Crime e Castigo – Mitologia Grega

A aparição, a interferência e o relacionamento regulares dos deuses com a sociedade humana, que hoje seriam tão notáveis, excitantes e perturbadores, eram tidos como certos pelos mortais mais tolos e convencidos da Idade de Prata. Alguns reis eram tão incensados que não davam bola para os preceitos mais elementares dos deuses exibindo o mais flagrante desrespeito por eles. Tais atos blasfemos de lesa-majestade raramente passavam sem punição. Como pais que advertissem os filhos com horríveis fábulas morais, ou como Dante ou Hieronymus Bosch com suas admoestatórias paisagens infernais, os gregos antigos pareciam se deleitar com os detalhes e o talento encantador das elaboradas torturas excruciantes que o Olimpo e o Hades reservavam para homens e mulheres cujas transgressões os irritassem especialmente.

Íxion

Aos olhos de Zeus, não há pecado mais grave do que a traição à xênia, o dever sagrado dos anfitriões em relação aos convidados e dos convidados em relação aos anfitriões. Poucos mortais demonstraram mais desprezo por esses princípios do que Íxion, o rei dos lápitas, uma antiga tribo da Tessália.

Seu primeiro crime foi por pura ganância. Conhecemos a ideia dos dotes, a prática das famílias de noivas em potencial pagarem para se livrar das filhas. Bem no início, as coisas eram feitas ao contrário: futuros maridos pagavam à família da noiva pelo direito de se casar com sua filha. Íxion se casou com a linda DIA, mas se recusou a pagar o preço combinado ao pai dela, o rei DEIONEU da Fócida. Como retaliação, o insultado Deioneu mandou um grupo armado tomar uma manada dos melhores cavalos de Íxion. Escondendo sua irritação sob um amplo sorriso, Íxion convidou Deioneu para jantar em seu palácio, em Lárissa. Quando ele chegou, Íxion o empurrou para dentro de uma fossa cheia de brasas. Essa flagrante quebra das regras da hospitalidade foi superada pelo pecado ainda mais grave, que era matar alguém da família. O assassinato de um parente era considerado tabu do tipo mais odioso. Com esse crime, Íxion cometera um dos primeiros assassinatos de sangue; a não ser que fosse purificado de sua transgressão, as Moiras o perseguiriam até ele enlouquecer.

Os príncipes, senhores e donos de terras na vizinhança da Tessália tinham motivos para não gostar de Íxion e nenhum se ofereceu para efetuar a catharsis, o processo ritual de purificação que o iria redimir. O Rei dos Deuses, no entanto, estava num humor de clemência admirável. O povo da Tessália tinha agido com rapidez para mostrar sua revolta com o crime duplo de Íxion, o abuso da xênia e o assassinato de um familiar. Zeus estava a fim de ser indulgente. Ele não apenas liberou Íxion de seu tormento, mas chegou ao ponto de convidá-lo para um banquete no Olimpo.

Era uma honra rara para mortais. A sedução e a grandiosidade de um festim no Olimpo superavam qualquer coisa que Íxion tivesse visto antes. A beleza majestosa de Hera o impressionou especialmente. Se pelo efeito inebriante da grande ocasião ou do vinho, ninguém depois conseguiu decidir – talvez não passasse de uma grosseira estupidez congênita –, mas, longe de se comportar com a gratidão modesta que se poderia esperar de qualquer mortal convidado para a mesa de jantar imortal, Íxion cometeu o catastrófico engano de tentar seduzir a Rainha do Céu. Soprou beijos, piscou, tentou mordiscar a orelha dela, sussurrou comentários lascivos e tentou várias vezes agarrar-lhe os seios. Ele não apenas insultou a mais digna e decorosa entre os olímpicos, mas, mais uma vez, transgrediu as leis da xênia. Fracassar nos deveres de convidado era considerado tão odioso quanto fracassar nos deveres de anfitrião.

Depois de Íxion cambalear Olimpo abaixo, dando palmadas em costas e arrotando agradecimentos, a ofendida Hera contou a Zeus sobre o ultraje à sua honra. Zeus ficou igualmente enraivecido. Resolveu montar uma armadilha para Íxion. O Amontoador de Nuvens apanhou uma nuvem e a esculpiu numa imagem anatomicamente exata e funcional de Hera. Soprou, trazendo-a à vida, e a mandou para baixo, até um prado fora de Lárissa, onde ele tinha visto Íxion dormindo espalhado sobre a grama, roncando sob o efeito do banquete.

Quando Íxion acordou e encontrou Hera a seu lado, rolou por cima dela e copulou com ela ali mesmo. Ao ver essa indescritível blasfêmia, Zeus jogou um raio e uma roda cheia de fogo. O raio mandou Íxion pelos ares e o prendeu à roda, que Zeus fez sair rodando pelos céus. Com o tempo, o firmamento foi considerado bom demais para ele e Íxion, atado à sua roda de fogo, foi enviado ao Tártaro, onde até hoje roda, calcinado e em agonia.

A Nuvem-Hera recebeu o nome de NEFELE. Sua união com Íxion produziu um filho, CENTAURO, um menino feio e malformado que se tornou um homem solitário e infeliz que tinha prazer não com humanos, mas com as éguas selvagens do monte Pélion, onde ele gostava de perambular. A progênie indomável e selvagem dessa união pouco natural entre homem e cavalo foi chamada, por causa dele, de “centauros”.

Consequências

Muitos dos mitos gregos levam a séries de consequências. Como já vimos, personagens principais de uma história se casam e fundam dinastias, das quais nascem ainda mais heróis lendários. E há montes de mitos subsidiários que saem da Roda de Íxion.

Já que estamos falando do monte Pélion, por exemplo, vale mencionar a história de IFIMEDIA, que estava tão apaixonada por Poseidon que ia regularmente sentar-se na praia, pegando água do mar e derramando-a sobre os seios e o colo. Poseidon ficou tocado com essa demonstração de adoração, saiu do oceano e, numa onda, a cingiu para se unir a ela. Nasceram filhos gêmeos, OTO e EFIALTES. Eram verdadeiros gigantes, no nosso sentido moderno: enquanto meninos, cresciam um palmo por mês. Ficou claro que, quando ficassem adultos, seriam os maiores seres vivos.

Como talvez você se lembre, o ciumento e ambicioso Poseidon sempre cogitara a possibilidade de seu irmão mais moço, Zeus, escorregar e ser derrubado do trono. O deus do mar pôs na cabeça de seus filhos, que cresciam tão rapidamente, a ideia de desafiar o céu, criando sua própria montanha, da qual governariam o mundo. O plano deles era arrancar o monte Ossa e amontoá-lo sobre o Olimpo. Em cima do Ossa, empilhariam o monte Pé-lion. Mas, antes que os gêmeos tivessem alcançado sua altura total e a força necessária para o feito, Zeus ficou sabendo da possibilidade da rebelião deles e mandou Apolo abatê-los com flechas. O castigo dos dois no mundo inferior foi ficarem amarrados em pilares com serpentes que se contorciam.

Só para continuar o fio da narrativa até uma de suas conclusões (mais um exemplo de como uma história pode levar a outros mitos, até mais significativos e com mais amplas consequências), você deverá saber que Nefele, a imagem de Hera como nuvem, casou-se com um rei da Beócia chamado ATAMAS, com quem teve dois filhos, FRIXO e HELE. Nefele teve motivos para salvar a vida de Frixo – um Isaac para seu pai Abraão – quando Atamas amarrou o filho no chão e estava prestes a sacrificá-lo. Exatamente como o deus hebraico revelou para Abraão um carneiro numa moita e salvou a vida de Isaac, Nefele enviou um carneiro de ouro para resgatar seu filho Frixo. A lã de ouro desse carneiro fez surgir a grande busca de Jasão e seus Argonautas. Tudo por causa de um rei bêbado e degenerado que teve a temeridade de lançar olhares lúbricos para Hera.

A Roda de Íxion se tornou um tema popular para artistas e escultores, e a expressão “uma roda de fogo” é algumas vezes usada para descrever uma carga, punição ou obrigação dolorosa. A expressão “empilhar Pélion sobre Ossa” também é utilizada, significando acrescentar dificuldade sobre dificuldade.

Tântalo

Talvez o tormento mais conhecido que os deuses já projetaram tenha sido aquele bolado para o malvado rei Tântalo. As consequências de seus crimes tiveram ramificações que percorreram os anos. A praga lançada sobre sua casa só foi retirada bem no final da idade mítica.

Tântalo governava o reino da Lídia, na Ásia Menor ocidental, região mais tarde conhecida como a província turca da Anatólia. Depósitos minerais do monte Sípilo, nas imediações, tinham rendido a ele riquezas imensas, a partir das quais ele estabeleceu uma cidade próspera, que despudoradamente chamou de Tantális. Casou-se com DIONE (uma das Híades, ou ninfas da chuva, que tinham amamentado o bebê Dioniso) e com ela teve um filho, PÉLOPE, e uma filha, NIOBE.

Ou havia algum defeito na personalidade de Tântalo, ou seu poder e riqueza o iludiram até ele acreditar que era igual aos deuses. Como Íxion antes dele, cometeu o erro de abusar da hospitalidade de Zeus, em seu caso voltando de um banquete no Olimpo com os bolsos cheios de ambrosia e néctar roubados. Além disso, cometeu a falta grave de contar histórias a respeito da vida particular e dos maneirismos dos deuses, divertindo seus cortesãos e amigos com imitações e fofocas insolentes.

Mas aí, ele cometeu um assassinato de sangue, ainda pior do que o crime de Íxion ao jogar o sogro numa cova com brasas. Ao ouvir dizer que os olímpicos estavam furiosos com a zombaria dele e com o roubo do néctar e da ambrosia, fez uma espalhafatosa demonstração de arrependimento e implorou que aceitassem sua própria hospitalidade como compensação pelo seu mau comportamento.

Veja, isso tudo ocorreu mais ou menos na época em que Deméter estava procurando sua filha Perséfone, que fora raptada. Sofrendo, ela deixava que todas as coisas em crescimento murchassem e morressem. O mundo estava estéril e infértil, e ninguém sabia quanto tempo isso ia durar. A perspectiva de uma festa foi vista como uma agitação bem-vinda. Conhecendo o estilo de vida opulento e de ostentação do rei Tântalo, os deuses estavam esperando com grande animação os lendários prazeres de sua mesa. Estavam prestes a ter um choque.

Como Licaão, o rei pelasgo, antes dele, Tântalo serviu seu próprio filho aos deuses. O jovem Pélope foi morto, desmembrado, assado, envolvido num grosso molho e posto à frente dos convidados. Imediatamente, eles sentiram que alguma coisa estava errada e se recusaram a comer. Mas Deméter, que só pensava na filha perdida, distraidamente beliscou e comeu o ombro esquerdo do garoto.

Quanto Zeus percebeu o que tinha acontecido, chamou uma das três Moiras, Cloto, a fiandeira. Ela reuniu as partes do corpo, mexeu todas num grande caldeirão e montou tudo de volta. Deméter, alertada para seu lapso horrível, encomendou a Hefesto um ombro de marfim para substituir o que ela tinha comido. Cloto colocou a prótese, que se encaixou perfeitamente. Zeus soprou no corpo do menino e Pélope voltou à vida.

A grande beleza de Pélope atraiu Poseidon e, durante algum tempo, eles se tornaram amantes. Entretanto, foças mais sombrias estavam agindo contra o jovem, e sua vida e seus feitos posteriores atraíram uma maldição sobre ele e sobre sua casa. Combinada com a praga recebida pelo abominável crime de Tântalo, essa praga viria a perseguir seus descendentes até o último de sua linhagem, ORESTES.

O próprio Tântalo foi despachado direto para o Tártaro e punido de maneira adequada a alguém que ousou tentar os deuses a comer a carne da vítima de um crime de sangue. Foi posto numa piscina com água até a cintura. Acima de sua cabeça, oscilava o ramo de uma árvore, no qual estavam penduradas frutas suculentas e apetitosas. A fome e a sede o assolavam, mas, cada vez que ele estendia o braço para pegar uma delas, o galho balançava para fora de seu alcance. Cada vez que se inclinava para beber, as águas da piscina se encolhiam, negando-se a ele. Ele não conseguia sair porque acima dele, ameaçando esmagá-lo se tentasse fugir, pairava uma grande pedra do pesado elemento esverdeado que um dia seria chamado de “tântalo”.

Lá está Tântalo, até hoje, agonizando, próximo da satisfação que sempre lhe é negada, representando a frustração torturante que leva seu nome – tantalizado, mas jamais satisfeito, até o final dos tempos.