Árion e o Golfinho – Mitologia Grega

Os gregos, como todas as grandes civilizações, davam grande valor à música – classificando-a tão alto entre as artes que ela recebeu seu nome de todas as noves filhas de Memória. Festivais de música e prêmios de música, uma característica tão onipresente na nossa vida cultural de hoje, eram igualmente importantes no mundo grego.

Poucos fizeram jus a uma fama maior durante sua vida como cantor, menestrel, bardo, poeta e músico do que ÁRION, de Metimna, na ilha de Lesbos. Ele era filho de Poseidon e da ninfa ONCAEA, mas, apesar da ascendência, preferiu dedicar seu talento musical à celebração e ao louvor do deus Dioniso. Seu instrumento de escolha era a cítara, ou khitara, uma variação da lira. Ele é aceito por toda parte como inventor da forma poética conhecida como ditirambo, um hino coral fantástico dedicado ao vinho, carnaval, êxtase e prazer.

Com sonhadores olhos castanhos, voz doce e capacidade cativante de fazer pés marcarem compasso e cadeiras rodarem, Árion logo se tornou um tipo de ídolo pelo mundo mediterrâneo. Seu padroeiro e mais entusiástico apoiador era o tirano de Corinto, PERIANDRO, e foi ele quem ficou sabendo de um grande festival de música que aconteceria em Tarento, uma próspera cidade portuária localizada no arco da bota italiana. Periandro deu a Árion o dinheiro para fazer a viagem e participar das competições do festival, com a condição de que ele concordasse em, na volta, dividir o valor do prêmio.

A viagem de ida foi tranquila. Árion chegou a Tarento, entrou nas competições e ganhou facilmente o primeiro prêmio em todas as categorias. Os juízes e os membros do público nunca tinham ouvido uma música tão emocionante e original. O prêmio dele foi uma arca do tesouro com prata, ouro, marfim, pedras preciosas e instrumentos musicais maravilhosamente lavrados. Como agradecimento por um prêmio tão generoso, Árion fez um concerto grátis para as pessoas da cidade no dia seguinte.

A região de Tarento era famosa pelas grandes aranhas-lobo encontradas comumente no campo por toda a região. Os locais deram a elas o nome, em homenagem à cidade, de “tarântulas”. Árion tinha ouvido falar que o veneno da tarântula podia provocar delírio histérico, então improvisou para o povo uma variação de seus fantásticos ditirambos, que chamou de tarantela. Os ritmos delirantes dessa dança popular enlouqueceram os excitáveis tarentinos; mais para o fim, ele os acalmou com uma mistura de suas melodias mais suaves e românticas. Lá pelas tantas, poderia ter escolhido qualquer garota, menino, homem ou mulher no sul da Itália, e diz-se que, como o músico bem-sucedido que era, escolheu.

Uma multidão foi se despedir de Árion na manhã seguinte; muitas pessoas sopraram beijos e um bom número se acabou de soluçar. Ele e sua bagagem, inclusive a arca do tesouro, foram remados para o mar numa chalupa, onde um brigue pequeno mas aproveitável, tripulado por um capitão de mar e nove marinheiros civis, o esperava. Logo, Árion estava confortavelmente instalado a bordo. A tripulação içou as velas e o capitão tomou o rumo de Corinto.

Ao mar

Assim que tinham perdido a terra de vista e estavam em alto-mar, Árion sentiu que alguma coisa estava errada. Ele estava acostumado a que as pessoas ficassem embasbacadas com ele – afinal de contas, era tão ultrajantemente lindo quanto talentoso –, mas os olhares que a tripulação estava lançando em sua direção eram de um tipo diferente. Passaram-se dias nesse ambiente taciturno e ameaçador, e ele sentia-se cada vez mais incomodado. Havia algo nos olhos dos marinheiros que parecia avidez, mas sugeria um propósito mais sombrio. O que poderia estar errado? Então, numa tarde quente, o mais feio e de aparência mais malvada dos marinheiros se aproximou dele.

— O que há aí nessa arca sobre a qual você está sentado, garoto?

Claro. Árion sentiu o coração apertar. Estava explicado. Os marinheiros tinham ouvido falar de seu tesouro. Supôs que quisessem parte dele, mas imagine se ele ia partilhar seu prêmio, arduamente ganho, com qualquer um que não Periandro. Mais cedo, ele pensara em dar uma boa gorjeta à tripulação no fim da viagem, mas, agora, seu coração tinha se endurecido.

— Meus instrumentos musicais — respondeu. — Sou um citarista.

— Você é o quê?

Árion sacudiu tristemente a cabeça e repetiu lentamente, como para uma criança:

— Eu… toco… a… cítara.

Grande erro.

— Ah… você… toca? Bem… toque… uma… música… para… nós.

— Eu prefiro não, se vocês não se importam.

— O que está acontecendo aqui? — O capitão do brigue se aproximou.

— O garoto esnobe diz que é músico, mas não quer tocar. Diz que tem uma cítara nessa caixa dele.

— Bom, tenho certeza de que você não vai se importar em mostrá-la para nós, não é, meu jovem?

O pessoal todo do navio tinha feito um círculo ao seu redor.

— Eu… não estou me sentindo muito bem para tocar. Talvez à noite eu esteja em melhor forma.

— Por que você não desce e descansa na sombra?

— N-não, prefiro o ar fresco.

— Agarrem-no, rapazes!

Mãos rudes ergueram Árion com tanta facilidade como se ele fosse um cachorrinho recém-nascido.

— Larguem-me! Larguem isso. Não é propriedade de vocês!

— Onde está a chave?

— Eu… perdi.

— Encontrem-na, garotos.

— Não, não! Por favor, eu lhes peço…

A chave foi facilmente encontrada e arrancada do pescoço de Árion. Assobios e murmúrios surgiram quando o capitão soltou a tranca e levantou a tampa. A luz do brilho do ouro e os lampejos das pedras preciosas dançaram nas faces ávidas dos marinheiros. Árion viu que estava perdido.

— Estou d-disposto a d-dividir meu tesouro com vocês…

Os marinheiros pareceram achar a oferta muito divertida e gargalharam.

— Matem-no — mandou o capitão, pegando um longo fio de pérolas e erguendo-o para a luz.

O marinheiro mais feio pegou uma faca e se aproximou de Árion com um sorriso mau.

— Por favor, por favor… posso… posso pelo menos cantar uma última canção? Minha trenodia, meu próprio hino fúnebre. É claro que vocês me devem isso, não? Os deuses os punirão se vocês ousarem me mandar para a morte sem algum tipo de exéquia catártica…

— Vou fazer você parar de dizer esses raios de palavras — rosnou o marinheiro feio, aproximando-se.

— Não, não — disse o capitão. — Ele tem razão. Vamos deixar o nosso Cygnus entoar seu canto do cisne. Suponho que vá precisar desta lira. — Ele pescou a cítara da arca e a deu a Árion, que a afinou, fechou os olhos e começou a improvisar. Dedicou a canção a seu pai, Poseidon.

— Senhor dos Oceanos — cantou ele —, Rei das Marés, o que Sacode a Terra, amado pai. Muitas vezes, o negligenciei em minhas preces e meus sacrifícios, mas o senhor, o grande, não negligenciará seu filho. Senhor dos Oceanos, Rei das Marés, o que Sacode a Terra, amado…

Sem qualquer aviso, agarrando forte a cítara consigo, Árion pulou no mar e caiu nas ondas. A última coisa que ele ouviu foi o riso da tripulação e a voz seca do capitão.

— Essa foi fácil! Agora, os espólios.

Se algum deles tivesse se dado ao trabalho de olhar para baixo, teria se deparado com uma visão notável. Árion mergulhara abaixo da superfície e tinha toda a intenção de abrir a boca e deixar a água do mar entrar, sem luta. Alguém tinha dito a ele que o afogamento é uma morte doce e agradável, um lento passar para o sono, desde que você não lute. Asfixia é um terrível pesadelo de pânico, mas o verdadeiro afogamento é uma liberação serena e indolor. Assim lhe tinham dito. Apesar desse reconfortante conhecimento, Árion manteve a boca firmemente fechada e, com as bochechas inchadas, chutou a água, agarrado a sua cítara.

E então, justo quando seus pulmões estavam prestes a estourar, uma coisa incrível aconteceu. Ele se sentiu empurrado para cima. Empurrado firme e rapidamente. Estava subindo pela água. Tinha rompido a superfície! Conseguia respirar! O que estava acontecendo? Devia ser um sonho. O ímpeto da água, as bolhas e o borrifo, o balanço, o horizonte oscilante, o ruído em seus ouvidos, a imersão, o rugido, o ofuscamento – tudo isso impediu que ele entendesse o que estava acontecendo até que ele ousou olhar para baixo e, com olhos que ardiam, viu que… que… estava nas costas de um golfinho! Um golfinho! Estava montado nele, sobre as ondas! Mas a pele do golfinho era escorregadia e ele começou a deslizar. O golfinho se revirou e se retorceu, e Árion, de alguma maneira, se endireitou outra vez. O animal tinha deliberadamente manobrado para mantê-lo em segurança! Será que se incomodaria se ele estendesse uma mão e segurasse em sua nadadeira dorsal, como um cavaleiro se agarrava no santantônio de uma sela? O golfinho não se importou, inclusive empinou um pouco, como se em aprovação, e aumentou a velocidade na água. Árion lentamente alcançou a tira de sua cítara e jogou o instrumento para trás, de modo a curtir a corrida com as duas mãos na nadadeira.

Agora, o brigue estava fora da vista. O sol brilhava, golfinho e homem lavravam sulcos pelo mar, levantando plumas de borrifo iridescente. Para onde estavam indo? Será que o golfinho sabia?

— Ei, golfinho! Encaminhe-se no curso para o golfo de Corinto. Eu o dirijo quando chegarmos lá.

O golfinho deu uma série de gritinhos e cliques que pareciam indicar compreensão, e Árion riu. E lá foram eles, perseguindo o sempre longínquo horizonte. Árion, já confiante em seu equilíbrio, puxou a cítara de volta e cantou a canção de Árion e o golfinho. Perdeu-se para nós, mas dizem que era a canção mais linda já composta. Por fim, chegaram ao golfo. O golfinho transpôs a movimentada pista de navios com facilidade, deslizando graciosamente. Marinheiros nas movimentadas barcaças, balsas e pequenos barcos se voltaram para olhar a cena notável de um rapaz cavalgando um golfinho. Árion o dirigiu com as nadadeiras, puxando delicadamente para este lado e para aquele, e não pararam até chegarem às docas reais.

— Mandem dizer ao rei Periandro — falou ele saltando do golfinho para o cais. — Seu menestrel voltou. E deem comida para o meu golfinho.

O monumento

Periandro ficou radiante com a volta do músico de quem gostava. A história de seu salvamento encheu a corte de admiração e surpresa. A festa durou a noite inteira e foi até de manhã. Já era noite quando eles foram ver, louvar e acariciar o heroico golfinho. Mas a visão que se desenrolou diante dos olhos deles foi muito triste. Os trabalhadores das docas, ignorantes, tinham levado o golfinho para o cais, para alimentá-lo. O bicho definhara durante a noite, sem água para manter sua pele molhada, e, depois, ficara toda a manhã e a tarde inteira na beira do cais, rodeado de crianças curiosas, com o sol quente queimando e secando. Árion se ajoelhou e sussurrou em sua orelha. O golfinho agitou-se numa resposta afetuosa, deu um suspiro estremecido e morreu.

Árion se recriminou amargamente, e nem as instruções de Periandro para que uma alta torre fosse construída em celebração ao golfinho e para glorificar sua memória conseguiram animá-lo. Durante o mês seguinte, todas as suas canções foram tristes, e o palácio ficou de luto com ele.

Aí, veio a notícia de que um brigue tripulado com os nove marinheiros e o capitão malvado tinha sido soprado até Corinto por uma tempestade. Periandro enviou mensageiros para ordenar que a tripulação fosse à sua presença, mandando que Árion ficasse longe enquanto ele os questionava.

— Era para vocês terem trazido o meu bardo, Árion, de volta de Tarento — disse. — Onde está ele?

— Ai, venerável majestade — começou o capitão. — É tão triste. O pobre rapaz foi arrastado para o mar pela tempestade. Recuperamos o corpo e demos a ele um respeitoso funeral marítimo. Muita pena. Rapaz encantador, popular entre toda a tripulação.

— Foi, realmente. Camarada agradável. Perda terrível… — murmuraram os marinheiros.

— Seja lá como for — disse Periandro —, tive notícias de que ele venceu sua competição de canto e chegou até vocês com uma arca do tesouro, metade da qual é de minha propriedade.

— Quanto a isso… — O capitão abriu as mãos. — A arca foi perdida durante o jogo violento da tempestade. Ela se abriu e escorregou pelo convés para o mar, e só conseguimos recuperar algumas pequenas peças. Uma lira de prata de algum tipo, um aulos, um ou dois enfeites. Gostaria que tivesse sido mais, senhor, gostaria mesmo.

— Compreendo… — Periandro franziu a testa. — Reúnam-se amanhã de manhã junto ao novo monumento nas docas reais. Não têm como errar. Há um golfinho esculpido no topo. Tragam o que restou daquele tesouro e talvez eu permita que vocês fiquem com a parte de Árion, agora que o pobre garoto está morto. Podem ir embora.

— Não se preocupe — disse Periandro ao relatar a Árion tudo o que tinha sido dito. — A justiça será feita.

Na manhã seguinte, o capitão e seus homens chegaram cedo ao monumento. Estavam rindo, relaxados, felizes com o fato de poderem devolver apenas uma pequena porção do tesouro de Árion e até esperar que o crédulo tirano lhes desse um quinhão dele.

Periandro chegou com os guardas do palácio exatamente na hora marcada.

— Bom dia, capitão. Ah, o tesouro. Isso foi tudo o que conseguiram salvar? Sim, entendo o que diz, não foi muito, não é? Agora, lembrem-me, o que aconteceu com Árion?

O capitão repetiu a história fluente e facilmente, palavra por palavra, as mesmas que tinha dito no dia anterior.

— Então, ele está realmente morto? Você realmente resgatou o corpo, preparou o enterro e depois o devolveu às ondas?

— Absolutamente.

— E essas bugigangas são tudo o que restou do tesouro?

— É com pena que digo isso, majestade, mas são.

— Então, como — perguntou Periandro — você explica a descoberta disso escondido nas reentrâncias da madeira do seu navio?

A um sinal, alguns guardas se adiantaram trazendo uma padiola na qual estava disposto o grosso do tesouro.

— Ah, é. Bem… — o capitão deu um sorriso insinuante. — Besteira, a gente tentar enganá-lo, venerado senhor. O pobre garoto morreu, como eu disse, e lá estava seu tesouro. Nós não passamos de pobres marinheiros trabalhadores, senhor. Sua sabedoria e astúcia nos descobriram.

— Muito bem — disse Periandro. — Mas ainda estou intrigado. Eu mandei fazer uma cítara para Árion, de prata, ouro e marfim. Ele nunca ia a lugar algum sem ela. Por que não está aqui, entre as outras coisas?

— Bem — explicou o capitão. — Eu disse como gostávamos do jovem Árion. Como um irmão mais moço, para nós, não é, rapazes?

— Sim, sim… — murmuraram os marinheiros.

— Sabíamos o que aquela cítara significava para ele. Nós a pusemos na mortalha, antes de entregar seu corpo às ondas. Como poderíamos fazer de outra maneira?

Periandro sorriu. O capitão sorriu. Mas o sorriso desapareceu subitamente. Da boca do golfinho dourado no topo da coluna, saiu o som de uma cítara. O capitão e seus homens olharam assombrados. A voz de Árion se juntou às notas da cítara, e estas foram as palavras que saíram da boca do golfinho esculpido:

“Matem-no, homens”, o capitão disse.

“Matem-no agora e peguem o ouro dele.”

“Vamos matá-lo agora”, gritaram os marinheiros.

“E jogá-lo aos tubarões.”

“Mas parem”, disse o menestrel. “Só me deixem cantar

Uma canção final de despedida.”

Um dos marinheiros deu um grito de medo. Os outros caíram de joelhos, tremendo. Só o capitão, pálido, ficou de pé.

Uma porta se abriu no pedestal da estátua e o próprio Árion saiu do monumento, tangendo sua cítara e cantando:

Mas o golfinho veio e o salvou.

Ele o cavalgou pelas ondas.

Atravessaram o mar para Corinto,

O golfinho e o bardo.

Os marinheiros começaram a chorar e berrar, implorando por perdão. Jogavam a culpa uns nos outros e, mais especialmente, no capitão.

— Tarde demais — declarou Periandro, girando nos calcanhares. — Matem-nos todos. Agora, venha comigo, Árion, e cante uma canção de amor e vinho.

No fim da longa e bem-sucedida vida do músico, Apolo, para quem golfinhos e música eram sagrados, instalou Árion e seu salvador em meio às estrelas, entre Sagitário e Aquário, como a constelação de Delphinus, o Golfinho.

De sua posição nos céus, Árion e seu salvador podiam ajudar os navegantes lá embaixo e nos lembrar a todos do estranho e maravilhoso parentesco que existe entre a humanidade e os golfinhos.