Alguns autores, particularmente eruditos judeus, negam que houve verdadeira escravidão em Israel ou, pelo menos, escravos israelitas. Essa opinião pode ter uma justificação aparente se pensamos nos exemplos da antiguidade clássica: nem em Israel, nem entre seus vizinhos havia aqueles enormes rebanhos de escravos que na Grécia e em Roma foram uma causa permanente de insegurança social; por outro lado, em Israel, como em todo o antigo oriente cm geral, a situação do escravo não foi nunca tão desprezível como na Roma republicana, onde Varrão não temia definir o escravo como instrumenti genus vocale, “uma espécie de instrumento que fala”. A flexibilidade do vocabulário se presta a equívocos: ‘ebed significa propriamente “escravo”, homem que carece de liberdade e que está em poder de outro, mas por razão do caráter absoluto da potestade real, a palavra significa também os súditos do rei, especialmente seus mercenários, seus oficiais, seus ministros que, aplicados a seu serviço, romperam os outros vínculos sociais. Se ampliarmos ainda mais o significado, a palavra se converte em termo de cortesia. Pode-se comparar a evolução dos equivalentes sennteur em francês e servant em inglês, vindo os dois do latim sennts. Finalmente, como as relações com Deus são concebidas por analogia às que se têm com o soberano terrestre, ‘ebed acaba por significar o devoto de um culto determinado, o que é fiel a uma divindade. A palavra veio a ser um título de piedade, que se aplica a Abraão, Moisés, Josué ou Davi antes de aplicar-se ao misterioso servo de Iahvé.
No entanto, se “escravo” expressa que um homem está privado de sua liberdade, pelo menos durante algum tempo, que ele é comprado e vendido, que é propriedade de um dono que o emprega a seu arbítrio, certamente houve escravos em Israel e houve israelitas que foram escravos. O fato é provado pelos textos que os contrapõem aos homens livres, aos assalariados, e aos estrangeiros residentes, ou que falam de sua compra em dinheiro, como também pelas leis que regulamentam sua emancipação.
OS ESCRAVOS DE ORIGEM ESTRANGEIRA
Em toda a antiguidade a guerra foi uma das principais fontes de escravidão: era o estado a que ficavam reduzidos os prisioneiros. O mesmo sucedia na Palestina. Na época dos juízes, se o exército de Sísera tivesse sido vitorioso, teria repartido o saque: “uma ou duas moças para cada homem”, Jz 5.30. Os amalequitas, depois do saque de Ziclague, levam para si como prisioneiros todos os que ali havia, I Sm 30.2-3. Iahvé julgará as nações que “lançaram sorte sobre o meu povo, trocaram meninos por prostitutas, para comprar vinho venderam meninas”, J1 4.3. Na época helenística, comerciantes de escravos seguiam as tropas de Antíoco Epífano para comprar os judeus que elas fizessem prisioneiros, I Mb 3.41; II Mc 8.10-11. Mais tarde, Adriano vende os prisioneiros da segunda revolta judaica.
Em todos esses casos, trata-se de israelitas reduzidos à escravidão por seus inimigos estrangeiros. Mas o Cronista conta que Peca de Israel, na guerra contra Judá, fez 200.000 prisioneiros, mulheres, moços e moças, que foram postos em liberdade devido às admoestações de um profeta, II Cr 28.8-15. Não sabemos que crédito deve-se dar a essa história, que não tem seu paralelo nos livros dos Reis e cuja soma é, pelo menos, suspeita. De qualquer forma, ela demonstra que a redução à escravidão, de cativos de guerra, que eram irmãos de raça, não era coisa inaudita, embora fosse reprovada pelas pessoas bem-pensantes. Quanto à presença em Israel de prisioneiros estrangeiros feitos escravos, ela é pressuposta por duas leis do Deuteronômio. Dt 21.10-14 contempla o caso da cativa que seu vencedor toma por mulher: ele pode em seguida repudiá-la, porém não pode vendê-la. Isso implica que poderia vendê-la como escrava se não a houvesse tomado por esposa. Nesse sentido pode-se recordar o relato de Nm 31.26-47 acerca da repartição do saque depois da guerra contra Midiã: as mulheres virgens (todo o resto foi massacrado em cumprimento do anátema, cf. Nm 31.15-18) foram repartidas entre os combatentes e a comunidade.
A lei de Dt 20.10-18 se refere à conquista das cidades. Se a cidade se encontra no território atribuído por Deus a Israel, é entregada ao anátema e nada vivo deve subsistir nela. Quando se ataca uma cidade situada fora da Terra Santa, deve-se propor sua rendição: se ela aceita, todo o povo é submetido à corveia e ao trabalho; se ela resiste e por fim cai, todos os homens são mortos, e as mulheres e as crianças são consideradas como saque. Em sua formulação atual, impregnada do espírito deuteronomista, cf. o paralelo de 7.1-6, essa lei é irreal: o tempo da conquista do país e das guerras exteriores era já um passado remoto. Ela conserva a lembrança dos antigos anátemas, Js 6.17-21; 8.26: 10.28s etc.; I Sm 15.3; cf. Dt 2.34; 3.6, dos fracassos de uma conquista total, Js 17.12-13; Jz 1.28,30,33,35, e das guerras de Davi, II Sm 8.2; 12 .31, que proporcionaram ao Estado seus primeiros escravos públicos.
Os escravos, reduzidos a essa condição pela guerra ou de alguma outra maneira, eram objeto de comércio em todo o antigo oriente. Em Am 1.6 e 9, ( ia/a e Tiro são condenadas por haver praticado o tráfico de cativos; segundo li/. 27.13, Tiro comprava homens na Ásia Menor, e ali mesmo vendia judeus, segundo J1 4.6. Esses fenícios, que eram os principais negociantes em Israel, deviam ser também ali provedores de escravos. A lei permitia aos israelitas comprar servos de ambos os sexos originários do estrangeiro ou nascidos de estrangeiros residentes em Israel, Lv 25.44-45; cf. Êx 12.44; Lv 22.11; Ec 2.7.
Os escravos comprados a dinheiro eram distinguidos dos nascidos em casa, Gn 17.12,23,27; Lv 22.11; cf. Jr 2.14, estes são chamados yeltdê bait. Entretanto, é possível que a expressão não signifique exclusivamente o fato de haver nascido na casa, mas também o vínculo a uma “casa” a título servil, com certos deveres militares. Assim se explicaria o fato dos 318 yelidê bait de Abraão, Gn 14.14, e o emprego de yalid em um contexto guerreiro, Nm 13.28; II Sm 21.16,18. O dono podia adquirir escravos casados ou casar os que tinha; os filhos pertenciam a ele, cf. Êx 21.4, com o que multiplicava de modo barato sua criadagem. Criados na família, eram, sem dúvida, mais ligados a ele e eram melhor tratados, mas não desfrutavam de estatuto social diferente daqueles que tinham sido comprados.
OS ESCRAVOS ISRAELITAS
Ao lado dos escravos de origem estrangeira, havia realmente escravos israelitas? Antes fizemos alusão ao texto de II Cr 28.8-15, que condena essa prática, a qual é, além disso, proibida por Lv 25.46 que, depois de falar dos estrangeiros, diz: “Vocês os terão por escravos, mas sobre vossos irmãos, os filhos de Israel, ninguém exercerá um poder arbitrário.” Entretanto, Lv 25.39-43 fala do israelita que se “vendeu” a outro israelita, mas que deve ser tratado como um assalariado e um hóspede e não como um escravo. Por outro lado, Lv 25.47-53 prevê o caso de um israelita que se “vendeu” a um estrangeiro residente: poderá ser resgatado por seus parentes ou resgatar-se a si mesmo e não deverá ser tratado arbitrariamente. Esses escravos, tendo um dono israelita ou estrangeiro, deverão ser libertados no ano do jubileu, Lv 25.40,54. A lei exclui, pois, no caso de um israelita, apenas a escravidão perpétua, mas admite uma verdadeira escravidão (essas pessoas são “vendidas”), temporária e moderada. É difícil saber se essa lei foi aplicada alguma vez. Na época de Neemias, há judeus que se lamentam por terem precisado entregar seus filhos e suas filhas à escravidão, e Neemias faz veementes admoestações ao povo para que consinta em perdoar as dívidas e libertar as pessoas tomadas como garantia, Ne 5.1 -13. Não há nenhuma alusão à lei de Lv 25.
Parece, pois, que essa lei é posterior a Neemias; mesmo que não se queira insistir muito nesse argumento do silêncio, a lei é tardia, pois substitui leis mais antigas. Em Dt 15.12-18, se um “hebreu”, homem ou mulher, se vendeu a um de seus irmãos, lhe servirá durante seis anos e ao sétimo será libertado; se ele rejeita a emancipação, se converterá em escravo perpétuo. É a essa lei que se refere Jr 34.14, a respeito da emancipação de escravos “hebreus” sob Zedequias. É mais antiga ainda a lei de Êx 21.2-11. Um escravo “hebreu” que tenha sido “comprado”, servirá seis anos e ao sétimo será libertado; se ele recusa a emancipação, se converterá em escravo perpétuo. Essas disposições são idênticas às de Dt 15.12-18, mas concernem unicamente ao escravo masculino. As moças vendidas como escravas e destinadas a ser concubinas do amo ou de seu filho, não são libertadas e se encontram em condições análogas às dos cativos de guerra, Dt 21.10-14, cf. acima.
É notável que nos textos citados de Êx, Dt e Jr, esses escravos sejam chamados “hebreus”, termo que, exceto na passagem tardia de Jn 1.9, se aplica aos israelitas apenas quando se encontram em condições especiais. Houve quem se perguntasse se o termo não designava aqui os israelitas que alienavam sua liberdade mediante uma escravidão semivoluntária. A hipótese pode se apoiar em I Sm 14.21, em que são chamados de “hebreus” israelitas postos a serviço dos filisteus, como também na analogia dos documentos de Nuzu. nos quais se fala de hapiru que se vendem como escravos. Segundo essa hipótese, os textos terão conservado indícios de um uso arcaico, mas designam certamente a israelitas.
Seja como for, a causa da redução de israelitas à escravidão é sempre a miséria do próprio escravo ou de seus pais. Geralmente, talvez em todos os casos, trata-se de devedores inadimplentes ou de pessoas tomadas como garantia para o pagamento de uma dívida.31 Isso é pressuposto nas leis de Lv 25 e de Dt 15.2,3, e os outros textos o confirmam. Eliseu opera um milagre em favor de uma mulher cujos dois filhos vão ser tomados como escravos por um credor como garantia, II Rs 4.1-7. Em Is 50.1, Iahvé pergunta aos israelitas: “A qual de meus credores eu vos vendi?” Os contemporâneos de Neemias entregam seus filhos e filhas à escravidão, como garantias do pagamento de uma dívida, Ne 5.1-5. Assim se explica que essa escravidão seja temporária: cia cessa com o pagamento ou o perdão da dívida, Lv 25.48; II Rs 4.7; Ne 5.8-11. As leis de Êx 21 e de Dt 15 estabeleciam um máximo de seis anos. Recordemos que, segundo o código de Hamurabi, alguns escravos por dívidas não podiam ser retidos por mais de três anos. Essas leis, porém, não eram observadas, como mostra Jr 34. É talvez por causa dessa inobservância que a lei ideal de Lv 25 prevê um prazo que pode chegar a 50 anos, mas obriga ao dono a tratar seu escravo como um assalariado ou como um hóspede.
Houve, pois, escravos israelitas na casa de israelitas. Aos que ficavam reduzidos a essa condição pela miséria ou pelas dívidas devem ser acrescentados os ladrões que não podiam restituir e que eram vendidos para recuperar o A A valor de seu furto, Ex 22.2. Ao contrario, as leis de Ex 21.16 e Dt 24.7 castigam com a morte o rapto de um israelita para explorá-lo ou vendê-lo como escravo. É possível que a proibição do Decálogo, Êx 20.15; Dt 5.19, que se distingue muito bem do mandamento detalhado acerca das faltas contra a justiça, Êx 20.17; Dt 5.21, condene esse roubo, particularmente odioso, de uma pessoa livre.
NÚMERO E VALOR DOS ESCRAVOS
Temos muito poucas informações sobre o número dos escravos domésticos em Israel. Gideão toma dez de seus servos para derribar o santuário de Baal, Jz 6.27. Abigail, esposa do rico Nabal, tem escravos em número indeterminado e, quando vai casar-se com Davi, leva consigo cinco servas, I Sm 25.19-42. Depois da morte de Saul, os bens da família real eram avaliados por um gerente, Ziba. que dispunha de seus quinze filhos e de vinte escravos, II Sm 9.10. Alguns grandes proprietários da época monárquica puderam ter também uma criadagem relativamente numerosa, mas eram exceções. O censo da comunidade que havia regressado do Exílio, Ed 2.64; Ne 7.66, conta 7.337 escravos de ambos os sexos contra 42.360 pessoas livres. A situação era, pois, muito diferente da Grécia ou Roma, mas se parece à da Mesopotâmia, onde uma família de boa condição tinha um ou dois escravos em épocas antigas, e de dois a cinco na época neobabilônica; os números eram um pouco mais elevados na Assíria.
Não menos raros são os dados sobre o valor dos escravos. José é vendido por seus irmãos por vinte moedas de prata, Gn 37.28, que é também o preço médio de um escravo na Babilônia antiga; a mesma quantia se pagava por um boi. Na época neobabilônica os preços dobraram e se elevaram ainda mais sob os persas. Em meados do segundo milênio antes de nossa era, o preço corrente de um escravo era de 30 siclos de prata em Nuzu, de 40 siclos em Ugarit (Ras _ A Shamra). Também em Israel, o escravo é avaliado em 30 siclos, Ex 21.32; é a quantia que receberá Judas por entregar Jesus, Mt 26.15. Entretanto, na época grega o preço tinha subido: quando Nicanor promete aos mercadores 90 cativos por um talento, ou seja, uns 33 siclos por cabeça, II Mb 8.11, pede um preço irrisório, se comparado com os que indicam os papiros contemporâneos, mas queria atrair os comerciantes com a isca de um grande lucro.
A CONDIÇÃO DOS ESCRAVOS
Estritamente considerado, o escravo é uma “coisa” possuída por seu dono, que a tomou por direito de conquista, adquiriu-a por dinheiro ou recebeu em herança, que a utiliza a seu gosto e pode revendê-la. As leis antigas da Mesopotâmia presumem que o escravo seja marcado, como uma rês, com uma tatuagem, um estigma feito com ferro em brasa ou ainda com uma etiqueta presa a seu corpo. Na prática, nem todos os escravos levavam esse sinal de identidade, que se aplicava preferentemente aos fugitivos que haviam sido capturados novamente e aos escravos cuja fuga se temia. Os rabinos permitirão que se marque um escravo para tirar-lhe a vontade de fugir, mas o costume não é atestado claramente no Antigo Testamento. Se furam a orelha de um escravo que não deseja ser libertado, Êx 21.6; Dt 15.17, não é para impor uma marca, mas é como símbolo de sua adesão à família. A analogia mais próxima é a do nome de Iahvé inscrito na mão dos fiéis em Is 44.5, para significar que pertencem a Deus, como o nome da Besta marcado sobre seus adeptos em Ap 13.16,17, como as tatuagens dos cultos helenísticos.
Não obstante, não se esquecia completamente que o escravo era um ser humano: havia um direito dos escravos. O código de Hamurabi só punia os maus tratos infligidos aos escravos de outro, que era considerado como sua propriedade; assim, também em Êx 21.32, se o touro de um vizinho chifra um escravo, é ao dono do escravo que o proprietário do touro deve pagar uma indenização. Entretanto, inclusive na Mesopotâmia, os escravos tinham recurso legal contra violências injustas, e as leis israelitas os protegiam de maneira mais explícita: um homem que cega um dos olhos de um escravo ou lhe quebra um dente, deve, em compensação, libertá-lo, Êx 21.26,27. Se um homem açoita um escravo até matá-lo, é castigado, Êx 21.20, mas se o escravo sobrevive um dia ou dois, o dono é isentado, pois “tratava-se de seu dinheiro”, Êx 21.21. Sem dúvida considerava-se suficiente castigo a perda do escravo, mus essa cláusula indica que mesmo em Israel, estimava-se o escravo como “coisa” de seu dono.
Na Mesopotâmia, assim como em Roma, o escravo podia reunir um pecúlio, fazer negócios, ter ele mesmo escravos. Não se pode assegurar que acontecesse o mesmo em Israel. É certo que Lv 25.49 prevê que um escravo (israelita) possa resgatar-se se tem os meios necessários, mas o texto não dá mais detalhes. Citam-se outros casos: o servo que acompanha Saul leva consigo um quarto de siclo, I Sm 9.8. Geazi, servo de Eliseu, extorquiu de Naamã dois talentos de prata com os quais pode, diz Eliseu, “comprar jardins, olivais e vinhas, ovelhas e bois, servos e servas”, II Rs 5.20-26. Ziba, intendente da família de Saul, tem vinte escravos, II Sm 9.10. Mas o amo tem direito supremo sobre os bens de seu escravo. II Sm 9.12 define que “todos quantos moravam em casa de Ziba eram servos de Meribaal”. Esses casos não são concludentes, pois o hebraico não emprega a palavra ‘ebed, “escravo”, mas apenas na’ar. “jovem”, depois, “servo”, “assistente”, provavelmente é sempre um homem livre, ligado ao serviço de um patrão.
A condição do escravo na vida diária dependia em grande parte do caráter de seu dono, mas geralmente era suportável. Em uma organização social em que a família tinha tanta importância e em que dificilmente se concebia o trabalho fora do âmbito familiar, uma pessoa isolada ficava sem proteção e sem meios de subsistência. O escravo tinha pelo menos a segurança de que não lhe faltaria o necessário. Ainda mais, ele fazia verdadeiramente parte da família, era um “doméstico” em sentido etimológico. Por isso estava obrigado à circuncisão, Gn 17.12-13. Tomava parte no culto familiar, descansava no dia de sábado, Ex 20.10; 23.12, participava das refeições sacrificiais, Dt 12.12,18, celebrava as festas religiosas, Dt 16.11-14, comia da Páscoa, Êx 12.44, da qual estavam excluídos o hóspede e o trabalhador assalariado, Êx 12.45. O escravo de um sacerdote podia comer das oferendas santas, Lv 22.11, coisa que também não podiam o hóspede e o assalariado, Lv 22.10. O relacionamento de Abraão com seu servo mostram, Gn 24, a intimidade a que se podia chegar entre senhor e escravo. Pv 17.2 diz: “O escravo prudente dominará sobre o filho que causa vergonha”, cf. Eclo 10.25. Ele podia ter parte na herança de seu dono, Pv 17.2, e até receber a sucessão na ausência de herdeiros, Gn 15.3. Uma vez nos é informado que um escravo se casa com a filha de seu dono, I Cr 2.34-35. Nesses dois últimos casos é evidente que o escravo fica livre automaticamente.
Sem dúvida, o escravo devia obedecer e trabalhar, e os sábios aconselham que sejam tratados com dureza, Pv 29.19 e 21. Entretanto, ao dono mesmo interessava tratar seus escravos com firmeza sem dúvida, mas também com justiça e humanidade, Eclo 33.25-33. Os homens piedosos acrescentavam a isto uma consideração religiosa: Jó protesta que não havia desprezado os direitos de seu servo e de sua serva, pois são como ele, criaturas de Deus, Jó 31.13-15. O Levítico ordena que se trate com bondade o escravo de origem israelita: será como um hóspede e como um assalariado e não lhe será imposto trabalho de escravos, Lv 25.39-40. Os rabinos, comentando esse texto, proibiam que lhe fossem dado trabalhos muito duros ou muito humilhantes, como virar o moinho, cf. Jz 16.21, descalçar seu senhor ou lavar-lhe os pés, cf. I Sm 25.41. Assim compreende-se melhor certos textos do Novo Testamento: João Batista não é digno de desatar as sandálias daquele a quem anuncia, M t 3.11 e paralelos: ele é menos que um escravo; Pedro se revolta quando Jesus quer lavar-lhe os pés, Jo 13.6-7, que é serviço próprio de escravos.
AS MULHERES ESCRAVAS
Já pudemos notar que as mulheres escravas tinham uma situação particular. Estavam ao serviço pessoal da dona da casa, Gn 16.1; 30.3,9; I Sm 25.42; Jt 10.5 etc., ou eram amas-de-leite, Gn 25.59; II Sm 4.4; II Rs 11.2. O dono as casava à sua vontade, Êx 21.4. Ou ainda ele mesmo tomava uma escrava como concubina, com o que melhorava a condição desta. Abraão e Jacó tomam assim concubinas escravas, a pedido de suas mulheres estéreis. Conservam, contudo, sua condição de escravas, cf. Gn 18.16, se o dono não as liberta, cf. Lv 19.20. A antiga lei de Ex 21.7-11 prevê que um pai israelita, pobre ou endividado, pode vender sua filha para que seja concubina de um dono ou de seu filho. Tal concubina não é posta em liberdade ao sétimo ano como os escravos masculinos. Se desagrada a seu dono, este faz que seja resgatada, mas não pode revendê-la a um estrangeiro. Se toma outra mulher, deve manter todos os direitos da primeira. Se ele a destina a seu filho, trata-a como uma filha da casa. A lei deuteronômica reserva uma situação parecida à cativa de guerra que o vencedor toma por esposa, Dt 21.10-14. Mas, contrariamente a Êx 21, ela não faz distinção entre homens e mulheres quanto ao tratamento dos escravos israelitas: a mulher é libertada ao sétimo ano, como o escravo homem, e, como ele, pode renunciar a sua libertação, Dt 15.12 e 17. Jeremias também não distingue entre homens e mulheres tratando-se de escravos. Isso parece significar que desde aquela época não havia mais concubinas escravas. A lei posterior de Lv 25 não leva em conta este caso e Ne 5.5 fala de moças israelitas violentadas por seu dono, mas não tomadas como concubinas.
OS ESCRAVOS FUGITIVOS
A fuga era o recurso comum do escravo para libertar-se do trato duro de Meu dono, Eclo 33.33. Ainda nos casos em que era bem tratado, podia sentir a tentação de fugir, mesmo que fosse apenas para sentir-se livre, como todo homem tem direito de ser. O rico e malvado Nabal parece que estava bem a par disto: “Muitos são hoje em dia os servos que fogem do seu senhor”, ele respondeu aos enviados de Davi, I Sm 25.10. Dois escravos de Simei fogem para a cidade de Gate, I Rs 2.39. Isso acontecia em toda parte. O código de Hamurabi pune com a morte toda ajuda prestada a um escravo fugitivo, a recusa a entregá-lo ou sua simples ocultação. As outras leis da Mesopotâmia são menos severas: em Nuzu, o que oculta deve pagar uma multa. Ao referir-se a escravos que fugiam para o estrangeiro, certos tratados entre Estados orientais previam cláusulas de extradição. Assim, Simei pode recuperar seus dois escravos que haviam se refugiado junto ao rei de Gate, I Rs 2.40, cf. também I Sm 30.15. A lei israelita contém só um artigo sobre os escravos fugitivos: Dt 23.16-17 proíbe que se entregue um escravo que escapou de seu dono e buscou refúgio: nu cidade que escolher, deve ser recebido e bem tratado. Essa determinação não tem paralelo nas leis antigas e não é fácil de interpretar. Não parece aplicar-se a um escravo israelita que abandone um dono israelita, pois ele voltaria naturalmente à sua família ou a seu clã. Pela mesma razão também não se refere a um escravo israelita que abandona seu dono estrangeiro. Parece, pois, que a lei visa a um escravo não israelita vindo do estrangeiro e admitido em Israel como ger ou como tôshâb. Seria negada só a extradição, considerando Ioda a Terra Santa como lugar de asilo, à maneira de Is 16.3-4.
EMANCIPAÇÃO
O dono tinha, evidentemente, direito de libertar seu escravo, se lhe aprouvesse. Além disso, a lei prevê alguns casos determinados. A cativa sai da condição de escrava se seu dono a toma por esposa, Dt 21.10-14. A libertação podia também acontecer como compensação por danos corporais, Êx 21.26-27, texto cuja formulação absoluta não permite restringi-lo só aos escravos israelitas. Mas, de forma geral, os escravos estrangeiros estavam sujeitos à servidão perpétua e eram transferidos juntamente com a herança, Lv 25.46. Pelo contrário, a escravidão dos israelitas era, em si, temporária. Os escravos masculinos, segundo Êx 21.2-6, os escravos de ambos os sexos, segundo Dt 15.12-17, deviam ser libertados ao fim de seis anos de serviços. Podiam recusar a libertação, e sem dúvida faziam isso com frequência, temendo recair na miséria que os havia obrigado a vender-se como escravos. O presente que recebiam de seu dono, Dt 15.14, era uma garantia insignificante para o futuro. Tinham ainda mais razão para ficar com seu antigo dono se este os houvesse casado, posto que sua mulher e seus filhos continuavam propriedade do mesmo, Êx 21.4. Nesse caso, furava-se a orelha do escravo contra o batente ou o montante da porta, como símbolo de sua adesão definitiva à casa, com o que tornava-se escravo perpétuo. Parece que essas leis não foram observadas fielmente. Segundo Jr 34.8-22, que se refere explicitamente ao Deuteronômio, o povo de Jerusalém, sitiada por Nabucodonosor, havia libertado seus escravos “hebreus”, mas voltaram a tomá-los quando se levantou temporariamente o cerco; o profeta reprova-lhes essa deslealdade para com seus irmãos e a transgressão de uma lei que vinha de Deus.
As disposições de Lv 25, que já citamos, referem-se à libertação dos escravos israelitas em relação com o ano do jubileu32. Nesse ano, eles e seus filhos serão libertos, Lv 25.41,54. Antes desse prazo, eles podiam ser resgatados ou resgatar a si mesmos pelo preço anual de um assalariado durante o tempo que faltasse transcorrer até o jubileu, Lv 25.48-53. Essas disposições parecem utópicas: um escravo que começa a trabalhar pouco depois do início de um período jubilar, podia morrer antes do seu término, ou ficava muito velho para ganhar a vida por si próprio como homem livre. Seu resgate, exceto se fosse efetuado pouco antes do jubileu, custaria muito caro, pois bastavam três anos de salário para cobrir o valor de um escravo: já vimos que um escravo era estimado em trinta siclos, segundo Êxodo 21.32, e que um trabalhador recebia uma dezena de siclos por ano, segundo o código de Hamurabi e possivelmente segundo Dt 15.18.33 Além disso, não possuímos nenhum indício de que a lei jamais tenha sido aplicada, nem antes nem depois de Neemias, que não faz alusão a ela quando impõe um perdão de dívidas envolvendo a libertação de pessoas tomadas como garantia, Ne 5.1-13.
O escravo libertado é chamado hofshi nas leis de Êx 21 e Dt 15, assim como em Jr 34, cf. também Lv 19.20; Is 58.6; Jó 3.19, e a palavra não se aplica nunca em outro contexto, a não ser no da libertação de escravos, exceto em Jó 39.5, em sentido figurado, e em I Sm 17.25, onde significa a isenção de impostos e de corveias. A única tradução possível é, pois, a de “liberto” , Mas nada no Antigo Testamento nos diz que esses libertos formassem um grupo social particular. Essa conclusão só poderia fundar-se em analogias extrabíblicas: em Alalakh e em Nuzu, nas cartas de Amama e nos textos de Ras Nhumra, nas leis assírias e nos documentos assírios posteriores, hupshu designa Uimi classe da população, intermediária entre os escravos e os proprietários: parecem ser servos, colonos e, às vezes, artesãos. Nesses diferentes meios morais, a mesma palavra cobre realidades bastante variadas e é arbitrário aplicar uma ou outra de suas acepções a Israel, onde não havia classes sociais definidas. Ao ser emancipado, o escravo voltava a formar parte do “povo da terra”.
ESCRAVOS PÚBLICOS
Os prisioneiros de guerra abasteciam os antigos Estados orientais de pesMoiil servil para os santuários ou para o palácio, para as grandes obras de interesse comum e para os grandes empreendimentos comerciais ou industriais, cujomonopólio estava nas mãos do rei. Mesmo que as leis do Antigo Testamento falem apenas de escravos domésticos, parece que houve também em Israel escravos públicos. Depois da conquista de Rabá, Davi “trazendo o povo que havia nela, designou-lhes trabalhos com serras, picaretas, machados de ferro e em fomos de tijolos; e assim fez a todas as cidades dos filhos de Amom.”, II Sm 12.31. Se traduzirmos assim o texto, não se trata, como se creu por um longo tempo, de matança dos habitantes, executada de modo anormal, com ferramentas de artesãos; a única coisa de que se pode duvidar é se significa redução à escravidão em benefício do Estado ou somente uma sujeição à corveia. Nos tempos de Salomão, o trabalho das minas de ‘Arabá e da fundição de Eziom-Geber, em regiões muito afastadas e em condições muito penosas, que deviam causar terrível mortalidade, exigia uma população de escravos a serviço do rei: não se pode conceber que se obrigassem os israelitas livres a esses trabalhos, pelo menos em grande número. A frota de Ofir, que exportava produtos semifaturados da usina de Eziom-Geber, tinha como tripulação “escravos de Salomão”, que manobravam juntamente com os escravos de Hirão de Tiro, I Rs 9.27; cf. II Cr 8.18; 9.10. É possível que esses escravos públicos de origem estrangeira trabalhassem também nas grandes construções de Salomão, 1 Rs 9.15-21. O texto emprega a expressão mas‘obed, “corveia servil”, para designar a esses trabalhadores que possivelmente foram recrutados entre os descendentes dos cananeus; a adição de “servil” distinguiria essa corveia daquela a que eram submetidos os israelitas. Pode-se pôr em dúvida essa distinção, com a qual o redator quer isentar os israelitas, cf. v. 22, de um trabalho ao qual, não obstante, estiveram sujeitos, segundo os documentos antigos de I Rs 5.27; 11.28. Mas o importante é que o redator acrescenta, I Rs 9.21, que esses cananeus continuaram em servidão “até hoje”. Assim, pois, em seu tempo, ao final da monarquia, havia escravos públicos, cuja instituição remontava a Salomão.
Ora, depois do Exílio nos deparamos com “descendentes dos escravos de Salomão”: regressaram da Babilônia e habitam em Jerusalém e nos arredores, Ed 2.55-58; Ne 7.57-60; 11.3. Mas sua atribuição mudou. São mencionados juntamente com os netínim, os “doados” e contados entre eles, Ed 2.43-54; Ne 7.46-56. Esses “doados” viviam sobre o Ofel, perto do Templo, Ne 3.31; 11.21. Formavam o pessoal inferior do santuário e estavam a serviço dos levitas, Ed 8.20. Seus nomes revelam em parte origem estrangeira. Mesmo que o termo não apareça nos textos pré-exílicos, existia uma instituição semelhante, pelo menos ao final da monarquia: Ez 44.7-9 reprova os israelitas por terem introduzido estrangeiros no Templo e de assim terem passado para eles uma parte dos serviços. É até provável que desde o princípio fossem empregados nos santuários de Israel escravos de origem estrangeira, como houve em todos os templos do antigo Oriente, da Grécia e de Roma. O redator do livro de Josué conhece também gibeonitas que cortam madeira e levam água ao templo, Js 9.27; ele diz que seus antepassados haviam sido condenados por Josué a esse serviço por haverem enganado Israel, Js 9.23. A tais estrangeiros faz alusão Dt 29.10. De sua parte, Ed 8.20 faz remontar a Davi a instituição dos netínim, mas como reação contra esse emprego de estrangeiros, Nm 3.9; 8.19 destaca que os levitas é que foram “doados” aos sacerdotes para o serviço do santuário.
Houve, pois, sob a monarquia e como nos países vizinhos, duas categorias de escravos públicos, os escravos do rei e os do Templo, de origem estrangeira e geralmente prisioneiros de guerra ou descendentes destes. Depois do Exílio e do desaparecimento das instituições reais, os “escravos de Salomão” uniram-se aos “doados” e todos eles foram empregados no serviço do Templo.
——- Retirado de: Vaux – Instituições de Israel no Antigo Testamento.
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