A Morte de Heitor

As ruínas de Tróia ainda fumegam.

Assim poderia pensar algum desavisado que chegasse àquele lugar desolado, onde algumas finas e esparsas colunas de fumaça sobem aos céus, como esguias e vaporosas serpentes.

Sua imaginação, entretanto, logo sofreria um abalo, pois na verdade elas não são mais o produto dos incêndios que lavraram por todos os cantos no dia fatídico em que a cidade sagrada de Ílion foi finalmente invadida e conspurcada pelo cruel invasor.

Não, muitas e muitas luas se passaram, desde então.

Tróia, agora, não é mais do que um caminho inóspito e pedregoso, podendo-se contar nos dedos um muro ou uma coluna que ainda estejam inteiros. Seu solo está completamente juncado de pedras e tijolos, tornando ainda mais acidentado o terreno.

Sentado sobre uma grande pedra e recostado num pedaço de muro semelhante a um imenso dente quebrado, está um pobre e imundo andarilho. De cabeça baixa, o velho coberto de trapos cozinha qualquer coisa sobre uma minúscula fogueira de alguns poucos gravetos.

Enquanto espera, cavouca o chão com seu bastão, um velho galho de árvore um pouco menos torto e nodoso do que ele próprio. Seus olhos quase fechados, de pregas cerzidas, vasculham algo em meio aos seus pés. De repente, um pequeno brilho se destaca em meio ao pó revolto. O

velho, todo curvado, inclina o corpo para diante e como que ameaça cair de boca no pó. Mas graças aos deuses e seu bastão, tal coisa não acontece. A mão encarquilhada junta do chão um pequeno pedaço de bronze pontiagudo.

— Ora, vejam só… — diz o velho, deliciado. — Uma velha ponta de lança…

Na verdade, a ponta aguda pode ser de uma lança como pode ser de outra coisa qualquer.

Mas neste exato momento a atenção do velhote é distraída pelo ruído de um outro bordão que se aproxima, vindo exatamente em sua direção. Trata-se de outro velho andarilho, vestido com trapos que têm o mesmo corte fresco e arejado do outro. O primeiro tenta avivar as chamas da sua fogueira, mas percebe, finalmente, que os olhos do intruso não têm mais necessidade de luz, eis que são cegos.

O velho maneta estende ao recém-chegado a sua tigela, e os dois entregam-se, então, ao grande momento do dia: paz e sustento sob o manto cálido da noite.

A refeição, a partir daí, se passa em reverente silêncio, até que o velho maneta puxa um assunto trivial — o mais trivial dos assuntos. Então o outro responde; o outro funga; o outro aduz; o outro comenta; o outro tosse; o outro questiona; o outro rezinga; o outro escarra; e chegam assim, sempre voltando no tempo, à conclusão de que — imaginem! — são inimigos mortais.

— Você… um maldito troiano! — diz o maneta, pondo-se em pé.

— Você… um maldito aqueu! — diz o cego, também erguido. O grego é o maneta; o troiano, o cego.

Depois de algum tempo, durante o qual uma hostilidade latente permaneceu pairando entre ambos, até ir desaparecendo aos poucos, o grego finalmente pergunta:

— Então também esteve na grande guerra?

— Sim, era um moleque, ainda — responde o troiano, ainda de má vontade.

— Eu servia no abastecimento — diz o grego, tentando apaziguar.

— Eu limpava as armas e polia as armaduras — diz o troiano, frisando o bigode.

Os dois começam, então, a relembrar os lances da guerra, até que chegam ao ponto em que o grande Pátroclo, companheiro de armas de Aquiles, foi à presença deste para exigir que retornasse ao campo de batalha. Heitor, o comandante audaz dos troianos, havia empurrado os gregos de volta aos seus navios e começado a incendiá-los com suas flamejantes tochas.

— Eu estava na tenda do grande filho de Peleu, quando Pátroclo a adentrou, esbaforido

— diz o grego, pondo imenso orgulho na voz.

— Você… um moleque… assistiu ao diálogo dos dois? — pergunta o troiano, com um tom rabugento de incredulidade.

— Claro! — diz o grego, sentindo-se superior ao inimigo, pois sente que desde alguns instantes uma nova batalha principiara. — Lembro perfeitamente das palavras que Pátroclo disse ao bravo filho de Peleu: “Aquiles, eis que a ruína se aproxima de nossos navios. O terrível Heitor, bebedor do sangue grego, vem devastando tudo o que encontra pela frente e agora pretende incendiar os nossos côncavos navios, de tal forma que pereceremos antes mesmo de podermos tentar uma fuga”. — Mas Aquiles estava pouco disposto a retornar à luta — prosseguiu o grego -, pois ainda estava irado por conta do desentendimento que tivera com Agamenon, chefe das forças gregas — uma ninharia, na verdade, acerca da posse de uma escrava. “Aquiles, dê-me sua armadura”, bradou o bravo Pátroclo, desesperado. “Talvez os troianos, ao me verem vestido com sua armadura, pensem que sou o próprio Aquiles, que retorna à luta, e desistam assim de seu assalto.”

— Então foi assim que se deu a decisão? — pergunta o cego, alisando a barba.

— Exatamente assim, tal como lhe conto — afirma o maneta, das hostes gregas. — Vi, então, com estes meus olhos, Pátroclo nutrido pelos deuses vestir a armadura de Aquiles para ir combater Heitor de feroz catadura. Depois, saiu da tenda e chamou aos berros o condutor do carro de Aquiles, o inigualável Automedonte.

— Automedonte… — exclama o troiano, sem poder conter o espanto.

— Sim, ele mesmo — diz o grego, tomando nova vantagem sobre o troiano. — Quem não viu o cocheiro de Aquiles de rédeas em punho, conduzindo seu carro por entre os guerreiros, no fragor da batalha — oh!, por Marte! -, não viu nada neste mundo.

— Eu vi, sim… — brada o velho cego, agitando com fúria o seu bastão. — Eu também vi muitas e poderosas coisas, maldito violador das mulheres troianas, antes que o justo Júpiter me tirasse a luz dos meus olhos.

O grego silencia, percebendo que cometera uma indelicadeza. E depois de pedir desculpas, retoma o seu discurso.

— Pátroclo subiu ao carro, enquanto Automedonte ajustava as rédeas em Xantos e Bálios, os cavalos imortais que o pai de Aquiles recebera no dia em que se casou com a divina Tétis.

— Xantos e Bálios… os cavalos falantes? — resmunga o pobre cego, derrotado diante de tantas maravilhas que o outro acumula à sua frente.

— Eles mesmos. E assim partiu Pátroclo, vestido com a armadura de Aquiles, para enfrentar Heitor, matador dos gregos. Com que bravura lutou este herói. Quantos troianos abateu com sua lança! Quantos corpos esmagou com as rodas de seu carro!

— … até cair morto sob o golpe fatídico de Heitor! — exclama o troiano cego. — Sei porque estava lá e tudo vi, pois ainda via, então.

O grego entende, a contragosto, que chegou a sua vez de escutar.

— Pobre Pátroclo, se achava que podia medir forças com o valoroso Heitor… -diz o troiano.

— Pátroclo foi abatido por um golpe traiçoeiro vindo de um troiano, pelas costas, depois de Apolo haver lhe retirado as armas.

— Bobagem… — diz o cego, cujos olhos rebrilhavam, como se positivamente enxergasse agora tudo quanto afirmava. — Os dois duelaram e Heitor cravou-lhe com força a lança no flanco, lisa e honestamente. E isto é tudo.

— Mas Homero diz bem outra coisa! — retruca o grego.

— Homero, um cego…? — diz o troiano, sem dar-se conta do véu em seus olhos. — Vi, então, quando os dois bandos lançaram-se sobre o corpo de Pátroclo abatido. Heitor, conseguindo apossar-se da armadura do inimigo, esbravejava, desafiando os gregos. Ao mesmo tempo ouviu-se um grito vindo das falanges gregas, dado por Menelau, esposo da maldita Helena, que tantas mortes causou: “Gregos valorosos, não permitam que o corpo de um bravo aqueu seja vilipendiado!”. — Uma legião de gregos arremessou-se sobre os nossos guerreiros, e muitos, de ambos os lados, tombaram sob a chuva de dardos e pedras. O corpo de Pátroclo, irreconhecível em sua sujidade de pó e de sangue, ainda foi disputado duramente até que os gregos conseguiram levá-lo para suas tendas.

— Ah, os gritos de dor de Aquiles quando o corpo chegou… — atalhou o velho grego, chamando para si o discurso. — Seus urros, levados pelo vento, hão de mais de uma vez ter chegado até os ouvidos de vocês, dentro da cidadela sagrada.

— Gritos… os gritos de dor de Aquiles? — pergunta o troiano.

— Sim, os seus lamentos, terríveis lamentos!

— Oh, sim, claro… Escutei-os perfeitamente.

— A partir deste instante o filho de Tétis decidiu entrar na batalha — diz o grego, como quem relembra um momento inesquecível. — Deixando de lado a sua dor, Aquiles, cuja armadura havia ficado em poder de Heitor — que a arrebatara de Pátroclo morto -, deu um grande grito de raiva e jurou matar o troiano e todas as suas hostes apenas para vingar a morte do leal amigo. Montado no carro — ainda guiado por Automedonte, que conseguira fugir à sanha de Heitor -, Aquiles estava pronto para dar início à sua vingança quando Xantos, um dos cavalos falantes, lhe profetizou da seguinte maneira…

— Xantos… Você escutou mesmo as palavras lhe saírem da boca?

— Claro! Ele disse, então: “Nós dois, eu e Bálios, correremos com a velocidade do vento, ó Aquiles poderoso, mas quanto a você, é preciso que saiba que, mesmo que não seja ainda desta vez, será morto, mais adiante, por um dardo disparado pelo braço de um homem e guiado pela vontade de um deus.” Aquiles — prossegue o grego — lamentou sua sorte, mas nem por isso deixou de seguir o que lhe prescreviam os fados, pois sentia que também seria sua a glória de poder antes matar Heitor, o mais valoroso e cruel dos troianos. “Adiante, cavalos, pois falais de mais e correis de menos!”, bradou Aquiles, açoitando os animais. O filho de Peleu chegou com seu carro numa nuvem de poeira. Quando estacionou diante das hostes inimigas, Bóreas de grande fôlego deu um forte assopro e a nuvem de poeira desvaneceu-se ao redor dele e de seu rosto, fazendo com que sua figura surgisse inteira, terrível e ameaçadora! Automedonte agitou as rédeas e Aquiles, de espada em punho, começou, então, a operar um verdadeiro massacre nas hostes troianas. Graças aos deuses, eu presenciei tudo isso!

— Eu também, pois estava do outro lado! — interrompeu o cego troiano. -Meus olhos juvenis viram perfeitamente como se deu a briga. Sim, ele era verdadeiramente terrível, e embora tenha havido uma brava resistência por parte dos nossos, devo admitir, contudo, que a fúria de Aquiles sobrepujou toda valentia que se abrigava nos peitos troianos…

O velho cego parecia relutante em fazer esta confissão, mas assim fora, de fato. O próprio grego silenciou e, ainda que orgulhoso — diga-se isto em sua honra, jamais tripudiou companheiro vencido; ele sabia que os homens de Tróia também haviam se portado bravamente, e por várias vezes haviam estado a um passo de alcançar a vitória diante da frota grega estacionada na praia.

— Vi-me, então, metido numa louca correria em direção às portas Céias -disse o cego de Tróia -, levando atrás o enfurecido Aquiles. Sua armadura refulgia com o reflexo escarlate do sangue aspergido sobre ela, e seu rosto era o de um perfeito demônio. Pequeno como eu era, corria ao lado dos guerreiros em fuga, sob uma nuvem de pó, enquanto escutava o ruído ensurdecedor dos escudos e grevas troianas chocando-se ao meu redor. Mas lá estavam, finalmente, as portas escancaradas da muralha. Aquiles teve sua atenção distraída por Apolo –

glória a ele! — e todos os nossos puderam adentrar, em segurança, a cidadela.

— Todos…? — pergunta o grego.

— Todos menos Heitor… — corrige o troiano. — Eu estava ao alto das muralhas, próximo do rei e da rainha troianos; vi perfeitamente quando o pavor se desenhou no rosto de Príamo e sua esposa Hécuba ao verem o filho postado em frente à muralha, de lança enristada, pronto para enfrentar o terrível — e, àquela altura, invencível — Aquiles dos pés ligeiros.

— E então começou a perseguição — disse o grego. — Júpiter instalou o pavor na alma de Heitor, que pôs-se a correr, fugindo de Aquiles. Quem haveria de dizer…

— Não foi fuga, foi uma retirada… estratégica — balbuciou o cego, nervoso.

— Que seja! — disse o grego, eufórico com a lembrança. — Três voltas! Sim, três voltas inteiras deram ao redor da muralha: um forte correndo adiante, e outro, ainda mais forte, em seu encalço.

—… até que Heitor, abandonado pelos deuses, parou para enfrentar o inimigo — disse o troiano, abatido. — O suor gelou as frontes de todos os troianos que assistiam àquele terrível enfrentamento. Ouvimos perfeitamente quando o bravo Heitor sugeriu que, qualquer que fosse o resultado do embate, o corpo do vencido deveria ser entregue aos seus familiares, evitando-se o vilipendio do cadáver.

— Disse isto porque sabia que ia morrer e temia a cólera vingativa de Aquiles — disse o grego.

— Não, os deuses ainda não haviam decretado quem seria o vencedor -exclamou o cego, irado. — Mas depois ficou evidente que os deuses tomaram, afinal, o partido inequívoco de Aquiles. As lanças que Heitor lançou desviaram-se todas, como se a mão de Minerva ali estivesse para apará-las, uma a uma. De súbito, então, Aquiles ergueu a sua lança invencível, a lança de sólido freixo que o centauro Quíron forjara para seu pai, Peleu, e que somente ele, Aquiles, sabia manejar. E, divisando uma fenda na armadura de Heitor (na verdade, a sua própria armadura, que o troiano tomara anteriormente a Pátroclo), enterrou a ponta aguçada bem no pescoço do herói.

Um rugido partiu de sua garganta e Heitor tombou. Aquiles, filho de Peleu, vingara finalmente a morte de seu amigo Pátroclo.

— O vilão cruel! — gritou o cego troiano. — E precisava ter feito o que fez em seguida?

— A ira habitava a alma de Aquiles — disse o grego maneta.

— Foi com infinito horror que todos nós, do alto das muralhas, vimos o pérfido Aquiles perfurar os tendões de Heitor morto e, após prender seus pés ao carro, arrastar o corpo do maior dos troianos diante das portas de Tróia — disse o cego, com os olhos marejados de água.

— Foi uma demasia, admito — diz o grego, penalizado. — Mas estávamos numa guerra, e nestas circunstâncias os excessos são inevitáveis.

A noite já caíra sobre os dois mendigos, que discutiam, sob as estrelas, feitos gloriosos de dias antigos. A pequena fogueira ainda ardia sob seus pés, e era para ela que o grego voltava seu olhar, invariavelmente, para enxergar de novo tudo aquilo quanto afirmara ter visto. Quanto ao cego troiano, tinha uma grande tela branca dentro de si para projetar todos os lances do tremendo drama que se discutia.

— Então, naquela mesma noite, Príamo, pai de Heitor, domador de cavalos, recebeu a visita de uma deusa: era íris, mensageira de Júpiter. “Eis que o pai dos deuses apiedou-se da dor sua e de Hécuba, sua esposa”, disse a alada divindade. “Esta noite irá até o acampamento dos aqueus com uma carroça repleta de vistosos presentes, para que Aquiles, abrandado em sua cólera, devolva o corpo de Heitor, e você possa assim dar a seu filho as honras fúnebres devidas.”

— Você viu, mesmo, a íris de asas variegadas?

— Com estes dois olhos — disse o cego, apontando as órbitas inquietas. -Partimos, então, durante a noite…

— Partimos?

— Sim, eu fui junto com Príamo, rei troiano, para conduzir as mulas.

— Não, esta é demais! — disse o grego, surpreendido pela audácia do companheiro.

— Saímos sob a escuridão da noite — disse o troiano, retomando o seu relato. — Não havia estrelas no céu, e nosso caminho era iluminado apenas pelos relâmpagos saídos das mãos do deus dos trovões. Depois de atravessarmos um longo trecho, paramos eu, Príamo e mais o conduto de carroça, para dar água às mulas. Ao lado do córrego estava postado um jovem: era Mercúrio, mensageiro que Júpiter enviara para facilitar a entrada no acampamento aqueu.

Seguimos todos juntos, protegidos pela noite e pelo mau tempo, pois começara a cair uma chuva torrencial, ótima para nós, que fez com que até as sentinelas do acampamento se retirassem para seus abrigos. Restaram somente duas delas, que o deus das aladas sandálias fez mergulhar num sono profundo ao brandir o seu caduceu. Adentramos a tenda e, pasmem!, Aquiles já nos esperava.

— Eu sei — disse o grego abruptamente. — Eu estava lá.

Um silêncio terrível pairou sobre ambos: os dois haviam chegado a um verdadeiro impasse. As lanças agudas de suas histórias agora estavam terçadas e não havia como destrinçá-las sem que algum deles caísse em contradição. O troiano poderia muito bem ter dito: “Você, lá?

Não lembro de tê-lo visto!”.

O grego, por sua vez, não podia voltar atrás do que afirmara.

— Eu estava escondido — disse este, finalmente. Um alívio divino desceu sobre ambos.

— Havia muitas cortinas e tapetes pendurados, você deve lembrar — acrescentou o grego, balançando o coto do seu pulso, como se afastasse vários véus.

A história podia prosseguir.

— Príamo, então, levando aos lábios a mão rude que matara seu filho mais querido, assim clamou: ‘Aquiles, lembre do seu velho pai, Peleu, que o espera em sua pátria, vergado pela odiosa velhice! O que diria se soubesse que seu filho, morto e vilipendiado, nunca mais estará diante de seus olhos? Que nem sequer os ritos fúnebres poderá pronunciar, abraçado à esposa, sob os olhares consternados de todos os súditos?”.

— Verdadeiramente, seus olhos vertiam grande abundância de água! — ajuntou o grego.

— Aquiles, então, tomando o velho pelos ombros, juntou a dor dele à sua própria, acalmando com isto a dor de ambos. Assim estiveram chorando, abraçados, até que o filho de Tétis, enxugando as lágrimas, disse ao velho rei: “Grande coragem demonstra ao vir prosternar a sua velhice diante de mim em nome do resgate do corpo sem vida do seu filho Heitor, domador de cavalos. Vá, acalme a sua dor, que eu tratarei de acalmar a minha.” Depois, mandou que lavassem do corpo insepulto do audaz troiano a sujidade do sangue e do pó que o recobriam, pois Aquiles ainda arrastara por diversas vezes aquele corpo nutrido pelos deuses ao redor do túmulo de Pátroclo.

— Fez-se, então, uma refeição, com libação de um perfumado vinho, que serviu para acalmar ainda mais a dor e a mágoa que pudessem nutrir um pelo outro — disse, agora, o grego -, e Aquiles mandou que estendessem peles e cobertores para o velho passar o restante da noite num recanto isolado, e assim fazia para que nenhum dos nossos percebesse a presença do rei inimigo dentro de suas próprias hostes, o que lhe seria morte certa.

— Mas enquanto dormíamos — retomou o troiano -, fomos alertados por Mercúrio de pés ligeiros, que disse para o velho rei: “Que louca imprevidência é esta, velho, que o faz ficar enrolado em peles de cordeiros sob os olhos do leão, cuja fúria pode acordar de novo a qualquer momento? Vamos, levante e siga logo para dentro de seus muros!” E foi assim que retornamos à Tróia, onde foram feitos os funerais de Heitor, domador de cavalos.

A conversa terminou: ambos já haviam ido longe demais e temiam um novo e constrangedor reencontro nas brumas do passado. O cego troiano recostara-se no pedaço de muro, enquanto que o velho grego, deitado sobre o pó do chão, apoiava a cabeça sobre a mão restante. Aos poucos foram sendo envolvidos pelo manto aconchegante de Morfeu, deus do sono, o qual, não percebendo nas proximidades as presenças ruidosas da Preocupação e da Ambição, podia aproximar-se livremente, sem o menor receio de ver-se violentamente expulso.

Os dois, agora, ressonavam ruidosamente. E por debaixo de suas maltratadas barbas errava um quase sorriso — um sorriso de crianças que escutam, deliciadas, histórias contadas e recontadas por velhas e infatigáveis amas.

Introdução à Mitologia Grega - Universo Anthares

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