapaz a atrair o olhar de uma dessas duas deusas. Uma noite, enquanto a irmã de Eos navegava sua carruagem de prata pela noite através da Ásia Menor ocidental, viu lá embaixo ENDIMIÃO, um jovem pastor de grande beleza, deitado, nu e no maior sono na encosta ao lado de uma caverna no monte Latmos. A visão daqueles adoráveis membros, todos prateados por seus raios de luz, e do atraente sorriso sedutor que brincava em seus lábios enquanto ele sonhava encheram tanto Selene de desejo que ela exclamou pedindo que Zeus, pai de Endimião, garantisse que ele jamais mudaria. Queria vê-lo exatamente naquela posição todas as noites. Zeus concedeu o desejo dela. Endimião permaneceu exatamente onde estava, preso em sono eterno. A cada lua nova, o único dia no mês lunar em que sua carruagem não podia ser vista, Selene descia e fazia amor com o menino adormecido. Essa prática conjugal pouco convencional não evitou que ela tivesse cinquenta filhas com ele. Vou deixar que você imagine os aspectos práticos físicos, as posturas e posições que permitiram isso.
Um relacionamento estranho, mas que funcionou e fez Selene feliz.
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