Salmácis e Hermafrodita

A ninfa é um ser livre por definição. Vivendo às margens dos rios, seu único trabalho é banhar-se nas suas águas claras e procurar fazer-se cada vez mais bela a cada hora que passa, de forma que à noite esteja ainda mais graciosa do que estava pela manhã.

Assim pensava a ninfa Salmácis, reclinada na relva, à beira de um regato. Com a cabeça apoiada numa das mãos, a jovem alisava o tapete esverdeado c: solo, arrancando pequenos pedaços de grama. Depois, lançava-os indolentemente à água, após estudá-los de todos os modos. Salmácis gastava ainda um tempo infinito no restante desta importante ocupação, acompanhando a minúscula odisséia do pequeno talo verde que navegava na corrente do rio até desaparecer da sua vista, misturado aos outros pequenos detritos que vagam na superfície das águas.

Às vezes, no entanto, fingia ser ela mesma esse pequeno talo. Deitada sobre o curso da água, boiava, deixando que a corrente a levasse aonde quisesse. Enquanto ia assim navegando, de costas sobre a água, Salmácis sentia-se flutuar, liberta de tudo.

Via ao alto as nuvens avançarem com ela, enquanto pequenas andorinhas voavam em círculo no grande azulejo invertido do céu. Às vezes o sol, por entre os galhos da vegetação das margens, obrigava-a a fechar momentaneamente os olhos. Então, a coisa mais fácil do mundo para Salmácis era acordar, de repente, quase desaguando ao mar, junto com as águas do rio.

Nesse momento, seus ouvidos ainda podiam escutar as vozes de suas companheiras, que se afastavam na outra margem comentando algo num tom raivoso.

— Invejosas! — disse Salmácis, colando, aborrecida, a face direita na relva. Tinha certeza de que falavam mal dela, pois havia pouco tempo tivera uma irritante discussão com as ativas e incansáveis colegas. Discussões, mais do que qualquer outra coisa, aborreciam-na profundamente. Simplesmente não conseguia imaginar como duas pessoas podiam se desentender num lugar maravilhoso como aquele.

— Vamos lá, preguiçosa! — disse uma delas, atirando-lhe um punhado de seixos.

— Vamos para a caçada. Diana já nos espera no bosque — disse uma outra. Diana…

Diana… Essa tal de Diana era muito enfadonha. Criatura enjoada, incansável deusa dos bosques só queria saber, afinal, de caçadas.

— Vão vocês, eu estou bem aqui… — disse Salmácis, sem dar ouvido às censuras de suas aborrecidas irmãs. Mais tarde, sabia, elas voltariam esbaforidas, trazendo às costas veados ou corças cobertos de sangue, misturando o seu suor ao sangue dos animais abatidos. Era sempre a mesma coisa que a ninfa escutava de olhos fechados. Em meio à algazarra das vozes, podia sentir em seu corpo colado ao solo a vibração repugnante dos corpos lançados desrespeitosa-mente ao chão, como simples e pesados fardos de carne.

Suas irmãs, no entanto, recém haviam partido para a sua obrigação. Suas vozes esganiçadas aos poucos se misturavam aos ruídos naturais do bosque, até que a paz — a bendita paz! — retornava outra vez, pousando por tudo. A ninfa podia estender agora, ao comprido, o seu corpo delgado, deixando que o sol acariciasse a sua epiderme até arrancar dela minúsculas gotas de suor. Pois Salmácis era assim: gostava de suar em silêncio.

Enquanto o sol esquentava sua pele, pequenas abelhas vinham pousar sobre seu corpo.

Podia sentir os passinhos dos pequenos insetos dourados percorrendo suas pernas e subindo-lhe pelas coxas firmes e bronzeadas. De repente, porém, erguiam vôo outra vez, indo pousar em seus seios ou mesmo em seu rosto, passeando livremente em sua testa.

Ela ainda estava deitada, preparando-se para dar um mergulho, quando percebeu que alguém se aproximava da outra margem do rio. De bruços, precisou apenas erguer a cabeça para divisar um belo rapaz — que não teria mais de quinze anos de idade — sentar-se à beira da corrente. O jovem esticou uma das pernas, pondo um dos pés na água, enquanto a outra perna permanecia dobrada, deixando o joelho à altura do queixo. Seus cabelos loiros lhe caíam em desalinho pelos ombros, agitados ocasionalmente por uma suave brisa.

Tratava-se de Hermafrodita, o belo fruto da união entre Vênus e Mercúrio. Apesar de sua pouca idade, seu corpo tinha já a conformação quase idêntica à de um adulto robusto e sadio.

Seus traços revelavam nitidamente a sua ilustre descendência, de tal forma que era impossível passar despercebido aos olhos de qualquer mulher. Ou de qualquer ninfa.

Com a mão em concha, Hermafrodita recolheu um pouco de água do leito do rio e banhou sua face corada. Depois, repetindo o gesto, molhou o cabelo, fazendo com que pequenos veios d’água lhe escorressem pelos ombros, cobertos apenas por uma fina túnica, despenhando-se em seguida pelas suas robustas espáduas. Hermafrodita ainda não havia percebido, na outra margem, a presença da curiosa Salmácis, que, encantada com seus gestos ao mesmo tempo viris e delicados, apaixonara-se instantaneamente por ele.

“Quem será?”, indagava-se a ninfa, intrigada.

Erguendo mais um pouco o busto, apoiada em duas mãos, Salmácis continuou a observar o rapaz, que prosseguia em sua higiene, bem à sua frente. Hermafrodita, já em pé, livrou-se de seu pequeno manto, descobrindo ao sol o seu corpo viril e atlético.

— Ele há de ser meu — disse a ninfa, segredando à terra o seu desejo. Quando ergueu a cabeça novamente, porém, enxergou apenas centenas de gotas d’água subindo para o alto, num borrifo imenso que lembrava o de um chafariz. Hermafrodita demorou um bom tempo para voltar à superfície, de tal sorte que a ninfa chegou a temer por sua vida. Mas bastaram mais alguns instantes para que sua bela cabeça molhada surgisse da água, quase à sua frente. Sua boca lançou-lhe, inadvertidamente, os respingos de seu fôlego quase perdido. A pele da ninfa cobriu-se das minúsculas gotas, que se uniram ao seu suor. Salmácis gostou disto. O rapaz, contudo, ao perceber que estava diante daquela bela mulher, tomara um susto, recuando um pouco para dentro do leito do rio.

— Calma, não se assuste! — disse a ninfa, com um sorriso malicioso. Salmácis, como uma pequena serpente feminil, rastejou em sua direção.

esfregando seios e coxas sobre a relva, até aproximar o máximo possível a cabeça da corrente do rio. Com a cabeça pendida sobre a água, estudava implacavelmente o rapaz.

— Quem é você? — perguntou Hermafrodita, ainda não recuperado totalmente do susto.

— Aquela que deseja ardentemente saber quem é você! — disse Salmácis, mergulhando em seguida a cabeça inteira na corrente. Seus olhos mantiveram-se abertos, abaixo da linha da água, estudando os segredos que a superfície relativamente calma do rio ocultava. Depois, retirando a cabeça da água com violência, arremessou sobre a face do jovem, com a impetuosidade de um chicote, um grande jato d’água. Hermafrodita, definitivamente assustado com a audácia da ninfa, começou a nadar em direção à outra margem.

— O que há, garoto, está com medo de mim? — perguntou a ninfa, surpresa. Salmácis, na verdade, estava acostumada com a agressividade dos seus rudes e habituais cortejadores, faunos e sátiros, que já chegavam agarrando-a, passando em seu corpo as suas mãos grosseiras e peludas. A ninfa, contudo, jamais permitia que algum desses seres vulgares lhe chegassem perto, preferindo sempre a companhia dos gentis e delicados pastores. Mas que alguém quisesse fugir dela era uma novidade surpreendente.

Vendo que ele saíra já da água e rumava, num passo apressado, para dentro do bosque —

esquecido até da própria roupa -, Salmácis pôs-se em pé e lançou-se à água. Seus braços ágeis cortaram a correnteza suave da água com tal rapidez que em breve estava na outra margem. Ao sair do rio, mal teve tempo de perceber o dorso nu do rapaz ganhando rapidamente a mata.

— Espere! Por favor, não tenha medo de mim! — disse a ninfa, com um riso nervoso.

Salmácis entrou, também, correndo na mata, fazendo com que seus seios vibrassem no mesmo ritmo de seu passo veloz. Mais adiante divisou Hermafrodita, encostado a uma grande árvore, cujos galhos recobertos de folhas cobriam-no quase que inteiramente.

— Espere, vamos conversar! — disse a ninfa. — Quero conhecê-lo melhor.

— Não tenho nada para conversar com você — Hermafrodita replicou.

— Mas quem é a mulher aqui, afinal?! — Salmácis exclamou, zangando-se. Hermafrodita, ofendido, retesou o peito, numa resposta instintiva à ninfa.

Esta gostou da resposta. Com seus olhos percorreu o corpo do jovem, até exclama com um sorriso satisfeito:

— Você, com toda a certeza…!

Procurando ser mais contida, a ninfa tentou ganhar-lhe a confiança, como caçada.

Salmácis, afinal, também caçava agora.

— Você é bem novo, não? — perguntou, dando um pequeno passo adiante.

— Não tanto quanto você — disse o jovem, fingindo-se mais velho do que realmente era.

— Hum… é mais experiente, então…

Hermafrodita nada respondeu. A ninfa, no entanto, aproximara-se tanto que o jovem podia sentir a respiração dela em seu peito. Era um sopro curto e irregular que lhe provocava deliciosas cócegas no peito quase liso. Salmácis, na verdade, também começava a perder o controle da situação.

De repente, encurralando o rapaz contra o grosso tronco da árvore, ela tomou a sua cabeça nas mãos e colou com fúria os seus lábios aos dele. Mas foi surpreendida pelas mãos do jovem, que lhe apertavam com vigor a cintura, erguendo-a um pouco do chão. Ao sentir que seus pés separavam-se do solo, a ninfa abraçou-se ao pescoço do jovem, enlaçando-o com as pernas.

Nunca havia, na verdade, sentido tamanha identificação com o corpo e com a alma de alguém.

Tudo evoluiu rapidamente, como se ambos tivessem sido feitos expressamente um para o outro. Seus corpos encaixavam-se de modo perfeito; seus membros enlaçavam-se com tamanha familiaridade, que nem a ninfa nem o jovem podiam mais distinguir quais seriam os seus. Seus cabelos misturavam-se, ocultando como num véu o seu longo beijo.

De repente, porém, a ninfa, descolando momentaneamente os seus lábios dos do jovem e sentindo um desejo forte abalar todo o seu corpo, exclamou:

— O deuses! Quero que nós dois sejamos uma só pessoa!

Os deuses, que a escutavam, atenderam imediatamente ao pedido. Os corpos dos dois amantes começaram a se fundir, sob a sombra generosa da árvore, que parecia descer um pouco mais os seus galhos para ocultar a metamorfose. Os peitos de ambos, colados firmemente, impediam-nos agora de separar os seus troncos. Suas bocas fundiam-se uma na outra, tornando seu longo beijo um beijo perpétuo. As pernas da ninfa, enlaçadas à cintura do jovem, amarraram os dois amantes para sempre num nó indissolúvel: um único e perfeito ser.


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