Filémon e Báucis ou: A Hospitalidade Recompensada – Mitologia Grega

Nas colinas da Frígia oriental, na Ásia Menor, um carvalho e uma tília crescem lado a lado, os galhos se tocando. É um cenário simples, rural, longe de quaisquer palácios reluzentes ou cidadelas altaneiras. Ali, camponeses e lavradores pelejam pela vida, inteiramente dependentes da clemência de Deméter para o amadurecimento de suas colheitas e a engorda de seus porcos. O solo não é rico, e é sempre uma luta para as pessoas encherem seus celeiros com forragem suficiente para passar os meses de inverno, na época em que Deméter definha e lamenta a ausência, no mundo superior, de sua alegre filha, Perséfone. O carvalho e a tília, por menos impressionantes que pareçam se comparados aos bosques grandiosos de álamos e às elegantes avenidas de ciprestes que orlam as estradas conectando Atenas e Tebas, são, no entanto, as árvores mais sagradas no mundo mediterrâneo. Os sábios e virtuosos fazem peregrinações até elas e penduram presentes votivos em seus galhos.

Há muitos anos, um assentamento cresceu no vale abaixo. Em tamanho, era algo entre uma cidade e uma aldeia. Chamava-se, com aquele desespero esperançoso que sempre marca o nome de assentamentos fracassados, Eumeneia, que quer dizer “o lugar dos meses bons” – numa última expectativa de que Deméter fosse sempre abençoar a terra estéril do lugar e prover colheitas abundantes. Isso raramente aconteceu.

No centro da ágora, a praça principal, havia um grande templo de Deméter, em frente a outro quase do mesmo tamanho dedicado a Hefesto (porque as pessoas precisavam que suas forjas e oficinas fossem abençoadas). Podiam-se ver pela cidade muitos santuários votivos para Héstia e Dioniso. Os vinhedos esparsos que montavam as encostas eram cuidados com tanto esmero quanto quaisquer oliveiras ou campos de milho. A vida era dura, mas homens e mulheres encontravam grande consolo no vinho azedo da região.

No topo de uma alameda sinuosa que levava para fora da cidade, em um pequeno chalé, morava um velho casal, FILÉMON e BÁUCIS. Eles estavam casados desde muito jovens e agora, em sua velhice, se amavam tão profundamente quanto sempre, com uma intensidade discreta e inabalável que divertia os vizinhos. Eram mais pobres do que a maioria, seus campos eram os piores e mais estéreis em toda a Eumeneia, mas nunca ninguém os ouviu reclamar. Todos os dias, Báucis ordenhava sua única cabra, capinava, costurava, lavava e remendava, enquanto Filémon semeava, plantava, cavava e roçava a terra atrás de seu chalé. No final da tarde, eles colhiam cogumelos, catavam lenha ou simplesmente caminhavam pelas colinas, de mãos dadas, conversando sobre isso e aquilo ou contentes em ficarem juntos em silêncio. Se houvesse comida suficiente para jantarem, eles comiam, se não, iam para a cama com fome e dormiam um nos braços do outro. Seus três filhos há muito tinham se mudado e criavam suas próprias famílias bem longe. Nunca vinham visitar, e a probabilidade de alguém bater à porta era muito remota. Até uma tarde fatal.

Filémon tinha acabado de voltar dos campos e estava sentado, se preparando para seu corte de cabelo mensal. Naquela época, havia muito pouco para cobrir sua velha careca, mas aquele era um ritual mensal que dava muito prazer aos dois. O ruidoso “pá-pá-pá” na porta quase fez com que Báucis deixasse cair a navalha que estava amolando. Olharam um para o outro, muito surpresos, incapazes de se lembrar da última vez que alguém tinha vindo visitá-los.

Dois estranhos estavam na soleira, um homem barbado e seu companheiro mais novo, de rosto liso. Seu filho, talvez.

— Olá — cumprimentou Filémon. — Como podemos ajudá-los?

O mais jovem sorriu e tirou o chapéu, um estranho boné redondo com aba estreita.

— Boa tarde, senhor — disse ele. — Somos um par de viajantes famintos, recém-chegados a esta parte do mundo. Queria saber se poderíamos abusar de sua boa vontade…

— Entrem, entrem! — disse Báucis, alvoroçando-se atrás do marido. — Está frio para ficar do lado de fora nesta época do ano. Estamos mais alto do que o resto da cidade, sabem, e sentimos um pouco mais de frio. Filémon, por que não acende o fogo para que nossos hóspedes possam se aquecer?

— Claro, meu amor, claro. Onde estão meus bons modos? — Filémon se inclinou e soprou na lareira, avivando as brasas.

— Deixe-me guardar seus agasalhos — disse Báucis. — Sente-se ao lado do fogo, senhor. E o senhor, insisto.

— É muita gentileza — disse o mais velho dos dois. — Meu nome é Astrapos, e este é meu filho Arguros.

O jovem se inclinou com um floreio à menção de seu nome e sentou-se ao lado do fogo.

— Estamos com muita sede — disse, com um bocejo ruidoso.

— Vocês têm de beber alguma coisa — falou Báucis. — Marido, vá buscar a jarra de vinho e eu vou trazer figos secos e pinhões. Espero que os cavalheiros consintam em jantar conosco. Não podemos oferecer grande coisa, mas serão muito bem-vindos.

— Se pudermos… — disse Arguros.

— Deixe-me guardar seu chapéu e seu bastão…

— Não, não, eles ficam comigo. — O jovem puxou o bastão mais para perto de si. Tinha um formato muito curioso. Seria uma vinha que estava esculpida em torno dele todo?, pensou Báucis. Ele o estava rodando tão habilmente que a coisa toda parecia viva.

— Receio — disse Filémon chegando com uma jarra de vinho — que vocês achem o nosso vinho local um pouco ralo e talvez um pouco… ácido. As pessoas das regiões vizinhas zombam de nós por causa disso, mas garanto que, uma vez acostumados, ele pode ficar razoavelmente bebível. Pelo menos, nós achamos.

— Nada mal — comentou Arguros depois de um gole. — Como é que você fez o gato sentar na jarra?

— Não prestem atenção nele — recomendou Astrapos. — Ele acha que é engraçado.

— Bem, tenho de admitir que foi mesmo engraçado — disse Báucis, aproximando-se com frutas e nozes num prato de madeira. — Não gosto de pensar, jovem senhor, no que dirá a respeito da aparência dos meus figos secos.

— Você está usando uma blusa, de modo que eu não posso vê-los. Mas as frutas em conserva nesse prato parecem bastante agradáveis.

— Senhor! — Báucis deu-lhe um tapinha brincalhão, enrubescendo. Que rapaz estranho.

O leve constrangimento que em geral aparece na fase de drinques e aperitivos de uma noite foi rapidamente aliviado pela ousadia e alegria de Arguros e pelo riso fácil de seus anfitriões. Astrapos parecia estar num humor mais sombrio e, quando foram para a mesa, Filémon pôs uma mão em seu ombro.

— Espero que perdoe a curiosidade de um velho bobo, senhor — disse ele —, mas você parece um tanto distraído. Haverá alguma coisa que possamos fazer para ajudá-lo?

— Ah, não dê atenção a ele. Está sempre desanimado — falou Arguros. — Na verdade, nada que uma boa refeição não cure.

Báucis e Filémon se entreolharam durante um instante. Havia tão pouco na despensa… Um lado de toicinho salgado, que eles estavam guardando para a festa do meio do inverno, alguma fruta em conserva, pão preto e metade de um repolho. Eles sabiam que passariam fome durante uma semana se alimentassem metade do apetite desses homens comilões. Mas a hospitalidade era uma coisa sagrada e as necessidades dos hóspedes sempre tinham de vir em primeiro lugar.

— Mais um copo de vinho não ia fazer mal — pediu Arguros.

— Ai, meu deus — disse Filémon, olhando para a jarra —, temo que tenha acabado…

— Bobagem — disse Arguros, agarrando-a —, ainda há bastante. — Ele encheu seu copo e, depois, também o de Astrapos.

— Estranho — comentou Filémon. — Eu podia jurar que a jarra só estava cheia por um quarto.

— Onde estão os copos de vocês? — perguntou Arguros.

— Ah, por favor, nós não precisamos de…

— Imagine. — Arguros se inclinou para trás na cadeira e pegou duas taças de madeira na mesa lateral atrás dele. — Agora, então… Vamos fazer um brinde.

Filémon e Báucis estavam perplexos, não apenas porque havia vinho suficiente na jarra para encher os copos deles até a beirada, mas também porque a qualidade era muito melhor do que qualquer um dos dois lembrava. Aliás, a não ser que estivessem sonhando, era o vinho mais delicioso que jamais tinham provado.

Num tipo de estupor, Báucis limpou a mesa com folhas de hortelã.

— Querida — Filémon cochichou em seu ouvido —, aquele ganso que íamos sacrificar para Héstia no mês que vem. Certamente, é mais importante alimentar os nossos hóspedes. Héstia vai entender.

Báucis concordou.

— Vou lá torcer o pescoço dele. Veja se consegue um fogo quente o bastante para que fique um belo assado.

No entanto, ela não conseguiu pegar o ganso. Não importa o cuidado com que Báucis esperasse e atacasse, todas as vezes, ele pulava, gritando, para fora de seu alcance. Ela voltou ao chalé num estado de decepção agitada.

— Cavalheiros, lamento tanto — ela disse, com lágrimas nos olhos. — Temo que sua refeição tenha de ser crua e desagradável.

— Psiu, senhora — disse Arguros, servindo mais vinho para todo mundo. — Nunca compartilhei um banquete melhor.

— Senhor!

— É verdade. Conte a eles, pai.

Astrapos deu um sorriso sombrio.

— Fomos mandados embora de cada casa em Eumeneia. Alguns dos habitantes nos xingaram. Alguns cuspiram em nós. Alguns jogaram pedras. Alguns atiçaram os cachorros. A sua foi a última casa que tentamos, e vocês só nos mostraram bondade e um espírito de xênia que eu estava começando a temer que tinha desaparecido do mundo.

— Senhor — disse Báucis, buscando a mão de Filémon por baixo da mesa e apertando-a. — Só podemos pedir desculpas pelo comportamento de nossos vizinhos. A vida é dura e eles nem sempre foram criados aprendendo a venerar as leis da hospitalidade como deviam.

— Não é preciso desculpá-los. Estou zangado — disse Astrapos, e, quando ele falou, pôde-se ouvir o rugido de um trovão.

Báucis olhou nos olhos de Astrapos e viu alguma coisa que a atemorizou.

Arguros riu.

— Não fique alarmada — disse ele. — Meu pai não está zangado, ele está satisfeito com vocês.

— Saiam do chalé e subam o morro — mandou Astrapos, levantando-se. — Não olhem para trás. Aconteça o que acontecer, não olhem para trás. Vocês fizeram jus a sua recompensa e seus vizinhos mereceram o castigo.

Filémon e Báucis levantaram-se, dando-se as mãos. Sabiam agora que seus visitantes eram algo além de viajantes comuns.

— Não precisam fazer mesuras — disse Arguros.

O pai apontou para a porta.

— Para cima do morro.

— Lembrem — Arguros gritou para eles —, nada de olhar para trás.

De mãos dadas, Filémon e Báucis caminharam morro acima.

— Você sabe quem era aquele rapaz? — questionou Filémon.

— Hermes — disse Báucis. — Quando ele abriu a porta para nos deixar sair, eu vi as cobras enroladas no bastão dele. Estavam vivas!

— Então, o homem que ele chamava de pai era… devia ser…

— Zeus!

— Oh, meu deus! — Filémon fez uma pausa na encosta para recuperar o fôlego. — Está ficando tão escuro, meu amor… O som do trovão está se aproximando. Imagino se…

— Não, querido, não podemos olhar para trás. Não podemos.

Desgostoso com a hostilidade e as desavergonhadas violações das leis da hospitalidade demonstradas pelos moradores de Eumeneia, Zeus tinha resolvido fazer com aquela comunidade o que tinha feito na época de Deucalião e o Grande Dilúvio. As nuvens, sob seu comando, se juntaram em uma densa massa, os raios relampejaram, os trovões ribombaram e a chuva começou a cair.

Quando o casal idoso conseguiu chegar ao topo do morro, torrentes de água passavam jorrando por eles.

— Não podemos simplesmente ficar aqui na chuva, dando as costas para a cidade — disse Báucis.

— Se você olhar, eu olho.

— Eu o amo, Filémon, meu marido.

— Eu a amo, Báucis, minha mulher.

Eles se viraram e olharam para baixo. Fizeram isso no momento exato de ver uma grande inundação engolindo Eumeneia, antes de Filémon ser transformado em um carvalho e Báucis, em uma tília.

Durante centenas de anos, as duas árvores ficaram lado a lado, símbolos do amor eterno e da bondade humilde, seus galhos entrelaçados todos pendurados com prendas de peregrinos admiradores.