— Se a vida de uma serpente é tão valiosa aos deuses, ó querida Harmonia, então mais vale ser uma serpente do que um homem.
Foi com esta praga infeliz que Cadmo, ex-rei de Tebas, deu sua entrada no reino dos ofídios. O velho Cadmo mal havia pronunciado tais palavras quando sentiu seu corpo começar a recobrir-se de escamas e seus membros desaparecerem, até que num instante só restava do antigo soberano uma serpente de grande cabeça chata e olhos de pupilas horizontais.
Harmonia, sua esposa, ao ver o que estava acontecendo com o marido, gritou desesperada:
— Oh, Cadmo, querido! O que fizeram com você os perversos deuses? Um sibilo foi a única resposta que Cadmo pôde dar naquele momento. Harmonia, desacorçoada, vendo que a metamorfose era definitiva, abanou a cabeça.
— Era esta, então, a última desgraça que nos faltava acontecer, não bastassem todas as outras que nos desabaram! — disse a velha, esmurrando os peitos. -Oh, mas vocês, deuses coléricos, não serão tão cruéis a ponto de me abandonar aqui, velha e sozinha, sem meu querido Cadmo! Façam com que ao menos eu compartilhe do destino dele, pois uma miséria compartilhada já não parece tão funesta a um mortal!
Os deuses não hesitaram em atender logo aos rogos da velha Harmonia: num instante estava também, a pobre, transformada numa comprida serpente, que foi logo juntar-se à outra, que parecia satisfeita, a chacoalhar os guizos. Logo as duas deslizaram pela relva, sumindo-se pelo bosque adentro.
Passado o primeiro choque da transformação, Cadmo e Harmonia foram aos poucos se acostumando com a sua nova condição de ofídios — pois a que o ser humano não se adapta, quando não há outra solução? Em poucos dias estavam plenamente habituados ao seu novo estilo de vida, bem como ao novo habitat: Cadmo e Harmonia eram agora duas ágeis serpentes, a infiltrar-se na mata espessa e virgem, livres dos incômodos da velhice, que nos últimos tempos os afligiam seriamente. Entretanto, com o passar do tempo, chegaram a se aborrecer com a sua nova rotina e também com o seu novo estado — pois a que o ser humano não toma logo tédio, uma vez acabada a novidade?
Assim, todas as vezes que as tardes ensolaradas se prolongavam demais, Harmonia não resistia e com seus olhos úmidos de serpente punha-se a relembrar seus tempos de glória.
— Não há tarde quente como esta — disse Harmonia, observando de esguelha um pequeno pássaro que piava num galho acima — que não me faça relembrar os saudosos dias em que minhas servas me banhavam com ervas perfumadas e eu ia repousar sobre o meu divã dourado, com a mesa, ao lado, farta das mais saborosas iguarias. Por que tinha você, afinal, que ir provocar os deuses? Por sua causa, agora, eu, a filha de dois deuses, estou condenada a rastejar ignobilmente nesta floresta infestada de mosquitos e a aturar o canto infindável destas malditas cigarras!
— Tem razão, minha querida! — disse Cadmo, sem coragem para afrontai a ira da mulher. — O que eu fiz não tem perdão! Se quiser amaldiçoar também o dia do nosso casamento, pode fazê-lo sem remorso, pois foi neste funesto dia que uni meu destino ao seu, arrastando-a para um negro destino!
— Ah, o nosso casamento… — disse Harmonia, dando um novo brilho ao olhar de suas verdes pupilas. — Que festa memorável! Todos os deuses abalaram-se do Olimpo — menos, é claro, aquela invejosa da Juno — para assistir às nossas festejadas núpcias. “As Núpcias de Cadmo e Harmonia!” Quem não ouviu falar, desde então, desta maravilhosa festa? Que mortal ou imortal a ela permaneceu alheio? Lembra do meu colar maravilhoso, Cadmo, aquele que Vulcano me presenteou, confeccionado por suas próprias mãos? Por causa dele um reino inteiro foi à guerra! E dizer que agora está nas mãos daquela mulher pérfida e mesquinha, a odiosa Erifila.
Harmonia sibilava de ódio incontido.
— Sim, minha amada, também me recordo perfeitamente — disse Cadmo, concordando.
— Mas veja, nem tudo era harmonia naquele tempo! Se, de fato, não temos mais aquela antiga felicidade, tampouco amargamos hoje as desgraças que então tivemos de suportar.
— Oh, nem me fale destes horrores outra vez! — disse Harmonia, voltando a cabeça para o lado.
Mas Cadmo precisava falar, repisar de novo o começo das suas desgraças, pois lhe parecia que se não falasse acabaria envenenado por suas próprias palavras.
— Sim, a desgraça começou para nossa família desde o dia em que abati aquela maldita serpente consagrada a Marte, o seu funesto pai.
— Por que não a deixou quieta, então? — resmungou Harmonia.
— Como? Esqueceu da maneira como se deu o nosso encontro?
“Ah, lá vem ele de novo com a história do duelo com a serpente!”, pensou a esposa de Cadmo. “E logo depois a dos mirmidões, eu poderia apostar.”
Então cresceu na alma de Harmonia a certeza de que não existia coisa mais enfadonha à paciência humana do que o homem de um único feito — ou mesmo de dois ou três.
— Deixar em paz aquela maldita serpente, que devorou meus homens! E a isto que você se refere quando censura a atitude que tomei em relação a ela?
— Cadmo, apesar de transformada em serpente, estou velha demais para fingir que não sei aonde você pretende chegar. Desenrole logo o fio do seu novelo e chegue logo à narrativa do seu glorioso duelo com a maldita serpente! Bem sei que é a primeira vez como serpente que deverei escutá-la, mas aviso já que será a primeira e a última!
Não, não era a última, pois assim como Cadmo jurava que repetiria sua história pela última vez, assim Harmonia jurava de pés juntos que a escutaria pela derradeira vez, e assim iam distraindo suas miseráveis existências.
Cadmo, a esta altura, já estava surdo às palavras da esposa; à sua frente tinha uma interlocutora inteiramente nova: aquele rosto ofídico nunca tinha ouvido o seu relato, e agora Cadmo iria observar pela primeira vez as reações faciais dele diante do seu espantoso relato.
— Aquela serpente era um monstro — um monstro horrendo e assassino! -, e fiz um favor à humanidade ao limpar a Terra da sua presença.
O transe começara, e Harmonia sabia que uma vez iniciado só havia um jeito de fazê-lo terminar logo: conduzir o relato por meio de perguntas objetivas, tal como um vaqueiro tange o gado, para que chegasse o mais breve possível ao seu destino.
— Vamos lá, o que você andava fazendo em Tebas? — disse Harmonia, como num jogral.
— Minha irmã Europa, você sabe, havia sido raptada por Júpiter, que se disfarçara em um touro para alcançar seu fim; Agenor, nosso pai, ordenou, então, que nós todos, seus irmãos, saíssemos à sua procura — o louco! — e assim fui eu errar por terras que nunca vira, sem jamais ter encontrado a pobre Europa. Receando, contudo, retornar para casa de mãos abanando, decidi ficar pelo mundo e fazer meu próprio destino.
— Adiante, Cadmo.
— Consultei, então, o oráculo de Apolo, o qual foi claro ao me dizer: “Pega a primeira vaca que aparecer pelo caminho e a siga até onde ela quiser; onde suas patas empacarem, ali construirás uma cidade a que darás o nome de Tebas”.
— Muito bem, você encontrou a vaca e ela andou, andou, andou, até empacar num tal lugar, e ali você disse: “Aqui construirei, então, Tebas sagrada!”.
— Agora percebo por que você tem uma língua fendida: é, por certo, para que fale por nós dois… — retrucou Cadmo, mal-humorado.
— Adiante, Cadmo, adiante.
— Mandei, então, que meus criados fossem procurar água pura para que fizéssemos a libação aos deuses. Como eles demorassem, fui à sua procura. Ao entrar no bosque onde eles haviam se internado, dei de cara com uma gruta. Do lado de fora havia muitas poças de sangue e alguns pedaços das roupas dos meus pobres servos.
— A serpente os havia devorado e aguardava somente a sua chegada para devorá-lo também… — disse Harmonia de modo corrido, como quem recita um texto pela milésima vez.
— Exatamente. Oh, jamais esquecerei aquela serpente terrível, com os maxilares ensangüentados, tendo ainda nos dentes alguns bocados de meus homens! Que ódio insano se apoderou de mim naquele momento, Harmonia!
— Lá vamos nós.
— Primeiro atirei uma grande rocha contra ela, que teria sido capaz de abalar as próprias muralhas de Tróia, erguidas por Netuno, mas ela nem se abalou. Lancei-lhe, então, com mais felicidade, uma lança, a qual penetrou entre sua casca asquerosa, dilacerando sua carne imunda.
Ela se contorceu de dor, tentando arrancar, em vão, a flecha mortífera, mas a ponta de ferro ficou lá cravada, dentro de sua carne. Ela veio, então, em minha direção, com a boca escancarada cheia de riscos de sua saliva podre misturada ao veneno, enquanto eu recuava, prudentemente.
Assim estivemos durante longo tempo, ela cuspindo em minha direção sua baba asquerosa e pestífera, e eu escolhendo o momento certo para enterrar meu dardo em sua goela hedionda, até que consegui encurralá-la junto ao tronco de uma árvore, prendendo-a firmemente pelo flanco.
Aproveitei, é claro, para enterrar minha lança com toda a força em sua garganta, e o fiz com tanta força que o peso dela curvou a árvore, indo cair ambas ao solo, extenuadas e sem vida.
Cadmo fez uma pausa para retomar o fôlego.
— Agora deixe-me contar a propósito…
—… dos mirmidões, é claro… — completou Harmonia, feliz, apesar de tudo, por ter sido tão misericordiosamente curta a narrativa da serpente.
— Estava com o monstro abatido a meus pés quando escutei uma voz bem nítida que assim dizia: “Cadmo heróico, toma agora os dentes desta fera e os semeia sobre a terra!”. Claro que segui à risca o que a voz dizia — só podia ser a de um deus! — e dali a pouco vi brotar do próprio chão, para meu indizível espanto, um exército inteiro de soldados armados já de lanças e escudos! Uma colheita de soldados!
— E o que eles fizeram?
— Estranhamente, nem bem haviam se livrado da sujeira da terra, começaram a brigar uns com os outros. Mas não era uma briguinha qualquer, não. Aquele era um exército portentoso, de milhares de homens armados até os dentes, e a briga pavorosa se estendeu pela noite inteira, sob o brilho das estrelas. E apesar de ter tentado intervir por mais de uma vez, fui sempre rechaçado por uma voz que me dizia: “Refreia a sua mão, eis que esta é uma luta entre irmãos!”.
— E como terminou este massacre?
— “Massacre”, bem o diz, cara Harmonia, pois ao cabo da luta restavam somente cinco deles vivos e em pé no meio de um mar de mortos. Então os cinco disseram, a uma só voz:
“Armas fora, companheiros, e vivamos doravante em paz!”. Juntei-me, então, a estes valorosos soldados, e juntos construímos a cidade de Tebas, glória de toda a Grécia.
A noite já vinha caindo, e as duas serpentes já estavam cansadas de relembrar, e de sorrir, e de chorar, e de sofrer, e de se aborrecer, enfim, de tudo isto. Para felicidade delas não foram obrigadas a relembrar os fatos que se seguiram muito depois, e a terrível maldição que se abateu sobre a casa de Cadmo por conta da serpente — ou do dragão, como querem outros — que ele matou naquele terrível dia. Seus filhos e netos foram extremamente infelizes, e o casal foi obrigado a partir de Tebas, indo reinar no país dos enquelianos, que, parece, souberam dar mais valor ao dois velhos monarcas do que o próprio povo destes.
Neste momento uma luz brilhou diante das duas serpentes: era Mercúrio quem vinha, a mando de Júpiter, para conduzir até os Campos Elísios as duas serpentes.
— Eis que os deuses apiedaram-se de vocês, e é chegada a hora de passarem ambos aos amenos campos — disse o deus dos pés alados.
Cadmo e Harmonia deram entrada, naquela mesma noite, nos Campos Elísios, e esta foi, seguramente, a primeira vez que duas serpentes adentraram um paraíso.
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