O mundo ainda fumegava com a selvageria da guerra. Zeus percebeu que ele precisava se recuperar, e sabia que sua própria geração, a Terceira Ordem dos seres divinos, teria de fazer uma administração melhor do que as duas primeiras. Era tempo de uma nova ordem, uma ordem sem o desperdício causado pela sede de sangue, pela brutalidade elementar que tinha marcado as épocas anteriores.
Aos vencedores, os despojos. Como um executivo que acabou de assumir uma empresa após uma aquisição hostil, Zeus queria tirar a antiga administração e trazer seu pessoal. Atribuiu um domínio próprio a cada irmão, suas áreas de responsabilidade divina. O Presidente dos Imortais escolheu seu gabinete.
Ele próprio assumiu o comando geral, como líder supremo e imperador, senhor do firmamento, mestre do tempo e das tempestades: Rei dos Deuses, Pai Céu, Amontoador de Nuvens. Comandava os trovões e os raios. Seus emblemas eram a águia e o carvalho, símbolos, então como agora, de graça feroz e poder sem oposição. Sua palavra era lei, seu poder, formidavelmente grande. Mas ele não era perfeito. Estava muito, muito longe de ser perfeito.
Héstia
De todos os deuses, Héstia – “Primeira a ser devorada e última a ser devolvida” – é provavelmente a menos conhecida para nós, talvez porque o reino que Zeus, em sua sabedoria, atribuiu a ela foi o lar. Em nossa era menos comunal, de aquecimento central e quartos separados para cada membro da família, não damos ao calor do lar a importância dada pelos nossos ancestrais, gregos ou outros. Mesmo assim, para nós, o conceito guarda sua importância. Falamos de “lareira” e “lar”. As palavras inglesas hearth (lareira) e heart (coração) compartilham uma origem, exatamente como a palavra em grego moderno para “lareira” é kardia, que também significa “coração”. Na Grécia Antiga, o conceito mais amplo de lareira e de lar era expresso por oikos, que continua vivo para nós hoje em palavras como “economia” e “ecologia”. Em latim, lareira é focus – que fala por si. É uma coisa estranha e maravilhosa que, de palavras para definir uma lareira, tenhamos criado “cardiologia”, “foco profundo” e “ecoguerreiro”. O significado essencial de centralidade que as conecta revela também o grande significado do lar para gregos e romanos, e consequentemente, a importância de Héstia, sua divindade principal.
Héstia, recusando propostas de casamento de outros deuses, dedicou-se à virgindade perpétua. Plácida, satisfeita, gentil, hospitaleira e doméstica, ela tendia a ficar afastada das lutas diárias pelo poder e das maquinações dos outros deuses. Divindade modesta, ela é em geral representada numa túnica simples, oferecendo chamas numa tigela ou sentada em uma almofada de lã rústica sobre um trono simples de madeira. Era costume, na Grécia, dar graças a ela antes de cada refeição.
Os romanos, que a chamavam de VESTA, a consideravam tão importante que tinham uma escola de sacerdotisas dedicadas a ela, as famosas virgens vestais. A responsabilidade delas, além do celibato pela vida toda, era garantir que a chama que representava a deusa nunca se extinguisse. Eram as guardiãs originais da chama sagrada.
Dá para imaginar, então, que não há muitas grandes histórias a respeito dessa deusa suave e cativante. Eu só conheço uma, que vamos ouvir dentro em pouco. Naturalmente, ela se sai muito bem.
A loteria
Zeus, em seguida, se voltou para seus irmãos sombrios e problemáticos, Hades e Poseidon. Como tinham se portado com igual habilidade, bravura e astúcia na guerra contra os Titãs, Zeus achou que seria bastante justo sortear entre eles as duas mais importantes províncias que ainda não tinham sido determinadas – o mar e o mundo inferior.
Você vai se lembrar de que Cronos tinha arrancado de Tálassa, Ponto, Oceano e Tétis o controle de tudo o que estivesse no, sob e sobre o mar. Agora, Cronos se fora e Zeus podia presentear o reino da água salgada. Quanto ao mundo inferior – que incluía o Tártaro, o misterioso Campo de Asfódelos (mais tarde, falaremos dele) e a escuridão subterrânea controlada por Érebo –, era o momento de também se submeter à presidência de uma única divindade, da geração de Zeus.
Hades e Poseidon não tinham lá grande estima um pelo outro e, quando Zeus pôs as mãos nas costas e as apresentou à frente com os punhos fechados, eles hesitaram. Nos casos de desamor fraternal, em geral, cada irmão quer o que o outro quer.
Será que Hades espera ganhar o mar ou o mundo inferior?, pensou Poseidon. Se ele quiser o mundo inferior, então eu também quero, só para ele ficar com raiva.
Hades pensou da mesma forma: Seja lá o que eu escolher, disse a si mesmo, vou dar gritos de triunfo, só para chatear esse Poseidon metido a besta.
Em cada um dos punhos estendidos de Zeus, estava escondida uma pedra preciosa: em um deles, uma safira tão azul quanto o mar, e no outro, um pedaço de azeviche, preto como Érebo. Poseidon dançou de alegria quando tocou as costas da mão direita de Zeus e a viu abrir-se, revelando a cintilante safira azul.
— Os oceanos são meus! — rugiu ele.
— Isso significa… Oba! — gritou Hades, dando um poderoso soco no ar. — Isso significa que eu tenho o mundo inferior. Rá!
Por dentro, secretamente, ele ficou enjoado. Os deuses são tão infantis…
Hades
Essa foi a última vez que viram Hades rindo. Daquele momento em diante, ele não manifestou mais nenhuma alegria ou sentimento de brincadeira. Talvez seus deveres como Rei do Mundo Inferior tenham acabado, aos poucos, com nenhum prazer juvenil ou leveza de toque que ele já pudesse haver tido.
Nas profundezas, ele passou a esculpir seu reino. Embora seu nome viesse sempre a ser associado com a morte e a vida após a morte, e o reino todo do mundo inferior (que compartilha seu nome) se associasse a dor, punição e sofrimento perpétuo, Hades passou também a simbolizar riquezas e opulência. As pedras e os metais preciosos que são minerados fundo, no interior da terra, bem como as inestimáveis safras de grãos, vegetais e flores que germinam embaixo da terra, são lembranças de que da decomposição e da morte brotam a vida, a abundância e a riqueza. Os romanos o chamavam PLUTÃO, e palavras como “plutocrata” e “plutônio” falam dessa grande opulência e poder.
Sob o comando direto de Hades estavam Érebo e Nix e o filho deles, Tânato (a própria Morte). Um sistema de divindades fluviais, escuras e temíveis demais para fluir a céu aberto serpenteava seu fluxo através desse mundo inferior. O principal era Estige (ódio), uma filha de Tétis e Urano cujo nome e atributos “estígios” (infernais) são invocados até hoje sempre que queremos descrever alguma coisa escura, ameaçadora e lúgubre, alguma coisa infernalmente negra e sorumbática. Nela, se infiltravam FLEGETONTE, o flamejante rio de fogo, AQUERONTE, o rio da aflição, LETE, as águas do esquecimento, e CÓCITO, a torrente da lamentação e do pranto. O irmão de Estige, Caronte, foi nomeado barqueiro, e, por enquanto, esperava, apoiado em seu bastão, nas margens do Estige. Ele sonhava que um dia as almas viriam aos milhares até as margens do rio e pagariam a ele o preço da travessia. Um dia próximo.
Hades deu às Erínias nascidas da terra espaço para que morassem dentro do coração escuro de seu reino. Dali, as três podiam voar para todos os cantos do mundo impondo sua vingança aos transgressores cujos crimes fossem abomináveis o bastante para merecer sua atenção violenta.
Depois de algum tempo, Hades adquiriu um animal de estimação, um gigantesco cachorro com cauda de serpente e três cabeças, filho daqueles monstruosos filhos de Gaia e Tártaro, Equidna e Tifão. Seu nome era CÉRBERO. Era o cão original do inferno, um temível e incansável cão de guarda, guardião do mundo inferior.
Em Lerna, lago que podia ser usado como uma das entradas para o mundo inferior, Hades posicionou HIDRA, outra filha de Tártaro e Gaia. Mencionei acima as assustadoras mutações possíveis que surgem quando os monstros copulam, e a diferença entre Cérbero e sua irmã Hidra oferece um exemplo impressionante. De um lado, um cachorro com três cabeças mais ou menos administráveis e uma elegante cauda serpentina para abanar; de outro, sua irmã, uma besta aquática de muitas cabeças, quase impossível de matar. Se lhe cortassem uma cabeça, nasciam mais dez em seu lugar.
Apesar dessas atrocidades zoológicas, o Hades por enquanto era um lugar tranquilo, governado por um deus que tinha pouco a fazer. Para que o inferno ficasse agitado, eram necessários seres mortais. Criaturas que morressem. Assim, vamos deixar Plutão por enquanto, sentado em seu trono infernal e gelado, matutando sombriamente, tão hostil, frio e remoto quanto o planeta que leva seu nome, e secretamente amaldiçoando a boa sorte que dera o governo dos mares a seu irmão odiado.
Poseidon
Poseidon era um deus muito diferente de Hades. Ele podia ser tão truculento, bravio, vaidoso, caprichoso, inconsistente, irrequieto, cruel e insondável quanto os oceanos que comandava. Mas podia também ser leal e grato. Em comum com seus irmãos e algumas de suas irmãs, ele também viria a exibir luxúria física, profundo amor espiritual e todos os sentimentos intermediários. Como todos os deuses, era ávido por admiração, sacrifício, obediência e adoração. Uma vez seu amigo, amigo para sempre. Uma vez seu inimigo, inimigo para sempre. E ele ambicionava mais do que oferendas queimadas, libações e preces. Tinha sempre um olho avaro sobre o mais novo de seus irmãos, o que se chamava agora de “mais velho” e “rei”. Caso Zeus fizesse muita besteira, Poseidon estaria lá para derrubá-lo de seu trono.
Assim como tinham forjado raios para Zeus, os Ciclopes agora criaram uma grande arma também para Poseidon: um tridente. Esse arpão de pesca maciço, com três dentes, podia ser usado para incitar maremotos e remoinhos – e até fazer a terra tremer com terremotos, o que deu a Poseidon o apelido de “Aquele que Sacode a Terra”. Seu desejo por sua irmã Deméter fez com que ele inventasse o cavalo para impressioná-la e agradá-la. Ele perdeu sua paixão por Deméter, mas o cavalo permaneceu sagrado para ele.
Sob o que hoje chamamos de mar Egeu, Poseidon construiu um vasto palácio de coral e pérolas, no qual se instalou com sua consorte escolhida, ANFITRITE, filha de Nereu e Dóris ou (segundo alguns) de Oceano e Tétis. Como presente de casamento, Poseidon deu a Anfitrite o primeiro golfinho. Anftrite deu a Poseidon um filho, TRITÃO, uma espécie de “sereio”, em geral retratado sentado sobre a cauda e soprando, com as bochechas cheias, numa grande concha. Anfitrite, verdade seja dita, parece ter sido um tanto sem graça e aparece em poucas histórias de interesse. Poseidon passava quase todo o seu tempo perseguindo uma quantidade perfeitamente exaustiva de meninas e meninos lindos, e sendo pai, com as meninas, de um número ainda maior de monstros, semideuses e heróis humanos – Percy Jackson e Teseu, para mencionar só dois.
O equivalente romano de Poseidon era NETUNO, cujo planeta gigante é rodeado de luas, entre elas Tálassa, Tritão, Náiade e Proteu.
Deméter
A próxima filha de Cronos a receber seus atributos divinos foi Deméter. Tinha o cabelo da cor do trigo maduro, pele igual a creme e olhos mais azuis do que a centáurea, era tão deslumbrante e sonhadoramente linda quanto qualquer uma das deusas, a não ser, talvez… Bem, a questão de quem era a deusa mais linda viria a ser uma das mais polêmicas, espinhosas e, em última análise, cataclísmicas perguntas já feitas.
Deméter era tão adorável que atraiu a atenção indesejada de seus irmãos Zeus e Poseidon. Para evitar Poseidon, ela se transformou numa égua, e, para persegui-la, ele se transformou num garanhão. O resultado dessa união foi um potro, ÁRION, que cresceu e se tornou um cavalo imortal, magicamente dotado do poder da fala. Com Zeus, ela teve uma filha, PERSÉFONE, cuja história vem mais tarde.
Zeus deu a Deméter a responsabilidade pelas colheitas, e com isso, a soberania sobre o crescimento, a fertilidade e as estações. Seu nome romano era CERES, de onde obtemos a palavra “cereal”.
Do mesmo modo que Héstia, Deméter, como personalidade, é uma das divindades menos claras em nossa ideia, hoje, em comparação a outras de sua família apaixonante e carismática. Mas, como Héstia, seu domínio era de suprema importância para os gregos; templos e cultos dedicados a ela persistiram durante muito mais tempo do que os dedicados aos deuses mais superficialmente charmosos. A grande história dedicada a Deméter, sua filha e o deus Hades é tão linda quanto dramática, de longo alcance e verdadeira.
Hera
Hera foi a penúltima a sair de Reia. Palavras que ainda são aplicadas a ela, e que a teriam enfurecido imensamente, incluem “orgulhosa”, “imperiosa”, “ciumenta”, “arrogante” e “vingativa”. Nas artes e nas referências comuns, ela é muitas vezes cunhada com a indignidade extra de três perturbadores adjetivos: escultural, rubenesca e – cortesia de sua denominação romana – junonal.
O destino e a posteridade foram cruéis com a Rainha do Céu. Ao contrário de Afrodite ou Gaia, ela não teve nenhum planeta batizado em sua homenagem e tem de suportar a carga de uma reputação que a retrata como mais reativa do que ativa – reativa sempre com relação às infidelidades errantes de seu marido-irmão Zeus.
É fácil diminuir Hera como uma tirana chata – ciumenta e desconfiada, tempestuosa e resmungona como a própria imagem de uma esposa megera desprezada (dá para imaginá-la atirando vasos de porcelana em criados emudecidos), planejando vinganças odiosas contra ninfas e mortais que a desagradaram, que não queimaram animais suficientes em seus altares, ou, o mais fatal de tudo, que cometeram o crime de se deitar com Zeus (voluntária ou involuntariamente, ela nunca perdoava, e podia guardar rancor durante vidas). Mas, embora fosse de fato ambiciosa, esnobe, conservadoramente protetora da hierarquia e impaciente com originalidade e estilo – o arquétipo de diversas tias literárias e viúvas cinematográficas –, Hera nunca foi uma chata. A força e a resolução com que ela enfrentava um deus que a poderia desintegrar com um raio mostram autoconfiança, além de coragem.
Gosto muito dela e, embora tenha certeza de que iria gaguejar, corar e engolir em seco em sua presença, ela tem em mim um fiel admirador. Ela conferiu aos deuses gravidade, peso e o imensurável dom do que os romanos chamaram de auctoritis. Se isso faz com que ela pareça uma estraga-prazeres, bem, algumas vezes os prazeres precisam ser estragados e as crianças, tiradas do parquinho. Sua província especial era o casamento; os animais associados a ela eram o pavão e a vaca.
Durante a guerra contra os Titãs, ela e Zeus se tornaram um casal natural, e ficou aparente para ele que ela era a única com suficiente presença, dignidade e comando para tomar a posição de consorte e gerar com ele novos deuses.
Mesmo estalando de tensão, impaciência e desconfiança, o casamento deles era, sim, um grande casamento.
Uma casa nova
O anseio de Zeus por uma nova era, uma nova partilha do cosmos, abrangia mais do que a simples distribuição de poderes e províncias entre seus irmãos e irmãs. Zeus imaginou algo mais esclarecido, e mais racionalmente constituído do que as tiranias sanguinárias e brutais anteriores.
Ele imaginava uma assembleia de doze deuses principais – um dodecatheon, como ele, de modo bem grego, o apresentou a si mesmo. Até agora, conhecemos seis, os filhos de Cronos e Reia. Já havia outra divindade a ser convocada, é claro, mais velha do que qualquer um deles: a Afrodite nascida da espuma. No momento em que a Titanomaquia estourou, Zeus tirou Afrodite de Chipre, consciente de que ela seria um grande trunfo se os Titãs a raptassem, pedissem resgate ou a recrutassem. Durante os últimos dez anos, ela morara, satisfeita, entre eles e, assim, os deuses agora contavam sete.
Do mesmo modo que os Titãs tinham feito do Ótris sua morada, Zeus agora escolheu para seu quartel-general o monte Olimpo, pico mais alto da Grécia. Ele e seus deuses seriam conhecidos como OLÍMPICOS, e governariam como nenhum ser divino governara antes ou desde então.
O nanico
Quando os deuses se mudaram para o Olimpo, Hera estava grávida. Não podia estar mais satisfeita. Sua ambição era dar a Zeus filhos de tal poder majestoso, força e beleza que seu lugar como Rainha do Céu estaria assegurado por toda a eternidade. Ela sabia que Zeus tinha tendência para a galinhagem e estava determinada a não o deixar à solta. Primeiro, daria à luz o maior dos deuses, um menino que chamaria de HEFESTO, e depois Zeus se casaria adequadamente com ela e se submeteria para sempre aos seus desejos. Esse era o plano dela. Os planos dos imortais, no entanto, são tão sujeitos aos cruéis truques de Moros quanto os dos mortais.
Chegada a hora, Hera deitou-se e Hefesto nasceu. Para sua consternação, aconteceu a criança ser tão escura, feia e minúscula que, depois de um olhar enojado, ela a agarrou e a atirou montanha abaixo. Os outros deuses observaram o bebê, chorando, quicar num penhasco e desaparecer no mar. Houve um silêncio terrível.
Já vamos descobrir o que aconteceu com Hefesto, mas, por enquanto, vamos continuar no Olimpo, onde Hera logo engravidou de Zeus outra vez. Dessa vez, ela se cuidou muito, comendo alimentos saudáveis e se exercitando suave, mas regularmente, de acordo com todos os preceitos e práticas aprovados para a gravidez e o parto. Ela queria um filho adequado, não um nanico que só servia para ser jogado fora.
É guerra
Quando chegou a hora, Hera realmente deu à luz a criança robusta, forte e bela que ela queria.
ARES, porque foi assim que ela o chamou, desde o início foi um menino briguento, violento e agressivo. Ele arrumava briga com todo mundo e só pensava no embate de armas e cavalos, carruagens, lanças e artes marciais. Era natural que Zeus, que já não tinha gostado dele desde o início, o nomeasse o deus da guerra.
Ares – MARTE para os romanos – era burro, é claro, monumentalmente tapado e sem imaginação, porque, como todo mundo sabe, a guerra é estúpida. Entretanto, até Zeus reconheceu, relutante, que ele era uma adição necessária ao Olimpo. A guerra era estúpida, mas também inevitável e, algumas vezes – ousa-se dizer? –, necessária.
À medida que crescia rapidamente para a idade adulta, Ares se viu irresistivelmente atraído por Afrodite – qual deus não era? O mais espantoso, talvez, foi que ela era igualmente atraída por ele. Ela, inclusive, o amava; sua violência e sua força apelavam a alguma parte profunda dela. Por sua vez, ele passou a amá-la, na medida em que um bruto violento é capaz dessa emoção. Amor e guerra, Vênus e Marte, sempre tiveram uma forte afinidade. Ninguém sabe bem por quê, mas já se ganhou muito dinheiro em busca de uma resposta.
O trono encantado
Hera achou que tinha de instituir uma festa nupcial, uma grande cerimônia pública que a uniria para sempre em matrimônio a Zeus, consolidando sua posição como indiscutível consorte e Rainha do Céu universalmente reconhecida.
Os impulsos de propriedade e ambição de Hera motivavam quase tudo o que ela fazia. Gostara de ver seu filho caído por Afrodite, mas não confiava na deusa. Se Afrodite concordasse em confirmar um compromisso público com Ares, como Zeus deveria fazer com Hera, então, tudo seria irrevogável e oficial, estabelecendo um selo permanente em seu triunfo. O primeiro casamento do mundo, portanto, solenizaria dois matrimônios.
Estabeleceu-se uma data e foram enviados os convites. Os presentes começaram a chegar, sendo que o mais espetacular, todos concordaram, foi um maravilhoso trono dourado destinado pessoalmente a Hera. Jamais se havia visto um objeto tão glorioso e lindo. Quem quer que fosse o remetente anônimo, era óbvio, declarou Hera, que tinha o gosto mais encantador. Sorrindo de satisfação, ela sentou-se no trono. Imediatamente, os braços tomaram vida e saltaram para dentro, encerrando-a num abraço apertado. Por mais que se debatesse, ela não conseguia escapar, os braços tinham se fechado em torno dela e ela estava presa. Os gritos eram apavorantes.
O manco
Há dúvidas, discordâncias e especulação acerca do que aconteceu com Hefesto depois de ter sido jogado do céu. Alguns dizem que a Oceânide Eurínome e a Titânide Tétis (no grego, TETHYS), mãe de Eurínome, ou talvez a Nereida TÉTIS (no grego, THETIS), filha de Nereu e Dóris, que viria dar à luz AQUILES, muitos anos mais tarde, cuidaram do deus recém-nascido. O que parece certo, no entanto, é que Hefesto cresceu na ilha de Lemnos, onde aprendeu a forjar metal e fazer objetos complexos, requintados. Com muita rapidez, ele demonstrou um talento notável para a elaboração de artefatos úteis, ornamentais e até mágicos, que – aliados à sua força nos foles e à aparente imunidade a queimaduras no calor intenso das forjas – se combinaram para fazer dele o maior dos ferreiros.
Ao quicar do Olimpo montanha abaixo, ele machucou o pé, o que o deixou permanentemente manco. Era uma visão temível, com seu andar desajeitado, feições ligeiramente contorcidas e cachos negros desordenados. Sua fama posterior, no entanto, foi de fidelidade, gentileza, bom humor e temperamento estável. A mitologia grega é repleta de bebês jogados na selva ou abandonados em topos de montanhas e deixados para morrer por causa de alguma profecia de que eles um dia trariam desastre para os pais, a tribo ou a cidade, ou porque eram considerados amaldiçoados, feios ou malformados. Esses proscritos sempre pareciam sobreviver e voltar para realizar a profecia ou para recuperar seus direitos de nascimento.
Hefesto ansiava por voltar para o Olimpo, que sabia ser seu lar por direito. Mas sabia também que não poderia fazer isso sem amargura nem nos termos adequados, a não ser que se permitisse um ato de vingança ponderado, que viesse provar a força de sua personalidade, seu direito à divindade e servir como cartão de visita para o céu.
Então, enquanto Hefesto aprendia seu ofício e trabalhava seus foles, sua mente rápida e inteligente bolou um plano que seus dedos rápidos e inteligentes transformariam em espantosa realidade.
A mão de Afrodite
Bem amarrada no trono de ouro, Hera uivava de raiva e frustração. Nem o poder dela, nem mesmo o do próprio Zeus, tinham conseguido libertá-la dessa maldição. Como é que ela poderia convidar o mundo imortal para uma festa na qual ela estaria sentada, prisioneira, como uma criminosa no pelourinho? Seria grotesco e indigno. Ririam dela. Que mágica estava em funcionamento ali? Quem tinha feito aquilo com ela? Como é que ela poderia se livrar do encanto?
O desafortunado Zeus, bombardeado por uma fuzilaria de perguntas e queixas, foi pedir ajuda aos outros deuses. Quem conseguisse soltá-la, proclamou ele, poderia ter a mão de Afrodite em casamento, o maior prêmio matrimonial que havia.
Ares ficou danado com esse decreto peremptório. Não tinha ficado combinado que era ele quem ia se casar com Afrodite?
— Fique calmo — disse Zeus. — Você é mais forte do que todos os demais deuses juntos. Sua união está a salvo.
Afrodite também estava confiante, e impulsionou seu amante para a frente com palavras encorajadoras. Mas Ares empurrou, puxou, chutou e xingou, sem o menor efeito. Parecia, até, que quanto mais ele se esforçava mais apertada ficava a prisão de Hera no trono. Poseidon (apesar de ter Anfitrite como consorte) fez uma tentativa animada, que do mesmo modo deu em nada. Até Hades subiu do mundo inferior para tentar soltar Hera de seu dilema cada vez mais embaraçoso. Em vão.
Enquanto o próprio Zeus puxava frenética e inutilmente os braços do trono, suportando ainda mais insultos da humilhada e enraivecida Hera, uma tossezinha educada, mas insistente, atravessou o tumulto. Os deuses reunidos voltaram-se.
No próprio saguão do céu, com um suave sorriso em seu rosto assimétrico, estava Hefesto.
— Oi, mãe — disse ele. — Tendo problemas?
— Hefesto!
Ele avançou mancando.
— Fiquei sabendo que há algum tipo de recompensa…?
Afrodite olhou para o chão, mordendo o lábio. Ares rosnou e deu um passo à frente, mas Zeus o segurou. Os demais deuses abriram caminho para a feia criaturinha claudicar até onde estava Hera, prisioneira em seu trono de ouro. Com um toque dos dedos, os braços de trono se abriram e Hera estava livre. Ela se levantou, arrumou o vestido e se endireitou de forma a mostrar ao mundo que toda a situação estivera sob controle o tempo todo. A cor fugiu das faces de Afrodite. Não podia ser!
Foi um momento de doce vingança para Hefesto, mas sua natureza essencialmente boa impediu que ele se vangloriasse. Apesar – ou talvez por causa – das dores da rejeição que suportara a vida toda, ele era motivado não pela raiva ou pelo ressentimento, mas apenas pelo desejo de agradar, de se fazer útil e de dar alegria. Sabia que era feio e sabia que Afrodite não o amava. Sabia que, se a reivindicasse como prêmio, ela o trairia e iria frequentemente para a cama de seu irmão Ares. Mas ele estava simplesmente feliz por estar em casa.
Quanto a Hera, em vez de reconhecer que tinha pago por sua traição cruel e desnaturada do instinto maternal, manteve um silêncio digno e gelado. Secretamente, a melhor parte dela estava bastante orgulhosa de seu menino mais velho e, com o tempo, ela passou a gostar dele de verdade, como todos no Olimpo.
Hefesto faria presentes para Afrodite e para todos os deuses e se mostraria um membro digno dos doze. Ganhou um vale inteiro junto à montanha para sua própria forja, que se tornaria a maior e mais produtiva oficina do mundo. Como assistentes, ele escolheu os Ciclopes, eles mesmos artesãos da mais alta qualidade, como já vimos. Qualquer coisa que Hefesto ainda não soubesse, eles podiam ensinar e, juntos, trabalhando em seus projetos, elaborariam objetos notáveis que poderiam mudar o mundo.
Hefesto – deus do fogo e dos ferreiros, artesãos, escultores e trabalhadores com metal – estava em casa. Seu nome romano é VULCANO, que mora nos vulcões e vulcaniza borracha.
A festa de casamento
Novos convites foram enviados para o casamento de Zeus e Hera, apressadamente corrigidos para incluir o casamento de Afrodite com Hefesto. Todos os convocados para as duplas bodas aceitaram, alegremente empolgados. Nunca se vira uma coisa assim em toda a criação, mas, afinal, a criação nunca vira uma deusa como Hera, com seu grande senso de propriedade e intenso sentimento pela ordem, cerimônia e honra familiar.
As ninfas das árvores, dos rios, das brisas, das montanhas e dos oceanos não falaram de outra coisa que não o casamento durante semanas. Os espíritos dos bosques também – os sensuais faunos, além das duras dríades e hamadríades de cascas de árvores – encaminharam-se para o Olimpo, vindos de cada floresta, bosque e bosquedo. Para comemorar as núpcias, Zeus chegou a perdoar alguns dos Titãs. Não Atlas, é claro, nem o há muito exilado Cronos; mas os menos ameaçadores e violentos, Jápeto e Hiperião entre eles, foram perdoados e libertos.
Para acrescentar sabor a uma ocasião já freneticamente prenunciada, Zeus lançou um desafio: quem conseguisse inventar o melhor e mais original prato nupcial poderia pedir um favor a ele. Os imortais de menor importância e os animais enlouqueceram de excitação com essa chance de brilhar. Camundongos, sapos, lagartos, ursos, castores e pássaros, todos juntaram receitas para trazer à presença de Zeus e Hera. Eram bolos, pães, biscoitos, sopas, terrinas de pele de enguias, mingaus feitos de musgo e mofo. Tudo o que era doce, salgado, amargo, azedo e picante foi posto em pequenas mesas sobre cavaletes para que o Rei e a Rainha dos Deuses os julgassem.
Mas, primeiro, houve os casamentos. Afrodite e Hefesto foram casados, depois Hera e Zeus. A cerimônia foi conduzida com encantadora simplicidade por Héstia, que ungiu cada um dos quatro com óleos aromáticos, soprando fumaça perfumada e cantando, numa voz musical baixa, hinos de companheirismo, auxílio e respeito mútuo. Familiares e convidados observavam, muitos deles fungando e segurando as lágrimas. Um fauno que cometeu o erro tático de declarar, entre soluços reprimidos, que Afrodite e Hefesto formavam um lindo casal recebeu um rápido e violento chute nas costas de um Ares furioso.
Terminada a função oficial, era hora de encontrar o ganhador da grande competição culinária. Zeus e Hera caminhavam lentamente para cima e para baixo, cheirando, tocando, sondando, provando, bebericando e lambendo os pratos como críticos gastronômicos profissionais. Os concorrentes, atrás dos cavaletes, prendiam a respiração. Quando Zeus fez um aceno aprovador com a cabeça na direção de uma gelatina oscilante de hibisco, besouro e nozes, sua criadora, uma jovem garça chamada Margarete, soltou um único gritinho de excitação e desmaiou direto.
Mas o prêmio não foi dela. A vencedora foi a aparentemente modesta apresentação de uma pequena criatura tímida, chamada MELISSA. Ela ofereceu aos deuses uma ânfora muito pequena, cheia quase até o topo com uma gororoba pegajosa de cor âmbar.
— Ah, sim — disse Zeus, mergulhando o dedo com um aceno de cabeça sabedor e aprovador. — Resina de pinheiro.[53]
Mas não era resina de pinheiro o que estava no frasquinho. Era algo inteiramente diferente. Algo novo. Algo xaroposo sem ser unguento, viscoso sem ser pesado, doce sem ser enjoativo e aromatizado com um sabor que fazia os sentidos enlouquecerem de prazer. O nome dado por Melissa foi “mel”. Quando Hera tomou uma colherada, pareceu-lhe que o perfume das flores mais adoráveis dos prados e das ervas das montanhas dançavam e cantavam dentro de sua boca. Zeus lambeu as costas da colher e fez um hummm de deleite. Marido e mulher olharam um para o outro e assentiram. Não havia mais necessidade de consultas.
— Ahn, o… er… padrão foi… bem agradavelmente alto este ano — declarou Zeus. — Parabéns a vocês todos. Mas a rainha Hera e eu concordamos. Esse… ah… mel fica com o primeiro lugar.
As demais criaturas, tentando esconder a decepção, fingiram expressões de prazer, enquanto formavam um grande semicírculo e observavam Melissa zunir adiante para receber seu prêmio – um desejo que seria concedido pelo próprio Rei dos Deuses.
Melissa era miudinha e pareceu ainda menor ao se aproximar do pódio do vencedor. Ela voou (porque sabia voar, apesar de parecer desajeitada e gorda demais nos lugares errados para isso) até o mais próximo que ousou do rosto de Zeus, e zumbiu estas palavras para ele:
— Venerado senhor, que bom que gostou do meu petisco, mas devo dizer que ele é extraordinariamente difícil de fazer. Tenho de zunir de flor em flor para coletar o néctar lá dentro. Só consigo chupar e carregar uma pequena quantidade. O dia inteiro, enquanto Éter me concede luz para enxergar, tenho de sugar, buscar e retornar ao ninho, sugar, buscar e retornar ao ninho, muitas vezes, percorrendo distâncias enormes. Mesmo assim, no fim do dia, eu só consigo ter uma fração ínfima de néctar para converter, usando meu processo secreto, no doce que lhe agradou tanto. Só essa anforazinha que está segurando me levou quatro semanas e meia para encher, de modo que pode ver que é um negócio extremamente laborioso. O cheiro do mel é tão intenso, tão arrebatador e tão irresistível que muitos vêm assaltar meu ninho. Fazem isso na maior impunidade, porque sou pequena e só posso zumbir para eles, zangada, e incitá-los a sair. Imagine, uma semana inteira de trabalho pode ser perdida com uma única passada da pata de uma fuinha ou uma lambida de um filhote de urso. Eu só queria ter uma arma, majestade. O senhor equipou o escorpião, que não fabrica nada comestível, com um ferrão letal, e à serpente, que não faz nada além de ficar deitada ao sol o dia inteiro, concedeu uma mordida venenosa. Grande Zeus, dê-me uma arma assim. Uma arma fatal, que mate quem ousar roubar meu precioso estoque de mel.
As sobrancelhas de Zeus se uniram em uma carranca sombria e perturbada. Ouviu-se um ribombar no céu e nuvens negras começaram a se formar e crescer acima. Os animais se inquietaram, observando, alarmados, a luz diminuir e lufadas de vento agitarem as festivas toalhas de mesa e enrugarem os vestidos reluzentes das deusas.
Zeus, como a maior parte dos seres ocupados e importantes, não tinha paciência para frescura ou autopiedade. Essa criatura boba, uma insignificante coisa voadora, estava exigindo um ferrão letal, estava? Bem, ele mostraria a ela.
— Inseto miserável! — ele trovejou. — Como ousa exigir um prêmio tão monstruoso? Um talento como o seu devia ser compartilhado, não oculto por egoísmo. Não só vou negar seu pedido…
Melissa interrompeu com um zumbido alto de desagrado.
— Mas o senhor deu sua palavra!
A assembleia inteira prendeu a respiração. Será que ela tinha mesmo ousado interromper Zeus e questionar sua honra?
— Desculpe-me, mas acho que você pode perceber que eu proclamei… — rosnou o deus, com uma contenção que era muito mais assustadora do que qualquer explosão de gênio — … que o vencedor poderia pedir qualquer favor. Não prometi que esse pedido seria concedido.
As asas de Melissa se abaixaram em decepção.
— Entretanto — continuou Zeus, levantando a mão —, a partir deste momento, a colheita do seu mel será facilitada pelo meu decreto de que você não trabalhará sozinha. Será rainha de toda uma colônia, um enxame inteiro de súditos produtivos. Além do mais, eu vou lhe conceder um ferrão fatal e doloroso.
As asas de Melissa se arrebitaram, animadas.
— Mas — prosseguiu Zeus —, embora ele traga uma dor aguda a quem você ferroar, vão ser você, e sua espécie, a morrer. Assim seja.
Outro ribombar de trovão e o céu começou a clarear.
Imediatamente, Melissa sentiu um movimento estranho dentro dela. Olhou para baixo e viu que uma coisa longa, fina e afiada como uma lança estava saindo do final de seu abdome. Era um ferrão, com a ponta afiada como uma agulha, mas terminando numa farpa cruel e terrível. Com um forte estremecimento, um zumbido e um lamento final, ela foi embora voando.
Meliss ainda é a palavra grega para favo de mel, e é verdade que o ferrão da abelha é uma arma suicida de último recurso. Se ela tentar voar depois de a rebarba ter se alojado na pele de sua vítima, vai puxar para fora suas próprias entranhas no esforço de se livrar. A vespa, muito menos útil e diligente, não tem essa rebarba e pode administrar seu ferrão quantas vezes quiser sem perigo para si mesma. Mas as vespas, por mais aborrecidas que sejam, nunca fizeram aos deuses exigências egoístas e arrogantes.
É também verdade que a ciência chama a ordem dos insetos aos quais a abelha pertence de Hymenoptera, que em grego quer dizer “asas de casamento”.
Alimento dos deuses
Talvez tenha sido mais do que humor e impaciência o que fez Zeus punir Melissa – cujo mel era mesmo maravilhosamente delicioso – com tanta severidade. Talvez tenha sido política. O mundo dos imortais inteiro estava lá para testemunhar o momento. Tinha sido uma lição para eles de como o Rei dos Deuses era implacável.
O silêncio que agora se abateu sobre a festa de casamento era tão sombrio e ameaçador quanto as nuvens de tempestade que tinham se juntado mais cedo. Zeus elevou a ânfora de mel acima da cabeça.
— Para a minha rainha e amada esposa, eu abençoo esta ânfora. Ela jamais se esvaziará, e nos alimentará eternamente. Quem provar deste mel jamais envelhecerá ou morrerá. Será o alimento dos deuses e, quando misturado com o suco de frutas, será a bebida dos deuses.
Ouviu-se um grande aplauso, pombas voaram pelos céus, as nuvens e o silêncio foram dispersados. As Musas Calíope, Euterpe e Terpsícore avançaram e bateram palmas. Tocou-se música, foram cantados hinos de louvor e começou a dança. Foram quebrados muitos pratos em êxtase, uma tradição que chegou aos nossos dias sempre que os gregos se reúnem para comer, celebrar e ganhar dinheiro dos turistas.
Em grego, “imortal” é ambrotos e a “imortalidade” em si é AMBROSIA, que passou a ser o nome do mel especialmente abençoado. Sua forma fermentada, bebível, um tipo de hidromel, era chamada de NÉCTAR em honra ao doce presente das flores.
Zeus ruim
O cálice de Hera estava transbordando – literalmente, no momento, porque uma náiade atenciosa estava enchendo sua taça até transbordar, mas também figurativamente. O filho mais velho dela fizera um casamento brilhante e Zeus tinha jurado fidelidade e lealdade na frente de todos os que tinham importância no mundo.
Ela não tinha notado que, naquele exato momento, seu insaciável senhor estava lançando olhares de luxúria à dança de LETO, a ninfa mais linda da ilha de Cós. Leto era filha dos Titãs Febe e Ceos, eles próprios gratos recipientes da recente anistia de Zeus, e presentes à festa.
Uma voz murmurou ao ouvido de Zeus:
— Você está pensando que minha prima Leto lhe deve a vida e deveria, portanto, ir para a cama com você.
Zeus olhou nos olhos sábios e cheios de humor de sua tutora Métis, a Oceânide cuja inteligência, sagacidade e percepção não tinham igual em lugar algum. Métis, que ele ainda amava e que tinha certeza de que o amava. Seu sangue, já aquecido pelo néctar e pela ambrosia, tinha se aquecido ainda mais pela dança e pela música.[56] A centelha que sempre surgia entre ele e Métis ameaçava explodir num grande incêndio.
Ela viu isso e ergueu a mão.
— Nunca, Zeus, nunca. Tenho sido como uma mãe para você. Além disso, é o dia do seu casamento. Você perdeu todo o senso de decência?
Todo o senso de decência era exatamente o que Zeus tinha perdido. Ele tocou Métis por baixo da mesa. Alarmada, ela mudou de lugar. Zeus se levantou e a seguiu. Ela apressou o passo, virou uma esquina e disparou montanha abaixo.
Zeus a perseguiu correndo, transformando-se, primeiro, num touro, depois, num urso, em seguida, num leão e, por fim, numa águia. Métis escondeu-se atrás de uma pilha de rochas no fundo de uma caverna, mas Zeus, transformando-se numa serpente, conseguiu deslizar através de uma falha nas rochas e envolvê-la numa espiral.
Métis tinha sempre amado Zeus e, exausta e tocada pela persistência dele, acabou consentindo. No entanto, mesmo quando eles se uniram, alguma coisa incomodava Zeus. Uma profecia que ele tinha ouvido de Febe. Algo a respeito de um filho de Métis que se ergueria para sobrepujar o pai.
Depois do ato, ainda deitados e animados, eles passaram a conversar a respeito de transformações – metamorfoses, como são chamadas em grego. Como poderia um deus ou um Titã ser capaz de transformar outros, ou eles mesmos, em animais, plantas e até mesmo objetos sólidos, exatamente como Zeus fizera enquanto perseguia Métis. Ela o parabenizou por sua habilidade nessa arte.
— É — disse Zeus meio prosa. — Eu fui atrás de você como um touro, um urso, um leão e uma águia, mas foi como uma serpente que eu a peguei. Você tem fama de destreza e astúcia, Métis, mas eu fui mais esperto. Admita.
— Ah, claro que eu poderia tê-lo vencido. Ora, se eu me transformasse numa mosca, você jamais poderia me pegar, não é?
Zeus riu.
— Você acha que não? Como você me conhece pouco.
— Vamos lá, então — provocou Métis. — Agora, veja se me pega! — Com um zunido e um zumbido, ela se transformou numa mosca e partiu para fora da caverna. Num piscar de olhos, Zeus se transformou num lagarto e, com um dardejar rápido de sua língua pegajosa, Métis (com qualquer possível filho de Zeus que pudesse já estar se formando em seu ventre) foi transferida em segurança para seu interior. Parece que tinha sido passado para Zeus o péssimo hábito de seu pai, Cronos, de comer qualquer um que se previsse que iria conquistá-lo.
Quando voltou de fininho ao Olimpo, sob seu próprio formato, congratulando-se por ter sido mais esperto do que a supostamente astuta Métis, a música e a dança ainda estavam em pleno vapor. Sua mulher não parecia ter notado nada.
A mãe de todas as enxaquecas
O Rei dos Deuses teve uma dor de cabeça. Não uma ressaca da festa de casamento, não uma dor de cabeça no sentido de algum problema chato que precisava ser resolvido – como líder, ele sempre tinha muitas dessas –, mas uma dor de cabeça no sentido de verdadeira dor na cabeça. A cada dia, a dor aumentava, até que Zeus se encontrou na mais aguda, enlouquecedora, alucinante, massacrante agonia que jamais alguém sofrera na história de qualquer coisa. Os deuses podem ser imunes à morte, ao envelhecimento e a muitos dos outros horrores que afligem e amedrontam os mortais, mas não são imunes à dor.
Os rugidos, berros e gritos de Zeus encheram os vales, os desfiladeiros e as cavernas da Grécia. Soaram por grutas, penhascos e covas das ilhas, a ponto de o mundo se perguntar se os Hecatônquiros tinham subido do Tártaro e a Titanomaquia tinha começado outra vez.
Os irmãos, as irmãs e outros membros da família de Zeus se agruparam, preocupados, em torno dele na praia, onde o encontraram implorando a seu sobrinho, Tritão, filho mais velho de Poseidon, que o afogasse no mar. Tritão se recusou a fazer uma coisa dessa, de modo que todo mundo queimou os miolos e tentou pensar em outra solução, enquanto o pobre Zeus sapateava e gritava agoniado, espremendo a cabeça com as mãos e tentando esmagá-la.
Então Prometeu, o jovem Titã preferido de Zeus, surgiu com uma ideia que sussurrou para Hefesto, que assentiu ansiosamente, antes de claudicar de volta até sua oficina o mais rápido que suas pernas imperfeitas conseguiam.
O que estava acontecendo dentro da cabeça de Zeus era bastante interessante. Não era de surpreender que ele estivesse sofrendo com essas dores excruciantes, porque a astuciosa Métis estava trabalhando com afinco dentro de seu crânio, forjando, queimando e martelando uma armadura e armamentos. Havia, na dieta variada, saudável e balanceada dos deuses, suficiente quantidade de ferro e outros metais, minerais, terras raras e microelementos para que ela encontrasse no sangue e nos ossos dele todos os ingredientes, todos os minerais e compostos de que precisava.
Hefesto, que teria aprovado sua metalurgia rudimentar, mas eficaz, voltou à praia apinhada carregando um enorme machado de dois gumes, no estilo minoico.
Prometeu, então, convenceu Zeus de que o único jeito de aliviar a dor era tirar as mãos das têmporas, ajoelhar e ter fé. Zeus murmurou alguma coisa a respeito de o problema de ser o Rei dos Deuses era não haver nenhum outro mais alto a quem apelar, mas obedientemente caiu de joelhos e esperou seu destino. Hefesto cuspiu alegre e confiantemente nas mãos, agarrou o grosso cabo de madeira e – enquanto a multidão calada observava – o baixou em um rápido movimento bem no meio do crânio de Zeus, dividindo-o habilmente em dois.
Fez-se um terrível silêncio enquanto todos observavam horrorizados, estupefatos. O horror estupefato se transformou em descrença e a descrença, em assombro desnorteado, à medida que agora testemunhavam, surgindo da cabeça aberta de Zeus, a ponta de uma lança. Seguiu-se a parte superior de um penacho arruivado. Os espectadores prenderam a respiração enquanto surgia à vista uma figura feminina vestida numa armadura completa. Zeus abaixou a cabeça – se de dor, alívio, submissão ou puro espanto, ninguém pôde dizer com certeza – e, como se a cabeça inclinada dele fosse uma rampa ou passadiço baixado para sua conveniência, a criatura gloriosa desceu calmamente até a areia e voltou-se para encará-lo.
Equipada com armadura blindada, escudo, lança e elmo emplumado, ela olhou para o pai com olhos de um cinzento incomparável e maravilhoso. Um cinzento que parecia irradiar uma qualidade acima de todas as outras: sabedoria infinita.
Uma coruja voou de um dos pinheiros que orlavam a praia e se empoleirou no ombro da armadura brilhante da guerreira. Das dunas, uma cobra esmeralda e ametista avançou, deslizando, e se enroscou a seus pés.
A cabeça de Zeus se fechou com um ruído de sucção ligeiramente desagradável e se cicatrizou sozinha.
Ficou claro para todos os presentes que essa nova deusa era dotada de níveis de poder e personalidade que a elevavam acima de todos os imortais. Até Hera, que se deu conta de que a recém-chegada só podia ser o produto de um caso extraconjugal que devia ter acontecido muito próximo ao dia de seu casamento, ficou quase tentada a dobrar o joelho.
Zeus olhou para a filha que lhe provocara tanta dor e deu um sorriso caloroso. Um nome ocorreu a ele, e ele o disse.
— Atena!
— Pai! — disse ela, sorrindo gentilmente de volta.
Atena
As qualidades incorporadas por ATENA se tornariam virtudes e feitos supremos da grande cidade-Estado que viria a ter seu nome: Atenas. A sabedoria e a percepção foram herdadas de sua mãe, Métis. Artes manuais, artes da guerra e política pertenciam a ela. Lei e justiça, também. Ela recebeu um quinhão dos domínios do amor e da beleza que tinham sido exclusivos de Afrodite. O tipo de beleza de Atena se expressava na estética, na apreensão de seu ideal na arte, na representação, no pensamento e no caráter, mais do que nos tipos mais físicos, óbvios e talvez superficiais que seriam sempre coisas de Afrodite. O amor que Atena defendia tinha, também, uma ênfase menos calorosa e menos física; era do tipo que mais tarde seria conhecido como “platônico”. Os atenienses viriam a apreciar esses atributos de Atena acima de todos os outros, do mesmo modo como apreciavam a deusa sua padroeira acima de todos os imortais existentes. Digo “existentes” porque – como descobriremos – duas outras divindades do Olimpo, ainda não nascidas, viriam em breve a desempenhar papéis na definição do que seriam um ateniense e um grego.
Alguns anos mais tarde, Atena e Poseidon competiriam para ser o patrono especial da cidade de Cecrópia. Ele bateu com seu tridente numa alta rocha onde eles estavam e produziu uma fonte de água do mar, um truque impressionante, mas seu teor de sal a tornava mais ou menos inútil como algo além de uma pitoresca fonte pública. O presente simples de Atena foi a primeira oliveira. Os cidadãos de Cecrópia, em sua sabedoria, viram os inúmeros benefícios de sua fruta, óleo e madeira e a escolheram como sua divindade e protetora principal, mudando o nome da cidade para Atenas em homenagem a ela.
Em Roma, ela era venerada como MINERVA, mas sem exatamente aquela conexão pessoal particular que os gregos sentiam por ela. Seus animais favoritos eram a coruja, esse dignificado símbolo de sabedoria atenta, e a serpente – em cujo disfarce seu pai conquistou sua mãe. A oliveira, cujo fruto macio e versátil mostrou ser grande bênção para a Grécia, também era sagrada para ela.
A aparente suavidade daqueles olhos cinzentos desmentia um novo tipo de ideal, que combinava a força física com a força de caráter e a força da mente. Não era aconselhável irritá-la. Além do mais, quem a aborrecesse aborrecia Zeus. Ele era vidrado na filha, que, a seus olhos, não poderia fazer nada de errado. Ares, seu filho menos favorito, fazia um contraste interessante com sua nova meia-irmã. Ambos eram deuses da guerra, mas os interesses de Atena estavam no planejamento, nas táticas, na estratégia e na inteligência da guerra, enquanto que Ares era o deus das batalhas, dos combates e de todo tipo de luta. Ele só entendia a violência, a força, a agressão, a conquista e a coerção. É perturbador mas essencial reconhecer que nenhum dos dois era assim tão poderoso quando não estava aliado com o outro.
Atena, muitas vezes, recebia o prenome de PALAS e, como Palas Atena, ela protegia a cidade de Atenas. O símbolo de sua tutela era chamado palladium, uma palavra que acabou denominando teatros, além de nos dar o elemento Pd. A Palas original era filha do deus do mar, Tritão, e querida amiga de infância de Atena. Elas brincavam juntas de jogos de guerra mais ou menos sérios. Numa ocasião, quando Palas estava ganhando de Atena, Zeus (sempre atento e protetor de sua queridinha) interveio e, armando um de seus raios para impressionar, deixou Palas inconsciente. Atena, no calor do momento, administrou um golpe de misericórdia e matou a amiga. Depois disso, para sempre, carregou o nome de Palas como um sinal pesaroso de sua permanente afeição e remorso.
Atena, como Deméter, permaneceu intocada por homens. Sua vida sem filhos, solteirice e seu relacionamento jovial com Palas levaram alguns a defender que ela é um símbolo do amor feminino com o mesmo sexo.
Métis de dentro
Quando Zeus induziu a mãe de Atena a se transformar numa mosca para que ele usasse sua língua de lagarto para a engolir, Métis foi muito tola, o que não era característico dela. Ou assim parecia.
Na verdade, ela não fora enganada coisa alguma. Tinha sido ela a enganá-lo. Metis significa, afinal de contas, “esperteza” e “astúcia”. Muito deliberadamente, ela se deixou ser consumida por Zeus – mais do que isso, ela o induziu a fazer isso. Viu que, se sacrificasse sua liberdade e permanecesse para sempre dentro dele, ela poderia assumir o papel de consultora sábia, um tipo de conselheira, capaz de sussurrar conselhos a ele para sempre. Gostasse ele ou não.
Aqueles que falam a verdade para os poderosos acabam, em geral, algemados ou num túmulo prematuro, mas, dentro da cabeça de Zeus, Métis jamais poderia ser silenciada. Seria uma prudente limitação aos excessos imprudentes e às paixões precipitadas que muitas vezes ameaçavam encrencar o deus do trovão. Seus ataques de humor, lascívia e ciúme precisavam ser equilibrados pela voz calma dela, uma voz que poderia impelir seus instintos para canais mais racionais e mais esclarecidos.
Se Métis sacrificou a liberdade por um sentimento de dever e responsabilidade ou por amor a Zeus, que ela sempre adorou, não posso afirmar de modo conclusivo. Era, como um grego poderia dizer, a moira dela, tanto servir quanto amar.
A astuciosa orientação interna de Métis, combinada com as outras características positivas de Zeus – carisma, coração, astúcia inata e (em geral) um forte senso de justiça, equidade e direito – ajudou a elevá-lo à posição de um governante maior, cujos atributos ofuscaram de longe os de seu pai, Cronos, e seu avô, Urano. De fato, Métis se tornou parte dele, tanto que Homero algumas vezes se referia a Zeus como Metieta – “sábio conselheiro”.
Em busca de santuário
A sabedoria, sob a forma de Métis, podia sussurrar em um ouvido de Zeus, mas no outro ele sempre escutava os anseios ardentes da paixão. Quando lindas meninas e mulheres – e algumas vezes, jovens rapazes – cruzavam seu caminho, nada conseguia impedi-lo de persegui-las de uma ponta a outra da terra, mesmo que tivesse de se transformar em um sem-número de animais para isso. Uma vez que o ataque de luxúria se apoderava dele, Métis não podia fazer mais para controlá-lo do que um cochicho consegue acalmar uma tempestade, enquanto que os sonoros gritos da raiva ciumenta de Hera não tinham mais poder para chamá-lo de volta do que as batidas de asas de uma borboleta conseguem tirar um navio de seu curso.
Mencionei que os olhares apaixonados de Zeus certa vez já tinham caído sobre Leto, a filha recatada dos Titãs Febe e Céos. Posso imaginar que “recatada” é uma palavra chata para uma mulher ouvir quando aplicada a si mesma (raramente se ouve falar de homens recatados, afinal de contas), mas Leto viria a se tornar uma espécie de deusa menor, representando exatamente a qualidade de dignidade modesta evocada pela palavra “recatada”.[61] Mesmo assim, Zeus logo foi atrás dela, e ela deu para ele.
Titânide discreta, Leto (LATONA, para os romanos) foi mais tarde venerada como deusa da maternidade, além de exemplo de modéstia. Isso foi, provavelmente, em honra de uma gravidez que, assim que Zeus acabou com Leto, se transformou num triunfo mais do que corajoso sobre a adversidade. Porque, quando Hera descobriu que Zeus tinha engravidado Leto, exigiu que sua avó, Gaia, negasse a Leto qualquer terra onde dar à luz. Já era enlouquecedor o suficiente para Hera que a ilegítima Atena tivesse precedência nas afeições de Zeus sobre os nobres filhos queridinhos dela, Hefesto e Ares (ela parece ter esquecido, em seu repentino ataque de amor maternal por seu primogênito, que tinha jogado o primeiro deles do céu), e não estava a fim de deixar outro deusinho bastardo vir se intrometer para perturbar a ordem no Olimpo. Havia muito em Hera que traz à mente a mulher do imperador romano Augusto Lívia, ou as mulheres de determinados reis ingleses e chefes da máfia. Sempre cuidando de dinastias e linhagens, sempre prontas a fazer qualquer coisa por honra, família, linhagem e legado.
Sem terra firme, a pobre jovem Leto, grávida, navegou os mares procurando por um lugar onde dar à luz. Tentou encontrar abrigo com as selvagens Hiperbóreas, que moravam além do Vento Norte, mas, com medo da zanga de Hera, elas não a deixaram ficar. Perdida, em todos os sentidos, ela lançou preces a Zeus, que a pusera nesse perrengue horrível, para começo de conversa; mas, como Rei dos Deuses, a autoridade dele se baseava em aceitar e endossar o direito dos demais deuses de governar suas próprias esferas e exercer seus próprios desejos. Ele não podia ir de encontro ao édito de Hera nem desfazer seu feitiço horroroso. Líderes, reis e imperadores sempre se queixaram de ser menos livres do que seus súditos, e há alguma verdade nisso. Zeus, com certeza, apesar de todo o seu poder e majestade, estava sempre restrito pelos princípios de gabinete do governo, consenso e responsabilidade coletiva, que lhe permitiam governar.
O melhor que ele conseguiu fazer por Leto foi convencer seu irmão Poseidon a provocar uma série de ondas que levassem o navio dela até Delos. A pequena ilha desabitada flutuava nos remoinhos e torvelinhos das Cíclades, sem estar ancorada no fundo do mar, e, portanto, era imune à maldição de Hera.
Gêmeos!
Leto aterrissou exausta na hospitaleira ilha flutuante de Delos, mal tendo forças para engatinhar até além das dunas para se abrigar embaixo de uma fileira de pinheiros que beiravam a praia. Algumas pinhas e gramas comestíveis não alimentariam a vida ativa que ela sentia chutando dentro dela, de modo que prosseguiu até um vale verde, avistado à distância. Lá, abaixo do monte Cinto, ela sobreviveu durante um mês com frutas e sementes, vivendo como uma criatura selvagem, mas em segurança da maldição de Hera. Sua barriga cresceu tanto durante essa época que ela teve medo de estar carregando um monstro ou um gigante. Mesmo assim, colheu, comeu e descansou, colheu, comeu e descansou.
Um dia, as dores da fome deram lugar a novas estocadas de dores, mais agudas. Sozinha e sem ajuda, Leto deu à luz uma menina, a bebê mais linda que já existiu. Leto arfou o nome ÁRTEMIS para ela. Forte, dotada de uma espantosa rapidez e de força flexível, a menina recém-nascida já se viu encarregada de um trabalho imediato e milagroso nesse seu primeiro dia de vida. Foi então que Leto percebeu por que sua gravidez tinha sido tão difícil e tão pesada – havia outra criança dentro dela, e esse gêmeo mais novo estava atravessado no canal vaginal, provocando agonias terríveis. Ártemis mostrou ter o senso instintivo de como seria a forma mais fácil de parir um bebê e assistiu ao nascimento de um glorioso irmão gêmeo.
Mãe e filha gritaram em alegre surpresa quando o menino deu seus primeiros vagidos. Pois o cabelo dele não era negro como o de sua irmã e o de sua mãe, era louro – herdado de sua avó materna, a brilhante Febe. Leto deu à criança o nome de APOLO. Algumas vezes, ele era chamado de “Apolo Délio”, em honra ao seu local de nascimento, ou “Apolo Febo”, em deferência à sua avó Titânide e à sua própria beleza radiante, dourada, porque Febe significa “a brilhante”.
Ártemis
Zeus amava Ártemis quase tanto quando amava Atena, e se esforçou muito para protegê-la da fúria de Hera, que não aguentava olhar para mais uma criança filha de adultério, especialmente uma que ela altivamente caracterizava como moleca espevitada e uma vergonha para a dignidade da divindade feminina.
Uma tarde, quando Ártemis era ainda bem pequena, Zeus a encontrou brincando de catar e soltar camundongos e sapos na vegetação rasteira na base do monte Olimpo. Zeus sentou-se numa pedra ao lado dela e a botou no colo.
Ela ficou puxando a barba dele durante algum tempo antes de perguntar:
— Pai, você me ama?
— Ártemis, que pergunta! Você sabe que sim. Você sabe que a amo de todo o meu coração.
Quando se é filha de um pai infiel, infame, é possível conseguir que ele concorde com quase tudo. Ártemis agora enrolava Zeus do mesmo modo como enrolava os pelos de sua barba.
— Você me ama o bastante para me conceder um desejo?
— Claro, querida.
— Hum. Pensando bem, isso não é nada. Você concede desejos às menores e mais insignificantes ninfas e duendes das águas. Você me concederia vários desejos?
Zeus gemeu por dentro. O mundo inteiro parecia acreditar que ser o todo-poderoso, sentado no trono no Olimpo e comandando céus e terra era a tarefa mais fácil que havia. O que sabiam sobre culpa paterna, rivalidade entre irmãos, lutas por poder e esposas ciumentas? Agradando um membro da família, ele enraivecia outro.
— Vários desejos? Caramba! Você certamente tem tudo o que uma garota pode querer. É imortal e, assim que alcançar seu momento de maior beleza, jamais envelhecerá. É forte, inteligente, rápida e… Ui! — Essa última exclamação era em reação a um pelo que tinha sido arrancado de seu queixo com alguma violência.
— Não são desejos difíceis, papai. Apenas algumas coisinhas.
— Muito bem, diga.
— Não quero jamais ter um namorado ou marido, ou que algum homem me toque, você sabe, daquele jeito…
— Sim, sim… er… compreendo totalmente.
Essa pode ter sido a primeira vez em que Zeus enrubesceu.
— Além disso, quero um monte de nomes diferentes, como o meu irmão. São chamados “denominações”. E também um arco, pois noto que ele tem uma coleção, mas eu não, porque sou uma menina, o que é inteiramente injusto. Afinal de contas, sou a gêmea mais velha. Hefesto pode me fazer um arco realmente especial como presente de nascimento, exatamente como fez para Apolo, um arco de prata com setas de prata, por favor. E quero uma túnica na altura do joelho para caçar, porque vestidos longos são estúpidos e pouco práticos. Não quero domínio sobre cidades ou metrópoles, mas quero comandar encostas de montanhas e florestas. E quero cervos. Gosto de cervos. E cães, cães de caça, de qualquer modo, não de colo, que não servem para nada. E, se você for muito legal, eu gostaria de um coro de meninas para cantar meus louvores em templos, e de um grupo de ninfas para passearem com os cachorros e cuidarem de mim e me protegerem contra homens.
— Só isso? — Zeus estava quase zonzo com aquela declamação.
— Acho que sim. Ah, e eu gostaria de ter o poder de tornar o parto mais fácil para as mulheres. Vi como é doloroso. Inclusive, é, na verdade, muito francamente, nojento, e eu quero ajudar a torná-lo melhor.
— Meu deus. Pelo menos você não está pedindo a lua, não é?
— Ah, boa ideia! A lua. Sim, adoraria a lua, por favor. É só isso. Nunca mais vou pedir mais nada, jamais.
Zeus concedeu cada desejo. Como é que ele podia negar?
Ártemis se tornou devidamente a deusa da caça e da castidade, dos ignorantes e dos indômitos, dos cães de caça e das corças, das parteiras e da lua. Rainha dos arqueiros e caçadora, cresceu valorizando sua independência e seu celibato acima de tudo. A gentileza com que ela expressava sua simpatia pelas mulheres em trabalho de parto era contraposta pela ferocidade com que perseguia a caça e punia qualquer homem que pretendesse se aproximar demais. Temida, admirada e adorada pelo mundo antigo inteiro, era algumas vezes conhecida, em honra à encosta em que tinha nascido, como CÍNTIA. Os romanos a chamavam de DIANA. Sua árvore especial era o cipreste. Por mais que Atena fosse a deusa das coisas cultivadas, feitas, construídas e elaboradas, Ártemis – em seu domínio sobre o natural, o instintivo e o selvagem – era o oposto dela. No entanto, compartilhavam – juntamente com Héstia – a paixão pela própria castidade.
Apolo
Se Ártemis era prata, seu irmão gêmeo, Apolo, era ouro. Se Ártemis era a lua, ele era o sol. Suas feições radiantes cativavam todos os que as contemplavam. Suas proporções e seus contornos permanecem até hoje o ideal de determinado tipo de beleza masculina. Digo “determinado tipo” porque Apolo era impressionante não apenas por sua pele clara, mas por sua face imberbe e seu peito sem pelos, uma raridade entre os gregos e seus deuses. Como Jacó na Bíblia, ele era um homem suave, mas nem por isso menos macho.
Apolo era o senhor da matemática, do raciocínio e da lógica. Seus reinos eram a poesia e a medicina, o conhecimento, a retórica e o esclarecimento. Em essência, era o deus da harmonia. A ideia de que o mundo material básico e seus objetos comuns têm propriedades divinas e podem encontrar ressonância nos céus era apolínea, fosse ela expressa nas propriedades mágicas dos quadrados, círculos e esferas, fosse na modulação e no ritmo perfeitos de uma voz, ou numa cadeia de raciocínio. Mesmo o significado e o próprio destino podem ser lidos nas coisas comuns, se você tiver o dom. Apolo o tinha em abundância, aliado à incapacidade de mentir. Isso fazia dele uma escolha natural para se encarregar de oráculos e também de profecias. A píton era sagrada para ele, é claro, e também o louro. Seus animais particulares eram o golfinho e o corvo branco.
Seria um erro tomar a beleza dourada de Apolo como sinal de fraqueza. Ele era um arqueiro supremo e, quando necessário, um guerreiro tão feroz e impetuoso quanto qualquer outro no Olimpo: como todos os seus parentes próximos, ele era capaz de crueldade, mesquinharia, ciúme e despeito. Foi venerado pelos romanos com seu nome grego, sem qualquer alteração, o que era pouco comum. Apolo era Apolo em qualquer lugar do mundo antigo.
A cólera de Hera
Os gêmeos recém-nascidos, Apolo e Ártemis, viram-se o foco da fúria contínua da Rainha do Céu na ilha flutuante de seu nascimento. Hera tinha feito o possível para evitar o nascimento desses lembretes vivos da infidelidade de Zeus, e a raiva e frustração por seu fracasso não conheciam limites. Então, ela tentou outra vez.
Quando os gêmeos tinham só alguns dias, ela enviou a serpente Píton para comê-los. Você se lembra da pedra de magnetita que Reia, grávida, tinha feito Cronos engolir erroneamente em vez do bebê Zeus? A que ele mais tarde vomitou e que Zeus atirou de Ótris? Bem, ela caiu num lugar chamado Pytho, nas encostas do monte Parnaso. Alojada firme na terra, ela, em tempo, se tornaria o ônfalo, ou pedra-umbigo da Grécia – o umbigo helênico, seu centro espiritual e ponto de origem. Do ponto exato onde ela caiu, sob o comando de Gaia, para quem esse lugar já era sagrado, emergiu do solo uma imensa serpente que parecia um dragão, para servir de guardiã da pedra. Adotando o nome de seu local de nascimento, foi chamada de Píton, do mesmo modo que diversas serpentes em sua homenagem desde então.
Em sua fúria, Hera enviou Píton à ilha de Delos para matar Leto e seus filhos. Zeus se arriscou a irritar Hera ainda mais ao sussurrar secretamente essa notícia para o vento, que a passou para o menino Apolo, o qual, por sua vez, mandou uma mensagem desesperada para Hefesto, implorando pelo melhor arco e flecha que seu meio-irmão pudesse fabricar. Hefesto labutou na forja durante sete dias e sete noites, ao fim dos quais uma arma incomparavelmente linda e poderosa e um conjunto de flechas de ouro foram despachados para Delos, bem a tempo de Apolo recebê-los, esconder-se atrás das dunas e esperar pela chegada da grande serpente. No momento em que a Píton emergiu do mar e deslizou pela areia, Apolo saiu de seu esconderijo e atirou no olho dela com uma seta. Ali mesmo, na praia, ele fatiou o corpo morto em pedaços e lançou um grande grito de triunfo para o céu.
Você pode achar que Apolo tinha todo o direito de proteger sua irmã, sua mãe e a si próprio de uma criatura tão letal, mas a Píton era ctônica – surgida da terra –, o que a tornava filha de Gaia, e, como tal, estava sob proteção divina. Zeus sabia que tinha de punir Apolo por ter matado a serpente, ou perderia toda a autoridade.
Na verdade, a punição que ele escolheu para Apolo não foi assim tão severa. Zeus exilou o jovem deus durante oito anos no local de nascimento da cobra, ao pé do monte Parnaso, para que ele expiasse seu crime. Além de substituir a serpente-monstro Píton como guardiã do ônfalo, Apolo ficou encarregado de organizar ali um torneio atlético regular. Os Jogos Píticos foram devidamente organizados a cada quatro anos, dois antes e dois após os Olímpicos.
Além disso, Apolo também estabeleceu em Pytho (cujo nome ele mudou para Delfos) um oráculo onde qualquer pessoa podia chegar e perguntar ao deus ou a sua sacerdotisa designada (conhecida muitas vezes como SIBILA ou PÍTIA) questões a respeito do futuro. Num transe de êxtase profético, a sacerdotisa se sentava fora das vistas do consulente, em cima de uma fenda no chão que se canalizava até o ventre da própria terra, e clamava seus prognósticos ambíguos para a câmara acima, onde o ansioso consulente esperava pela proclamação. Desse modo, parecia que Apolo e a Sibila obtinham seus poderes oraculares, em parte, da própria Gaia, a avó de Apolo. Dizia-se que vapores subiam da terra, e muitos os consideravam como sendo, na realidade, a respiração de Gaia. Ali, borbulha a fonte Castália, cujas águas dizem-se inspirar poesia naqueles que a bebem ou escutam seus sussurros.
Desse modo, o Apolo Délio passou a ser também o Apolo de Delfos. As pessoas ainda vão até Delfos para consultá-lo sobre o futuro. Eu mesmo já fui. Apolo nunca mente, mas tampouco dá uma resposta direta, achando divertido responder com outra pergunta ou com uma adivinhação tão obscura que só faz sentido quando já é tarde demais para se tomar alguma providência. Para expiar seu grave assalto ao modo inerente das coisas e permitir que a Píton morta durma seu sono eterno da morte nos braços de sua mãe Gaia, Zeus finalmente fixou o lugar de descanso da serpente, a ilha de Delos, na terra. Embora ela não flutue mais livremente, aqueles que visitam a ilha podem testemunhar que ainda hoje é difícil ir até lá de barco à vela, já que ela é assediada por violentos ventos etésios e traiçoeiras correntes meltemi. Qualquer um que chegue até lá vai, com toda a probabilidade, sofrer dos piores enjoos. É como se Hera não tivesse perdoado Delos pelo papel que ela desempenhou no nascimento dos LETOIDES, os gloriosos gêmeos Ártemis e Apolo.
Maia Maia
Quantos olímpicos há agora? Vamos fazer uma contagem rápida.
Zeus sentado no trono, com Hera a seu lado, são dois. Em torno deles estavam arrumadas Héstia, Poseidon (que gostava de vir à terra firme e ficar de olho em Zeus), Deméter, Afrodite, Hefesto, Ares, Atena, Ártemis e Apolo – são onze. Hades não conta porque passava o tempo todo no mundo inferior e não tinha interesse em tomar assento no dodecateon. Onze. Só falta mais um para o Olimpo chegar ao seu quórum de doze.
A poeira mal havia baixado e os gritos de recriminação pelo colapso de Píton mal tinham se amainado para caras feias e olhares raivosos, quando Zeus viu claramente diante de si o caminho para seu dever. Ele tinha de gerar o décimo segundo deus, o derradeiro. Ou, para dizer de outro modo, seu olhar lúbrico caiu sobre outra imortal apetitosa.
Durante a Titanomaquia, Atlas, o defensor mais feroz dos Titãs, tinha gerado sete filhas com a Oceânide PLEIONE. Em homenagem a ela, as Sete Irmãs eram conhecidas como as PLÊIADES, embora algumas vezes, por respeito ao pai, também se refiram a elas como as ATLÂNTIDAS.
A mais velha e mais bonita dessas irmãs de olhos escuros era chamada Maia. Ela vivia como uma oréade simples e feliz nas agradáveis encostas coríntias do monte Cilene, na Arcádia. Feliz, quer dizer, até a noite em que o deus Zeus apareceu para ela e a engravidou. Muito secretamente – porque as notícias da atitude de Hera para com os filhos bastardos de Zeus tinham vazado e instilado medo em todas as meninas bonitas na Grécia e além –, Maia, no tempo devido, deu à luz, em uma caverna remota, escondida, um menino saudável, que batizou de HERMES.
A criança prodígio
Hermes mostrou ser o bebê mais extraordinariamente petulante e precoce que jamais respirou. Um quarto de hora depois de nascido, ele engatinhou de um lado da gruta para o outro, fazendo, durante o trajeto, comentários para sua mãe assustada. Cinco minutos mais tarde, exigiu uma luz para poder examinar melhor as paredes da caverna. Como ninguém lhe deu luz alguma, ele bateu duas pedras sobre fiapos de palha e acendeu uma chama. Aquilo nunca tinha sido feito antes. Agora de pé (e não tinha nem meia hora de vida), essa criança notável anunciou que ia dar um passeio.
— As paredes apertadas desta côncavidade cavernosa criam em mim uma incômoda claustrofobia crônica — disse, inventando tanto a aliteração como a família de palavras “-fobia” enquanto falava. — Já a vejo num instante. Continue com sua fiação ou tricô ou seja lá o que isso for, boa mãe.
Enquanto passeava pelas encostas do monte Cilene, esse singular e sensacional prodígio começou a cantarolar para si mesmo. Seu cantarolar se transformou num canto afinado, que os rouxinóis nas florestas em seu redor começaram imediatamente a copiar e vêm tentando recapturar desde então.
Depois de ter percorrido ele não sabia que distância, viu-se num campo onde teve a maravilhosa visão de um rebanho de gado, de um branco puro, cortando a grama e mugindo suavemente à luz da lua.
— Oh! — Ele respirou extasiado. — Que lindos mu-mus. — Apesar de sua precocidade, ele não tinha superado a fala de bebê.
Hermes olhou para as vacas, e as vacas olharam para Hermes.
— Venham cá — mandou ele.
As vacas olharam um pouco para ele, baixaram a cabeça e continuaram a pastar.
— Hum. Então, é assim?
Hermes pensou rápido e juntou longas folhas de capim, que trançou numa versão bovina de uma ferradura, amarrando uma em cada pata de cada vaca. Em torno de seus próprios pezinhos rechonchudos, ele envolveu folhas de louro. Finalmente, quebrou um galho de um salgueiro jovem e o descascou até virar um longo chicote com o qual, facilmente e com perícia, fez cócegas e espetou as vacas até elas formarem um rebanho compacto e manobrável. Como precaução extra, ele as guiou, subindo a ladeira de costas, de volta à boca da caverna, onde sua mãe atônita e alarmada estava de pé, preocupada, desde o instante em que ele saíra tão calmamente.
Maia não tinha experiência como mãe, mas tinha a certeza de que o estilo assombroso e o comportamento excêntrico de seu filho não eram comuns – mesmo entre deuses. Sabia que Apolo tinha derrotado Píton quando ainda era bebê, e Atena, é claro, tinha nascido completamente armada, mas criar fogo de pedras? Pastorear gado? E o que era aquilo que ele estava balançando na frente de seus olhos – uma tartaruga? Será que ela estava sonhando?
— Agora, mãe — disse Hermes. — Ouça. Tive uma ideia. Eu gostaria que você virasse a tartaruga, tirasse a carne com uma colher e cozinhasse. Imagino que vá dar uma sopa deliciosa. Eu aconselharia acrescentar bastante alho silvestre, se fosse você, e talvez que tal um pouquinho de funcho? E, então, haverá carne para o prato principal, que eu vou providenciar agora mesmo. Vou só pegar essa faca emprestada e estarei com você outra vez num piscar de olhos.
Com essas palavras, ele desapareceu nos fundos da caverna, e nas pedras ressoaram os gritos aterradores de uma vaca tendo a garganta cortada por um bebê de punhos rechonchudos.
Depois do que Maia confessou ter sido uma ceia verdadeiramente deliciosa, ela reuniu a coragem para perguntar ao filho o que ele faria agora, porque ele estava pendurando fieiras de tripa de vaca em frente ao fogo. Enquanto esperava que essas tiras fedorentas secassem, ele se ocupava furando pequenos orifícios nas beiradas da casca da tartaruga.
— Tive uma ideia — foi tudo o que ele disse a ela.
Apolo decifra os sinais
Hermes pode ou não ter sabido, mas, em sua primeira noite na terra, ele viajou por uma boa distância. Desde o lugar em que nasceu, no monte Cilene, para o norte, por entre os campos da Tessália até Pieria, onde ele encontrou e arrebanhou o gado. E, depois, caminhou tudo de volta. Em passos de bebê, é uma distância e tanto.
O que Hermes certamente não podia ter sabido é que o gado pertencia a Apolo, que tinha grande apreço por ele. Quando as notícias de seu desaparecimento chegaram ao deus, ele se mandou, furioso, para Pieria, para seguir o que ele supunha ser uma maldosa gangue de ladrões até seu covil. Dríades ou faunos selvagens que tinham ido pelo mau caminho, imaginou. Eles se arrependeriam de tirar propriedade do deus das flechas. Deitou-se no campo do gado para examinar o solo com toda a minúcia de um rastreador experimentado. Para sua surpresa, o bandido não tinha deixado nenhum traço útil. Tudo o que ele conseguia ver eram marcas de coisas arrastadas, espirais e remoinhos sem sentido e – a não ser que ele estivesse enlouquecendo – uma minúscula impressão de um pezinho de bebê. Quaisquer impressões que pudessem ter sido formadas pelos cascos das vacas pareciam se dirigir, não para fora do campo, mas na direção dele.
Seja lá quem tivesse roubado o gado, estava gozando com a cara de Apolo. Era claro que se tratava de ladrões com prática e experiência. Sua irmã Ártemis era a caçadora mais hábil que ele conhecia: será que ela ousaria? Talvez tivesse bolado algum jeito esperto de esconder seus rastros. Ares não tinha a inteligência. Poseidon não estaria interessado. Hefesto? Pouco provável. Quem, então?
Ele notou um tordo alisando as penas com o bico num galho nas proximidades e, num gesto suave, puxou o arco e derrubou a criatura. O deus dos oráculos e das adivinhações abriu o papo do passarinho e olhou para dentro, para ler as entranhas.
Pela coloração do intestino baixo, a dobra no rim direito e a disposição pouco natural do timo, ficou imediatamente claro que o gado estava em algum lugar na Arcádia, perto de Corinto. E o que dizia aquele coágulo de sangue no fígado? Monte Cilene. E o que mais? Ah! Era a impressão do pé de um bebê, afinal de contas.
A testa de Apolo, em geral lisa, se franziu numa careta, seus olhos azuis reluziram e seus lábios rosados se comprimiram em uma linha ameaçadora.
Ele teria sua vingança.
Meios-irmãos
Quando Apolo chegou ao sopé do monte Cilene, seu humor já estava por um fio, quase se rompendo. O mundo todo sabia que suas vacas eram sagradas para ele. Era evidente que elas eram de uma raça rara e valiosa. Quem ousaria?
Uma hamadríade, pendurada nos galhos de seu freixo, não sabia de nada, mas o informou de que, mais acima, um bando de ninfas tinha se reunido em torno da boca da caverna de Maia. Quem sabe ele não encontraria sua resposta lá? Ela mesma iria, se pudesse largar sua árvore.
Ao chegar ao topo da montanha, Apolo viu que a população inteira de Cilene estava congregada na abertura da caverna. Ao chegar mais perto, percebeu que um som saia lá de dentro – um som como ele nunca escutara antes. Era como se toda a doçura, o amor, a perfeição e tudo o que era lindo tivesse vindo à vida e estivesse suavemente passando por seus ouvidos, chegando até sua alma. Assim como o aroma da ambrosia atraía um deus para a mesa e o fazia suspirar em gloriosa antecipação, exatamente como a visão de uma ninfa bonita fazia com que o ichor quente do deus cantasse e borbulhasse em suas veias até que ele sentisse que ia estourar, como o toque quente de pele contra pele o empolgava até suas profundezas – dessa mesma forma, esses ruídos invisíveis seduziram e enfeitiçaram o deus até ele achar que podia enlouquecer de alegria e desejo. Ah, se ele conseguisse arrancá-los do ar e absorvê-los no peito, se pudesse…
O som mágico parou subitamente e o encanto se rompeu.
A multidão de náiades e dríades e outros espíritos que tinham se amontoado em torno da entrada da caverna agora se dispersava, sacudindo a cabeça, maravilhada, enquanto ia embora, como se saindo de um transe. Abrindo caminho por entre as criaturas, Apolo viu que, ao lado da boca da caverna, em pilhas de pedras, estavam à mostra dois vastos lados de carne, fatiados em bifes maravilhosos. A ofensa subiu outra vez à superfície.
— Você me paga! — rugiu ele ao entrar correndo. — Agora, você vai…
— Shh!
A prima de Apolo, a oréade Maia, estava sentada numa cadeira de palha, costurando. Ela pôs um dedo nos lábios e inclinou a cabeça na direção de um berço ao lado do fogo, no qual um bebê de faces rosadas gorgolejava em seu sono.
Apolo não se intimidou.
— Essa criança demoníaca roubou o meu gado!
— Está maluco? — disse Maia. — Meu anjinho mal tem um dia de idade.
— Anjinho, uma ova! Sei ler as entranhas de um tordo. Além do mais, estou ouvindo os bichos pisoteando e mugindo lá no fundo. Conheço o mugido delas em qualquer lugar. Esse bebê é um ladrão e eu exijo…
— Você exige o quê? — Hermes se sentou e agora estava encarando Apolo com um olhar dominador. — Será que um garoto não pode tirar uma soneca por aqui? Eu tive uma noite muito atribulada trazendo gado, e a última coisa de que preciso é…
— Você admite! — gritou Apolo, avançando para ele. — Por Zeus, vou estrangulá-lo, seu…
Mas, no momento em que ele levantou Hermes, pronto para fazer não se sabe o que com ele, um estranho objeto feito de madeira e casca de tartaruga caiu do berço. Ao cair, fez um barulho que instantaneamente chamou de volta o som mágico que tinha de tal modo trespassado Apolo quando ele estava do lado de fora da caverna.
Ele jogou Hermes de volta no berço e pegou o objeto. Duas barras finas de madeira tinham sido atadas à casca da tartaruga, e fios de tripa de gado estavam bem esticados entre elas. Apolo pegou uma corda com o polegar e, outra vez, o som maravilhoso chegou até ele.
— Como…?
— Ah, essa bobagem? — disse Hermes erguendo as sobrancelhas, surpreso. — É só uma coisinha que eu montei na noite passada. Eu a chamo de “lira”. É possível, no entanto, tirar efeitos interessantes dela. Se pinçá-la do jeito certo. Ou você pode dedilhar, se quiser. Aperta umas duas cordas e… Aqui, me dá aqui que eu lhe mostro.
Logo, eles estavam beliscando, pinçando, batendo, tangendo, dedilhando, arranhando e permutando acordes novos como adolescentes excitados. Hermes estava no meio da demonstração do princípio das harmonias naturais quando Apolo, fascinado pelos sentimentos provocados nele por esse extraordinário dispositivo, caiu em si.
— Sim, tudo bem — disse ele —, mas e a droga do meu gado?
Hermes olhou para ele de maneira interrogativa.
— Você deve ser, deixa eu ver… não diga… Apolo, certo?
Não ser reconhecido era uma experiência nova para Apolo, da qual ele não gostou muito. Um bebê de um dia falando com ele em tom superior era outra coisa que entrou em sua lista de experiências menos agradáveis. Ele estava prestes a esmagar aquele espirro de grilo com um comentário cortante e, possivelmente, um soco no queixo, quando se viu frente a uma mãozinha cheia de covinhas estendida.
— Toca aqui, Pol. Prazer em conhecer. Hermes, último acréscimo ao rol divino. Sou seu meio-irmão, acho! A mãe Maia aqui repassou comigo toda a árvore da família na noite de ontem. Que bando de malucos nós somos, hein? Hein?
Mais uma sensação nova estava cutucando jocosamente as costelas de Apolo. Ele sentiu que estava perdendo o controle da situação.
— Olha, eu não quero saber quem você é, não pode sair por aí roubando meu gado e esperando não pagar por isso.
— Ah, eu vou pagar, não se preocupe. Mas eu tinha de pegá-los. Intestinos da melhor qualidade. Se eu ia fazer uma lira para meu amado irmão, eu precisava das melhores cordas.
Apolo olhou de Hermes para a lira e da lira para Hermes.
— Você quer dizer…?
Hermes assentiu.
— Com o meu amor. Suas são a lira e a arte que a acompanha. Afinal, você já é o deus dos números, do raciocínio, da lógica e da harmonia. A música se encaixa perfeitamente nesse portfólio, não acha?
— Não sei o que dizer.
— Você pode dizer: “Obrigado, Hermes” e “Por favor, fique com o gado, meu irmão”.
— Obrigado, Hermes! E, por favor, fique com o gado.
— Bondade sua, meu velho, mas, na verdade, eu só preciso de dois. Você pode levar o resto.
Apolo, aturdido, apertou a testa suada com uma mão.
— E por que você só precisa de dois?
Hermes pulou para o chão.
— Maia me disse que os deuses amam ser adorados, entende, e o quanto sacrifícios animais significam para eles. Então, abati duas das vacas e ofereci onze fatias de carne queimando de uma delas ao Olimpo. Mamãe e eu compartilhamos o décimo segundo bife ontem à noite. Ainda sobrou um pouco, se você gostar dele frio. Fica muito bom com uma pasta de sementes de mostarda que eu desenvolvi.
— Obrigado, não — disse Apolo. — Bem pensado, de sua parte, enviar fumaça para os deuses dessa maneira — acrescentou. Apolo adorava uma oferta votiva tanto quanto qualquer outro deus. — Muito adequado.
— Bem — disse Hermes —, vamos ver se funcionou. — Sem qualquer aviso, ele pulou nos braços de Apolo e o agarrou pelos ombros.
A mente, o corpo e as maneiras rápidas como um relâmpago daquele bebê notável estavam fazendo com que Apolo ficasse tonto.
— Ver se o quê funcionou?
— Meus planos para ficar nas boas graças do nosso pai. Leve-me ao Olimpo e me apresente a todos — disse Hermes. — Aquele décimo segundo trono vazio tem meu nome nele.
O décimo segundo deus
Em Hermes, tudo era rápido. Sua mente, sua inteligência, seus impulsos e seus reflexos. Os deuses do Olimpo, já lisonjeados com toda aquela bela fumaça que subira a seus narizes na noite anterior vinda do monte Cilene, ficaram fascinados com o recém-chegado. Até Hera apresentou uma face para ser beijada e declarou que a criança era encantadora. Antes que alguém notasse, ele já estava no colo de Zeus, puxando a barba dele. Zeus riu e os deuses todos riram com ele.
Quais seriam os deveres desse deus? A rapidez de sua mente e de seus pés sugeriram uma resposta imediata – ele deveria se tornar o mensageiro dos deuses. Para que Hermes fosse ainda mais rápido, Hefesto executou o que se tornaria para sempre a assinatura do novo deus, a talária – um par de sandálias com asas que permitia que ele zunisse de um lugar para outro mais rápido do que uma águia. Hermes se deleitou com elas de um modo tão genuíno, e apertou Hefesto a si com tanto calor e afeição grata, que o deus do fogo e das forjas imediatamente claudicou de volta para sua oficina e, depois de um dia e uma noite de trabalho furioso, voltou com um elmo alado com uma coroa baixa e uma beirada flexível para combinar com as talárias. Isso emprestou a Hermes um toque de grandeza e mostrou ao mundo que esse jovem petulante e belo representava a terrível majestade dos deuses. Num impulso extra, Hefesto o presenteou com um bastão de prata encimado com asas e enlaçado com duas serpentes.
As histórias das explorações de Hermes divertiram muito Zeus, naquele momento e dali em diante. A astúcia e a duplicidade que ele demonstrara ao roubar o gado de Apolo tornaram Hermes uma escolha natural para ser o deus dos malandros, ladrões, mentirosos, vigaristas, jogadores, traficantes, palhaços, contadores de histórias e esportistas. O contraponto mais grandioso aos mentirosos, palhaços e contadores de histórias foi seu quinhão também na literatura, na poesia, na oratória e no humor. Sua habilidade e sua percepção lhe permitiram ter influência nos campos da ciência e da medicina. Ele se tornou o deus do comércio e dos negócios, dos pastores (é claro) e das viagens e das estradas. Apesar de a música ter sido invenção dele, ele, como prometido, presenteou Apolo com a divina responsabilidade por ela. Apolo simplificou a estrutura da lira substituindo a casca de tartaruga pela elegante estrutura de ouro com a qual associamos o instrumento clássico.
Assim como sugeri que Ártemis e Atena pudessem ser consideradas representações de opostos (selvagem vs. cultivado, impulsivo vs. ponderado etc.), pode-se dizer que a mutabilidade, a rapidez e os impulsos enérgicos do tráfego e do comércio, personificados por Hermes, apresentam uma contraposição exata à serenidade, permanência, ordem e eficiência doméstica centrada de Héstia.
Fora o bastão, o chapéu e as sandálias aladas que Hefesto fabricou para Hermes, seus símbolos incluem a tartaruga, a lira e o galo. Os romanos o chamavam de MERCÚRIO e o veneravam com quase tanto fervor quanto os gregos. Ele tinha a pele lisa como a de seu meio-irmão favorito, Apolo (agora, eles eram melhores amigos), e, como ele, era uma divindade da luz. Sua luz não era dourada como a de Apolo, mas prateada – um prata metálico. Inclusive, o elemento chamado “mercúrio” em sua homenagem é algumas vezes denominado prata viva, e tudo o que é mercurial nos lembra esse deus encantador. Mais tarde, Hermes assumiria sua responsabilidade divina talvez mais importante, mas, por enquanto, vamos sentá-lo no décimo segundo trono e inspecionar a grandeza da Megala Kazania,[72] o grande palco no topo do Monte Olimpo.
Os olímpicos
Dois tronos grandes em frente a dez tronos menores. Cada um é ocupado por um deus ou uma deusa. Zeus estende sua mão esquerda para que Hera a segure.
Megala Kazania, o anfiteatro esculpido nas rochas olímpicas pelos Hecatônquiros durante sua grande batalha com os Titãs, se estende ante os deuses. Um grande aplauso sobe da multidão de imortais reunida para testemunhar essa grande ocasião, o momento supremo de Zeus.
A Rainha do Céu segura a mão dele. Ela está contente. Teve uma conversa com seu marido inconstante. Não haverá novos deuses. Não haverá mais sedução e gravidez de ninfas ou Titânides. O dodecateon está completo e Zeus se voltará agora para o negócio sério de estabelecer seu governo em perpetuidade. Ela, Hera, estará sempre lá para apoiá-lo e orientá-lo, para manter a ordem e o decoro.
Enquanto inspeciona os dez deuses sorridentes dispostos à frente deles, Zeus sente Hera apertar sua mão e compreende o que essa pressão firme significa. Ele saúda a multidão de Titãs perdoados e ninfas histéricas aglomerada abaixo. Ciclopes, Gigantes, Melíades e Oceânides se empurram para ver melhor. As Cárites e as Horas brilham timidamente. Hades, as Erínias e outras criaturas escuras do mundo inferior fazem mesuras. As trezentas mãos dos Hecatônquiros agitam sua feroz lealdade.
Agora, para marcar o início do Reino dos Doze, Héstia desce de seu trono e acende o óleo em uma grande tigela brilhante de cobre batido. Um enorme aplauso ressoa em torno da montanha. Uma águia voa acima. Um trovão ribomba pelo céu.
Héstia volta a seu trono. Zeus a observa alisar calmamente a saia de sua túnica, e transfere seu olhar para os outros, um por um – Poseidon. Deméter. Afrodite. Hefesto. Ares. Atena. Ártemis. Apolo. Hermes. Esses deuses e toda a criação se inclinam à sua frente. Todos os seus inimigos estão espalhados, destroçados, presos ou domesticados. Ele criou um império e um reino como o mundo nunca havia visto. Ele vencera. No entanto, não sente nada.
Zeus olha para cima e, na aresta mais distante da montanha, vê, destacada contra o céu, uma figura cujas vestes balançam ao vento. Seu pai Cronos tinha vindo. A lâmina de sua foice apanha a luz das chamas abaixo enquanto ele a oscila lentamente para a frente e para trás como um pêndulo. Embora nem Zeus consiga enxergar a essa distância e sem iluminação, ele tem certeza de que há uma careta cruel, insultuosa na face descarnada e arruinada de seu pai.
— Acene, Zeus. E, pelo amor de deus, sorria! — O sussurro entre dentes de Hera o faz voltar à realidade. Ao olhar outra vez, a silhueta escura do pai tinha ido embora. Talvez ele tivesse apenas imaginado.
Mais palmas ressoam. Ao ronco do trovão é acrescentado um estrondo da própria terra. Gaia e Urano estão acrescentando seus parabéns. Ou, talvez, seus avisos. Os vivas não param. Tudo o que está vivo o venera e adora. Esse deveria ser o dia mais feliz de sua vida.
Alguma coisa está faltando. Alguma coisa… Ele franze a testa e pensa. De repente, um grande raio sai do céu e atinge o solo, fazendo subir uma lufada violenta de fumaça e poeira queimada.
— Não faça isso, querido — diz Hera.
Mas Zeus não está escutando. Ele teve uma ideia.
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