— Não aguento mais essa tagarela da Eco — segredou um dia a deusa dos bosques a uma das suas ninfas.
De fato, não era só Diana que não suportava mais o falatório da ninfa nenhuma das suas amigas podia mais vê-la pela frente sem fugir de sua língua incansável. Apesar de ser tão bela quanto a mais bela das ninfas, Eco tinha a mania incontrolável de falar pelos cotovelos.
— Por que não se cala de vez em quando? — diziam-lhe as amigas. — Homem algum suportará uma mulher que fale sem parar, mesmo sendo tão bela como você.
Mas Eco não se corrigia e prosseguia falando, até a exaustão. Um dia, porém, meteu-se com Juno, a esposa de Júpiter, e isto foi a sua ruína.
O deus dos deuses havia dado mais uma de suas escapadas, e Juno andava por perto, farejando o seu rastro. A própria Eco já gozara dos favores de Júpiter e prometera ocultar, a pedido do grande deus, os amores que ele agora mantinha com outra ninfa. A deusa dos bosques não queria saber de fofocas e por isso fazia vistas grossas ao namoro. Afinal, meter-se com o deus supremo podia trazer-lhe problemas funestos.
Certo dia, porém, Juno, tomada pela cólera, chegou quase a tempo de flagrar o esposo nos braços da tal ninfa. Eco, após alertar o casal, dissera a Júpiter:
— Deixem comigo, eu a distrairei enquanto vocês escapam.
E assim fez, realmente. Tão logo Juno chegou, Eco apoderou-se dela com uma longa conversa, repleta de digressões e subterfúgios. Mas Juno, acostumada as desculpas esfarrapadas do marido, compreendeu logo a intenção da ninfa, que se achava mais esperta do que realmente era:
— Cale a boca! — disse, empurrando-a. — Pensa que me engana com sua conversa mole, sua atrevida?
Eco, assustada e com as mãos da furiosa deusa impressas nos ombros, calou-se. Mas era tarde demais.
— Porque pretendeu me fazer de boba a punirei, fazendo com que nunca mais possa dizer nada a não ser as últimas palavras que escutar — amaldiçoou Juno.
— … as últimas palavras que escutar… —repetiu Eco, em cuja boca o feitiço já começava a atuar.
— Ai está o que ganhou com seu atrevimento — disse Juno, vingada. — Adeus, idiota!
—… adeus, idiota… -repetiu Eco e tapou rapidamente a boca com as duas mãos. A notícia da maldição de Juno espalhou-se ligeiro por entre as ninfas:
— Bem-feito, sua ordinária — disse um dia uma rival a Eco.
— … sua ordinária… — respondeu Eco, que ao menos podia, às vezes, responder à altura os desaforos que escutava.
Assim vagou a ninfa por entre os bosques durante muitos anos, até que um dia, caminhando pelas montanhas, encontrou Narciso, um jovem caçador que havia se extraviado de seus colegas. Eco, ao colocar os olhos sobre a beleza do jovem, tomou-se imediatamente de amores por ele. Seguiu-o por um longo tempo imaginando qual o melhor meio de se aproximar dele, até que, ao pisar num galho solto, despertou finalmente a atenção do moço.
— O que foi isto? — perguntou o rapaz. — Há por aqui mais alguém?
— … mais alguém… — repetiu Eco.
— Chegue mais perto — disse Narciso, sem ver ninguém.
— … mais perto… — disse Eco e mostrou-se, finalmente, tendo antes o cuidado de ajeitar os cabelos.
Decepcionado por ver que não era nenhum de seus companheiros, Narciso simplesmente perguntou:
— Diga-me, ninfa, como faço para sair daqui?
— … sair daqui — replicou Eco, agoniada, pois a última coisa que desejava era que ele fosse embora.
Não podendo expressar com suas próprias palavras o seu amor, sem que antes o estranho o declarasse para ela, a ninfa desesperou-se e resolveu tomar uma medida drástica. Estendendo os braços, lançou-se para ele num frenético abraço. “Talvez ele entenda os meus sentimentos”, pensou.
— O que está fazendo? — exclamou Narciso, atirando-a ao solo com um empurrão. —
Não quero o seu amor!
— … quero o seu amor… — repetiu a ninfa, vendo Narciso dar-lhe as costas e escapar rapidamente por uma vereda do bosque.
Mas em matéria de amor Eco era um desastre. Consciente de seu fracasso, a pobre ninfa recolheu-se para o interior de uma caverna no bosque. Ali, após enfadar durante longos anos as paredes da gruta com seus lamentos e lágrimas, viu seu corpo, aos poucos, dissolver-se na escuridão da caverna, até passar a fazer parte dela. Da pobre ninfa só restou sua voz cava e profunda, a repetir sempre as últimas palavras que os passantes pronunciassem.
Narciso prosseguiu com suas caçadas e a tratar com rudeza as ninfas que o perseguiam. O
jovem caçador era pretensioso e arrogante, e mulher alguma parecia bastar à sua vaidade.
Inclusive corria uma lenda que dizia que quando Narciso nasceu, um oráculo teria anunciado que ele poderia viver muito tempo, se jamais enxergasse a si próprio. Seu pai, por via das dúvidas, quebrou todos os espelhos da casa. Temendo que o filho procurasse o próprio reflexo em alguma outra parte, adquiriu um espelho mágico, no qual Narciso via sua imagem sempre distorcida.
Mesmo assim, sua beleza era tal que o arrogante rapaz não desgrudava do bendito espelho.
— Como sou lindo… — dizia, sempre que tinha o espelho nas mãos.
Um dia, porém, durante uma caçada mais agitada, o espelho que trazia sempre em seu bolso partiu-se. Juntando os cacos pôde ver apenas, com lágrimas nos olhos, o reflexo estilhaçado da própria beleza.
— Que lindos pedaços! — ainda se admirou, numa vaidade residual e fragmentária.
Abalado e cansado da caça, Narciso meteu-se para dentro das profundezas do bosque, próximo da gruta onde Eco vivia. Ah perto havia um pequeno lago. absolutamente deserto e silencioso. Sobre suas plácidas águas nem um único cisne deslizava. As árvores, nas margens, inclinavam-se para longe do espelho cristalino de suas águas, como que tentando escapar de seu intenso reflexo.
Narciso, chegando à margem, debruçou-se para tomar alguns goles I límpida água. Ao fazê-lo, percebeu que alguém o observava de dentro da água. Fascinado com a beleza daquele semblante inigualavelmente belo, Narciso teve de admitir que era mais perfeito ainda do que o seu próprio rosto.
— Quem é você, rosto adorável, que me contempla deste jeito? — perguntou à efígie encantadoramente bela, que o mirava apaixonadamente nos olhos.
O rosto lindo, porém, não lhe respondia, nem a esta nem às outras solicitações. Por várias vezes Narciso tentou, sem sucesso, seduzir aquele rosto magnífico. Um dia debruçou-se a ponto de encostar os lábios à liquefeita boca da imagem. Porém, ao fazê-lo, viu o belo estranho turvar-se, o que o encheu de pânico.
— Não, não fuja! — exclamou, assustado, descolando rapidamente os lábios da água, o que fez a imagem retomar, aos poucos, a sua anterior nitidez.
— Por que rejeita meus beijos?
Pela primeira vez Narciso descobria o que era a dor do amor não-correspondido.
Apesar do jovem erguer cada vez mais a voz, Eco, que ouvia tudo, excepcionalmente não lhe repetia as últimas palavras. Vítima da crueldade de Narciso, gozava agora, secretamente, a sua vingança. O único ruído que escapava da caverna era um riso baixinho, que o vento produzia ao passar pelas fendas das pedras.
O jovem caçador foi perdendo a sua cor. Suas faces murchavam, seu cabelo crescia desmesuradamente — a ponto da franja cair-lhe pelos olhos — e seu nariz, perfeitamente aquilino, apresentava uma coriza continuamente a escorrer. Mas nada disso era o bastante para fazer com que ele deixasse de amar aquele rosto magnificamente belo. Assim foi definhando lentamente o pobre Narciso, às margens do lago. Sem poder consumar o seu amor, acabou se transformando numa bela flor roxa de folhas brancas, sempre debruçada sobre o leito das águas.
Sua sombra infeliz embarcou no mesmo dia na barca de Caronte, atravessando o Estige rumo ao país das trevas. Mas nem o severo barqueiro pôde impedi-lo de, enquanto fazia a travessia, reclinar-se outra vez para mirar-se nas águas do rio infernal.
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