Íxion, Pai dos Centauros

Dois homens andam pelas ruas de uma cidade grega. De repente, um deles:

— Não acredito, veja só quem vai ali! Me alcança aquela pedra, vai. Uma pedra do tamanho de um punho assobia no ar e vai acertar em cheio

as costas de um homem imundo e esfarrapado.

— Por que fez isto? — exclama, atônito, o amigo.

— Ora, não sabe, então, quem é aquele cão?

— Nem imagino, desfigurado daquele jeito.

— É Íxion, ex-tirano dos lápitas, agora caído em desgraça.

— Nunca ouvi falar dele.

— Como não? Você deve ser, então, o único que não conhece a sua perfídia. Não há lugar onde ele ponha os pés do qual não seja cuspido e escorraçado.

— Mas qual foi o seu crime? — diz o que alcançara a pedra.

— Tudo começou quando o canalha resolveu casar-se com a pobre Clia, filha de Deioneu — respondeu o outro. — E só conseguiu isto porque prometeu ao pai da noiva uma verdadeira fortuna em presentes.

— Comprou a filha?

— Exato. Mas no final das contas não pagou uma moeda por ela.

— E o pai deixou a coisa assim?

— Não, foi cobrar a conta, naturalmente. Mas Íxion recusou-se a recebê-lo tantas vezes que o sogro retomou alguns cavalos que dera ao novo genro, em represália. Isto deixou Íxion possesso. Um dia mandou chamar o sogro, sob o pretexto de que iria lhe pagar o preço da pobre Clia, afinal.

— Não pagou, imagino.

— Muito pior! Após receber o sogro com toda a hipocrisia, levou-o até um local onde se abria a boca de um grande fosso repleto de carvões acesos e lançou o pobre velho lá para dentro, dizendo: “Aí está, velho, o seu preço”.

— Que horror!

— O pior é que a própria esposa, a doce Clia, já havia sido lançada ali, momentos antes.

Quando o velho caiu sobre as brasas, ainda pôde vislumbrar, em meio às dores atrozes, um esqueleto carbonizado. Queira Júpiter que antes de morrer não tenha reconhecido naqueles negros ossos os restos mortais da própria filha.

— Toma, desgraçado! — disse o que alcançara antes o pedregulho ao amigo, lançando ele próprio sobre o maltrapilho Íxion uma pedra duas vezes maior.

Íxion, com mais duas manchas roxas nas costas, ergueu-se do pó e recomeçou a fugir.

Andou aos tropeços por toda a cidade até cair diante das portas do templo de Júpiter. Ali, arrojado de bruços ao chão, clamou:

— Júpiter hospitaleiro! Perdoe meus crimes! Limpe minha alma de toda a infâmia, pois só as suas mãos poderosas podem fazê-lo!

O pai dos deuses, penalizado com a situação miserável daquele pobre homem que descera da altíssima condição de rei da Tessália a de um reles mendigo, apiedou-se, afinal, e elevou-o até os céus. Íxion, o vil mendigo, estava agora diante de Júpiter, soberano do mundo.

— Tome, coma deste alimento e beba desta bebida! — disse o deus, alcançando-lhe uma taça de prata e um recipiente dourado.

Íxion saboreou aquelas delícias e sentiu algo maravilhoso agitar-se em suas entranhas.

— Eis que agora também é imortal, pois todo aquele que come da ambrosia e bebe do néctar adquire o nosso divino dom — disse Júpiter, solenemente.

Nesse momento, Juno, a esposa de Júpiter, entrou no grande salão dos olímpicos.

“Nossa, é ela, a poderosa Juno!”, pensou Íxion, atordoado. “Nunca imaginei que fosse tão bela!”

Tem gente que sai de uma encrenca para entrar em outra. Íxion era desses.

Júpiter, entretanto, hábil nas artimanhas da conquista e da traição amorosa, sabia perfeitamente reconhecer quando o jogo virava contra si mesmo.

“Este sujeito… Não sei, não!”, pensou.

Resolveu, no entanto, dar uma chance a Íxion, para não parecer ingrato.

Mas o tempo passava, e Íxion sentia aumentar a cada instante a atração pela deusa. Um dia, não suportando mais, resolveu declarar a ela o seu amor — ou seu desejo insano, mas que fazia seu peito cruel agitar-se da mesma maneira que o peito dos apaixonados. Juno, ofendida, deu-lhe as costas e no mesmo dia foi queixar-se ao divino esposo.

— Vou pôr à prova este sujeito! — disse Júpiter à mulher.

No mesmo instante tomou uma nuvem e formou nela a imagem da esposa: rosto, seios, braços, pernas, pés, em tudo a nuvem era uma cópia exata de Juno.

Ao final do dia, quando a Noite lançara seu manto perolado sobre os últimos restos do crepúsculo, o simulacro de Juno rumou para os aposentos de Íxion. Ele estava repousando e pensando, é claro, na esposa de Júpiter. “Oh, Juno querida! Quando serás minha, afinal?”, pensava ele, febril.

Nesse instante a cópia da deusa surgiu pela porta. Vestia apenas um manto diáfano, que ela fez deslizar para o chão com um imperceptível movimento de seus ombros delicados. Pronto.

Ali estava Juno como verdadeiramente era — assim pensava o incrédulo Íxion -, inteiramente nua e à sua disposição!

— Mas, então… você também me quer? — balbuciou o ex-tirano.

O espectro, porém, nada disse, colando apenas seu corpo ao do apaixonado.

— Amemo-nos! — disse a visão, com seus lábios de algodão.

Para um crápula e um tirano, pode-se dizer que ele amou-a ardentemente. E ela, para um simples espectro, também não se saiu nada mal.

Júpiter, sabedor de tudo, deixou que aquele simulacro de traição prosseguisse ainda por diversas vezes, dando sempre uma nova chance ao ingrato para que se arrependesse, uma vez extinta a chama ardente do primeiro desejo. Não fora sempre assim com o próprio deus?

Mas por muitas vezes, ainda, repetiram-se os encontros. Íxion prometia a si mesmo que aquela seria sempre a última vez, mas quando ela ressurgia novamente, a cada noite, com a doce palavra “Amemo-nos!” nos lábios rubros e úmidos, e esfregava em seu corpo aquela pele extraordinariamente alva e macia, via ruir aos seus pés a resistência premeditada.

Destas uniões sucessivas formou-se uma série de seres horrendos, monstruosos e brutais como o pai, que a tradição batizou de “centauros”.

Ao ver o resultado funesto desses encontros, Júpiter finalmente resolveu dar um basta a tudo aquilo. Expulsou Íxion do seu palácio, dando-lhe ordens expressas para que nunca mais lhe aparecesse pela frente.

A coisa teria saído barata deste jeito, mas um canalha nunca se redime. Tão logo se viu de volta à Terra, começou a se vangloriar de sua conquista -mesmo que ilusória — aos amigos, dizendo a todo instante: “A esposa de Júpiter foi minha. É, sim senhores, a tive em meus braços, noite após noite”.

Júpiter, então, sabendo de mais essa torpeza, tomou de um de seus terríveis raios e lançou-o sobre Íxion, fulminando-o no mesmo instante. Depois chamou seu filho Mercúrio e disse:

— Vá até o Tártaro tenebroso e cumpra à risca estas instruções. Lá nas profundezas do inferno estava o pérfido Íxion.

— Mercúrio! — gemeu o tirano. — Vieste me levar de volta para o Olimpo? O jovem deus, sem dizer nada, agarrou-o e o amarrou numa roda cercada por serpentes de fogo. Depois, dando um impulso com a mão, dele se despediu:

— Assim são premiados os ingratos, que semeiam a desonra no céu. E desde aquele instante o pérfido Íxion, atado de pés e de mãos, gira sem nunca cessar naquela girândola infernal.


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