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Cadmo – Mitologia Grega

O touro branco

Graças a Faetonte, as terras desérticas e as regiões polares geladas faziam agora com que os homens tivessem de lidar com temperaturas extremas, além do ciclo sazonal provocado pela estadia de Perséfone no mundo inferior. A lição de Faetonte, no entanto, não impediu que a humanidade buscasse ir sempre mais alto. Nenhuma lição, por mais sombria que seja, parece nos deter. Pela Grécia inteira, reinos continuavam a surgir e a cair. O mundo grego, naquela época, abrangia também a Ásia Menor, aquele inchaço que cobre o que hoje chamamos de Turquia, além da Síria e das terras do Levante (o Líbano moderno). A influência dessa parte do mundo sobre a cultura e a mitologia gregas foi imensa, produzindo muito comércio, escrita alfabética e, por fim, a fundação do primeiro exemplo de polis, a cidade-Estado que viria a atingir o seu auge com o estabelecimento de Troia, Esparta e Atenas. É uma história de Zeus, transformações, um dragão, serpentes, uma cidade e um casamento.

O rei da cidade levantina de Tiro, AGENOR (filho de Poseidon e Líbia), e sua rainha, TELÉFASSA (filha de Nilo e da ninfa das nuvens NEFELE) tiveram cinco filhos: uma menina, Europa, e quatro meninos, CADMO (ou, algumas vezes, na grafia mais grega, KADMOS), CÍLIX, FÊNIX e TASOS.

Os filhos de Agenor estavam, certa tarde, brincando em um prado coberto de flores, quando Europa se afastou de seus irmãos. Tinha sido atraída por um lindo touro branco que pastava na relva alta. Quando ela se aproximou, o animal ergueu a cabeça e olhou para ela. Fascinada por alguma coisa em seu olhar, ela se aproximou ainda mais. O hálito do touro era suave e seu focinho, macio e acariciável. Ela teceu guirlandas de flores em torno dos chifres dele e passou os dedos pelo seu dorso grosso, calidamente convidativo. Depois, sem nem saber bem por quê, ela subiu nas costas dele. Inclinou-se para a frente e pegou um chifre em cada mão.

— Oh, coisa mais linda — ela soprou nos ouvidos dele. — Tão forte, sábio e gentil.

O animal, com um movimento da imensa cabeça, começou a trotar para a frente. O trote logo se transformou em algo próximo a um galope. Europa ria e o incentivava a continuar.

Cadmo e seus irmãos mais novos estavam competindo para ver quem conseguia jogar uma pedra mais longe (Cadmo sempre ganhava – era um atirador de pedras, discos e lanças especialmente talentoso). Eles se viraram exatamente a tempo de ver sua irmã ser carregada nas costas de um touro até desaparecer. Correram atrás o mais rápido que podiam, mas o touro ia numa velocidade inacreditável. Pareceu aos irmãos, por mais impossível que fosse, que os cascos do animal já não tocavam mais o chão.

Em pânico, chamaram Europa pelo nome e gritaram para ela se atirar no chão, mas ou ela não ouviu, ou não deu atenção a eles. O touro subiu cada vez mais alto no ar até desaparecer da vista.

Cadmo voltou para casa e deu a notícia aos pais, o rei Agenor e a rainha Teléfassa. Ruidosas foram as lamentações e recriminações.

Enquanto isso, o touro branco voou com Europa cada vez mais para oeste do reino dela, Tiro, através do Mediterrâneo, na direção das ilhas gregas. Encantada e completamente destemida, Europa riu quando a primeira terra faiscou embaixo dela, e depois, o mar. Europa estava fascinada. A viagem foi tão notável que toda a massa de terra a oeste de sua terra natal foi, desde então, chamada de Europa em sua homenagem.

Não pararam até chegarem à ilha de Creta, onde o touro se revelou ser…

… quem mais senão Zeus?

Se foi a transformação de Io numa novilha o que o inspirou a tomar o formato de um touro, não temos como saber, mas o truque pareceu funcionar, porque Europa permaneceu muito feliz em Creta pelo resto de sua vida. Ela viria a dar a Zeus três filhos, Minos, Radamanto e Sarpedão – que depois de mortos foram ser, você pode lembrar, juízes no mundo inferior, pesando as vidas das almas mortas e atribuindo as punições e recompensas de acordo.

A busca por Europa

De volta a Tiro, os infelizes pais de Europa mandaram Cadmo e seus três irmãos irem encontrar a irmã deles, com instruções firmes de nem pensar em voltar para casa sem ela.

Os habitantes de Tiro já eram navegantes e comerciantes famosos. O irmão de Cadmo, Fênix (não confundir com a ave mítica), viria a suceder Agenor como governante do reino, que renomeou de Fenícia em homenagem a si próprio. As habilidades dos fenícios como mercadores trariam a eles grande riqueza e prestígio. Eles comerciavam seda e especiarias do Extremo Oriente, mas foi a invenção e propagação do alfabeto o que lhes deu uma vantagem tão grande sobre seu vizinhos e rivais. Pela primeira vez na história da humanidade, podia-se escrever qualquer língua de acordo com o seu som, o que significava que todo o litoral mediterrâneo, inclusive o Norte da África e o Oriente Médio, conseguiu se comunicar pela primeira vez usando símbolos, gravados sobre papiros, pergaminho, cera ou cacos de cerâmica, e que podiam ser citados em voz alta. As marcas na página ou na tela que você agora está interpretando enquanto lê derivam daquele alfabeto fenício. E foi Cadmo quem levou a maravilhosa invenção de seu povo para a Grécia, no curso de sua longa procura por Europa.

Durante anos, viajaram em vão. Por algum motivo, talvez alguma influência divina invisível, Creta parecia ser o único lugar onde não procuraram. A ilha em que desembarcaram por mais tempo foi Samotrácia, bem ao norte do Egeu.

Em Samotrácia morava uma Plêiade chamada ELECTRA. As Plêiades, ou Sete Irmãs, eram (como você deve se lembrar) filhas de Atlas e da Oceânide Pleione. Essa Electra tinha tido, com Zeus, dois filhos, DARDANO e IASIÃO, além de uma filha, HARMONIA. Cadmo ficou imediatamente cativado pela beleza e pelos modos doces e plácidos de Harmonia e a levou com ele em sua busca. Não se sabe se de início ela estava lá muito a fim, mas o casal saiu de Samotrácia e se dirigiu para a Grécia – ostensivamente em busca de Europa, mas, na verdade, no que dizia respeito a Cadmo, atrás de um objetivo maior.

O oráculo fala

Cadmo é muitas vezes chamado “o Primeiro Herói”. Se quiser fazer as contas, você verá que ele era um ser de quinta geração, de genitores igualmente humanos e divinos. Podia traçar sua linhagem até o início da vida através de seu avô paterno, Poseidon, cujo pai era Cronos, filho de Urano. Pelo lado de sua avó, Líbia, ele descendia de Ínaco, acrescentando uma quantidade de sangue humano real ao sangue que já corria em suas veias. Tinha a inquietude e a sede de correr o mundo características do herói, além das doses necessárias de coragem, c onfiança e autoconfiança. Poseidon gostava do neto, como era natural, mas ele era o queridinho e protegido de Atena, especialmente agora que tinha se aliado a Harmonia, uma das mais devotas seguidoras da deusa.

Exatamente como o irmão de Cadmo, Tasos, tinha se estabelecido numa ilha menor nas imediações, batizada Tasos, e Fênix tinha dado seu nome ao reino fenício, o terceiro dos irmãos de Cadmo, Cílix, abandonou a busca por Europa, voltando para o leste, para a Ásia Menor, com o fim de estabelecer seu próprio reino, que ele chamou de Cilícia.

Com Harmonia a seu lado e uma grande comitiva de seguidores leais de Tiro para servir aos dois, Cadmo seguiu para Delfos, a fim de consultar o oráculo. Como todos os heróis, ele sabia, no fundo, que estava destinado a grandes feitos, mas não sabia bem qual seria o seu futuro; ainda precisava de orientação na questão da busca pela perdida Europa.

Você já sabe o suficiente sobre oráculos para não ficar surpreso com a excentricidade da resposta de Pítia.

— Cadmo, filho de Agenor, filho de Poseidon — entoou ela. — Deixe de lado a busca por sua irmã e siga a novilha marcada com uma meia-lua. Siga a vaca até que ela caia de exaustão. Onde a vaca cair, lá você deverá construir.

— Construir o quê?

— Adeus, Cadmo, filho de Agenor, filho de Poseidon.

— Sim, mas essa vaca…

— A novilha com a meia-lua ajudará Harmonia e seu herói, filho de Agenor, filho de Poseidon.

— Olha só…

— Ade-e-e-e-us…

Cadmo e Harmonia se entreolharam, deram de ombros e saíram de Delfos com sua comitiva de tirienses leais. Era possível que uma vaca realmente se materializasse magicamente à frente deles, ou talvez algum mensageiro celeste aparecesse para levá-los até tal animal. Enquanto isso, eles podiam ficar olhando em torno.

Pois bem. Delfos e seu oráculo, estádios e templos ficam situados na região da Grécia chamada Fócida. O rei da Fócida, PELAGON, ouvindo falar que Harmonia e Cadmo – a essa altura, famoso pela terra toda por causa de seu presente do alfabeto – estavam na área, enviou mensageiros para os convidar como hóspedes de honra no palácio real. Era um convite que o casal, cansado da viagem e sua comitiva faminta, teve o maior prazer em aceitar.

Os Jogos Focenses

Três dias de banquetes e festanças em sua honra tinham passado agradavelmente e sem percalços, quando Cadmo e Harmonia, entre um banquete e outro, dando um passeio vespertino pelos jardins do palácio, viram, impedindo seu caminho, o pai de Pelagon, ANFIDAMAS.

— Tive um sonho — disse Anfidamas, chegando perto do casal e exalando vapores de vinho de mel para cima deles — no qual você, Cadmo, corria, atirava lanças e discos e ganhava os maiores prêmios que o mundo já viu. Veja, meu filho Pelagon amanhã inaugura os Jogos Focenses. Uma pequena reunião local, mas sonhos são sonhos e têm um objetivo. Quando é que Morfeu mente? Meu conselho é que você participe. — Com um soluço benevolente, ele foi embora.

— Bem, e agora? — questionou Cadmo, pondo um braço em torno da cintura de Harmonia e olhando pensativamente para a lua. — Por que não? Ainda está para nascer o homem que consiga atirar um disco ou uma lança tão longe quanto eu. E acho que sou bastante rápido na pista, também.

— Meu herói! — suspirou Harmonia, enterrando a cabeça no peito dele. Ela não fez isso por admiração adoradora, mas para abafar o riso: achava a vaidade dos homens, quando se tratava de proezas físicas, infinitamente divertida.

A concorrência contra a qual Cadmo se lançou no dia seguinte consistia principalmente de jovens locais insignificantes e guardas barrigudos do palácio. Quando ele mandou o disco direto para fora dos terrenos do palácio, tiveram de mandar um servidor ir buscá-lo e a multidão aplaudiu. Ao final da tarde, Cadmo tinha vencido todas as competições. Harmonia olhava furiosa para as mulheres e meninas que mandavam beijos e jogavam flores aos pés dele.

Pelagon, que não era um monarca rico, enviou seu mordomo em busca de um prêmio adequado para seu nobre victor ludorum.

— Povo da Fócida — exclamou o rei, colocando uma coroa de folhas de oliveira, trançada às pressas, na testa de Cadmo —, contemplem seu campeão, nosso honrado hóspede, o príncipe Cadmo de Tiro. E aqui está um prêmio digno de sua grande velocidade, força e graça.

Houve um ruidoso aplauso, que caiu num silêncio surpreso quando o mordomo do palácio apareceu pela multidão tocando uma grande vaca. O silêncio borbulhou numa risadinha e a risadinha explodiu numa gargalhada. A vaca mastigou o rúmen, ergueu a cauda e espalhou do traseiro um jato de bosta líquida. A multidão vaiou, zombeteira.

Pelagon ficou rubro. O pai dele, Anfidamas, disse para Cadmo, com uma piscadela:

— Ah, bem. Morfeu não pode acertar todas as vezes, hein?

Mas Harmonia cutucou Cadmo, muito animada.

— Olhe — sussurrou ela. — Olhe, Cadmo, olhe!

Cadmo viu imediatamente o que atraíra a atenção dela. Nas costas da vaca, havia uma marca no formato de uma meia-lua. Não havia outra maneira de descrevê-la. Claramente uma meia-lua!

Pelagon estava murmurando alguma coisa pouco convincente no ouvido dele a respeito do pedigree do animal, de quanto dava de leite por dia, mas Cadmo interrompeu-o.

— Sua majestade não poderia ter encontrado um prêmio mais maravilhoso e mais bem-vindo! Estou fascinado de encanto e gratidão.

— Está? — disse um Pelagon ligeiramente atônito.

O mordomo ficou tão espantado que deixou cair a chibata de salgueiro com que vinha batendo no bicho para empurrá-lo na direção do pódio do vencedor. Levou mais ou menos uns trinta segundos para que a novilha, percebendo que já não havia aquela chicotada ardida para obrigá-la a avançar, desse a volta e começasse a se afastar.

— De verdade — disse Cadmo, pulando do pódio e ajudando Harmonia a descer depois dele. — É mesmo o presente perfeito. Exatamente o que queríamos…

A vaca atravessou a multidão. Cadmo e Harmonia, de costas para o grupo real, começaram a segui-la. Por cima do ombro, Cadmo gritou para o rei, gaguejando agradecimentos e cortesias incoerentes:

— Sua majestade nos desculpe… uma estadia magnífica… tão gratos por sua hospitalidade… comida excelente, diversões maravilhosas… muita bondade… ahn… adeus…

— Muito obrigado — repetiu Harmonia. — Jamais esqueceremos. Nunca. A novilha mais linda! Até logo.

— M-mas! O quê? Quer dizer…? — balbuciou Pelagon, intrigado por essa despedida rápida e súbita. — Achei que vocês iam ficar até amanhã.

— Não temos tempo. Venham, homens. Conosco! — gritou Cadmo, chamando sua comitiva de servidores, homens de armas, seguidores de acampamentos e atendentes tirienses. Afivelando armaduras em movimento, deixando cair comida e beijando adeuses para novos amigos, eles alcançaram Cadmo, Harmonia e a vaca.

— Doido — disse Anfidamas, observando a pluma de poeira espiralar para o alto a distância, à medida que o exército confuso de Cadmo desaparecia das vistas. — Bem doido. Eu disse isso desde o início.

O dragão aquático

Durante três dias e três noites, Cadmo, Harmonia e seu séquito de tirienses fiéis seguiram sua novilha com a marca da meia-lua enquanto ela se arrastava subindo e descendo morros, por entre prados, campos e atravessando riachos. Pareciam estar viajando para sudeste, na direção da província da Beócia.

Harmonia acreditava que a novilha era a própria Europa. Afinal de contas, ao raptá-la, Zeus tinha se transformado num touro, então, por que não poderia ela também ter se transformado num bovino? Cadmo, hipnotizado pelo balanço rítmico do amplo traseiro da vaca, estava mais inclinado a achar que a coisa toda era uma brincadeira cruel para confundi-lo.

De repente, depois de descer um morro íngreme e chegando à orla de uma ampla planície, a novilha deitou-se pesadamente e deu um gemido de exaustão.

— Meu deus — disse Cadmo.

— Exatamente como o oráculo profetizou! — exclamou Harmonia. — O que Pitia falou? “Onde a vaca cair, lá você deverá construir.” Então…

— Então? — protestou Cadmo, chateado. — O que você quer dizer com “então”? Construir? Construir o quê? Construir como?

— Sabe o que mais? — disse Harmonia. — Vamos sacrificar a vaca para Palas Atena. A pobrezinha já está mesmo quase morta. Atena nos guiará.

Cadmo concordou em erguer um tipo primitivo de acampamento ali mesmo. Para que pudesse purificar adequadamente o sacrifício, mandou que alguns de seus homens trouxessem água de uma fonte por perto.

Cadmo cortou a garganta da vaca e estava justamente salpicando o sangue dela num altar improvisado enfeitado com flores silvestres e sálvia queimada quando um dos tirienses voltou no mais lamentável estado de aflição, trazendo más notícias. A fonte era guardada por um dragão sob a forma grotesca de uma serpente gigante. Já tinha matado quatro homens, apertando-os em seus anéis e arrancando-lhes a cabeça com suas enormes mandíbulas. O que poderiam fazer?

Heróis não torcem as mãos e pensam no que fazer, heróis agem. Cadmo correu para a fonte, apanhando no caminho uma pedra bem pesada. Escondeu-se atrás de uma árvore, assobiou para atrair a atenção do dragão e depois atirou a pedra na cabeça dele, esmagando seu crânio e matando-o imediatamente.

— Chega de serpentes aquáticas — disse Cadmo, olhando para o sangue e os miolos do monstro, que se misturavam à água da fonte.

Uma voz ressoou firme e forte.

— Filho de Agenor, por que você fica olhando para a serpente que matou? Você também será uma serpente e suportará os olhares de estranhos.

Cadmo olhou em torno, mas não conseguiu ver ninguém. A voz deve ter soado dentro dele. Sacudiu a cabeça e voltou para o acampamento, igualmente encantado com o aplauso de seus apoiadores e pelos beijos de admiração de Harmonia, a quem ele não disse nada a respeito da voz que ouvira.

Longe o suficiente para que Cadmo não escutasse, um de seus homens ofegava com o contentamento irritante daqueles que têm más notícias a dar. Esse homem vinha da Beócia e cochichou para seus companheiros, sacudindo a cabeça judiciosamente, que Drakon Ismenios, o Dragão Ismênio que Cadmo acabara de matar, era conhecido por ser consagrado a Ares, o deus da guerra. De fato, continuou ele, algumas pessoas acreditavam que fosse filho de Ares!

— Nada de bom pode resultar daí — disse, fazendo muxoxos. — Você não aborrece impunemente o deus das batalhas. Não mesmo. Não faz a menor diferença quem seu avô é.

Vale reconhecer, aqui, que um dos desafios mais penosos enfrentados pelos heróis e mortais naquele tempo tinha a ver com os relacionamentos com os diferentes deuses. Era um negócio delicado trilhar pelo ciúme e pelas animosidades dos olímpicos. Mostrando lealdade e serviço demais a um, você arriscava provocar a inimizade de outro. Se Poseidon e Atena gostassem de você como gostavam de Cadmo e Harmonia, por exemplo, era alta a probabilidade de Hera, ou Ártemis, ou Ares, ou até o próprio Zeus fazerem o possível para o atrapalhar ou empatar. E os céus que ajudassem o idiota que matasse um de seus preferidos. Todos os sacrifícios e oferendas votivas no mundo não conseguiam apaziguar um deus afrontado, um deus vingativo, um deus que tivesse ficado sem graça na frente dos outros.

Cadmo, ao matar um favorito de Ares, certamente tinha feito do mais agressivo e impiedoso dos deuses um inimigo.[122] Só que ele não sabia nada disso, porque os murmúrios nas fileiras de sua comitiva não tinham chegado aos seus ouvidos. Ele alegremente acendeu o incenso e completou seu sacrifício a Atena, achando que as coisas iam sair muito bem para o lado dele. Esse sentimento foi reforçado pela aparição imediata e benévola de Atena. Satisfeita com a oferenda da novilha, ela deslizou da nuvem de fumaça fragrante que Cadmo tinha mandado para cima e favoreceu seus humildes adoradores com um sorriso grave.

Os dentes do dragão

— Levante-se, filho de Agenor — disse a deusa, dando um passo à frente e erguendo o suplicante Cadmo. — Seu sacrifício foi agradável para nós. Se seguir cuidadosamente as minhas instruções, tudo ficará bem. Are a planície fértil. Are-a bem. Depois, semeie os sulcos com os dentes do dragão que você matou.

Com essas palavras, ela deu um passo atrás, para dentro da fumaça, e sumiu. Se Harmonia e os outros não tivessem confirmado que eles tinham também ouvido exatamente as mesmas palavras ditas por Atena, Cadmo podia pensar que as tinha sonhado. Mas instruções divinas são instruções divinas, por mais estranhas que pareçam. Aliás, quanto mais estranhas, Cadmo estava começando a perceber, mais provável que fossem divinas.

Primeiro, ele esculpiu um arado de madeira de azinheira. Depois, como não havia animais de tração, reuniu uma equipe voluntária de seus atendentes mais leais. Eles teriam dado a vida pelo carismático Príncipe de Tiro, então, para eles, puxar um arado não era nada.

Era final da primavera e o solo da planície estava solto o suficiente para ser riscado por sulcos rasos, mas retos e bem marcados, sem precisar de um esforço assim tão terrível por parte dos tirienses.

Uma vez o campo arado, Cadmo passou a fazer covas com uns três centímetros de profundidade, com a extremidade arredondada de uma lança. Em cada cova, jogou um dente do dragão. Os dragões de água têm diversas fileiras de dentes, feito os tubarões, cada uma pronta a avançar quando a fileira da frente se desgasta de tanto moer ossos de homens. No total, Cadmo plantou quinhentos e doze dentes. Ao terminar, afastou-se para vistoriar o campo.

Soprava um leve vento pela planície, apanhando as cristas dos sulcos e fazendo subir lufadas de poeira. Remoinhos de pó iam para lá e para cá. Desceu um grande silêncio.

Harmonia foi a primeira a ver a terra em um dos sulcos se mexer. Ela apontou e todos os olhos a seguiram. Um arquejo e um grito abafado subiram do povo que observava. A ponta de uma lança estava aparecendo, depois, um elmo, seguido de ombros, uma placa peitoral, pernas protegidas por couro… até que um soldado inteiramente armado se levantou, selvagem e feroz, batendo os pés. Depois outro, e mais outro, até que o campo estava cheio de homens de luta, marchando no lugar nas linhas sulcadas. O clamor e as batidas das armaduras, o choque e os golpes de suas fivelas, seus cintos e suas botas, o clamor e as pancadas do metal e do couro de suas couraças, grevas e escudos, seu resmungo ritmado e seus gritos marciais, tudo isso cresceu a um grande estrondo horroroso que encheu de medo todos os espectadores.

Todos, menos Cadmo, que audaciosamente deu um passo à frente e levantou a mão.

— Espartos! — gritou ele pela planície, dando a eles um nome que, no grego, spartoi, significa “homens semeados”. — Meus Espartos! Eu sou o príncipe Cadmo, seu general. Descansar.

Talvez porque eles tivessem nascido de dentes de dragão puxados das mandíbulas de uma criatura sagrada para o deus da guerra, esses soldados, no início, se encheram de uma agressividade extraordinária. Em resposta ao comando de Cadmo, simplesmente bateram e sacudiram seus escudos e lanças.

— Silêncio! — gritou Cadmo.

Os guerreiros não lhe deram atenção. A marcha deles no lugar se transformou numa lenta marcha para à frente. Exasperado, Cadmo pegou uma pedra e, com sua costumeira habilidade e força, atirou sobre as fileiras. Ela atingiu o ombro de um dos soldados. O homem olhou para o soldado ao seu lado e, achando que tinha sido ele o agressor, se jogou com um rugido poderoso e com a espada desembainhada. Em instantes, gritos de batalha de gelar o sangue foram ouvidos pelo campo todo, enquanto os soldados caíam uns sobre os outros.

— Parem! Parem! Eu lhes ordeno que parem! — gritou Cadmo como um pai frenético na linha lateral observando seu filho ser esmagado em uma disputa pela bola. Batendo os pés de frustração, ele se voltou para Harmonia. — Qual é o sentido de Atena se dar a esse trabalho todo de me obrigar a criar uma raça de homens, apenas para eles destruírem uns aos outros? Olhem essa violência, essa sede de sangue. O que significa isso?

Mas, enquanto ele falava, Harmonia apontava para o centro da confusão. Cinco dos Espartos de Cadmo estavam de pé em círculo, os únicos sobreviventes. O resto jazia morto, o sangue deles empapando o solo do qual tinham vindo. Os cinco avançaram, com as espadas apontando para o chão. Chegaram até Cadmo e se ajoelharam, com a cabeça inclinada.

O alívio foi grande, grande foi a alegria dos tirienses. O dia tinha sido estranho, o mais estranho que os mortais já tinham visto em toda a história. Mas parecia haver emergido algum tipo de ordem.

— Qual é o nome deste lugar? — perguntou Cadmo. — Alguém aqui sabe?

Uma voz se elevou, a voz do homem que tinha avisado que o Dragão Ismênio era sagrado para Ares.

— Sou daqui por perto — disse ele. — Chamamos este lugar de “a planície de Tebas”.

— Então, nesta planície, vou construir uma grande cidade. Daqui em diante, não somos mais tirienses, mas tebanos — grandes gritos de vivas se elevaram. — E esses cinco Espartos serão meus senhores tebanos.

O casamento de Cadmo e Harmonia

Os Cinco Senhores Fundadores de Tebas receberam os nomes de EQUIONTE, UDEU, CTÔNIO, HIPERENOR e PELORO.

Sob a supervisão de Cadmo e de seu fiel exército de seguidores tiranienses, eles lentamente construíram uma cidadela (a Cadmeia), da qual brotou uma cidade próspera. Com o tempo, essa cidade se tornou a poderosa cidade-Estado de Tebas. A muralha que a cercava apresentava sete grandes portões de bronze, cada um dedicado à glória de um deus olímpico.

A muralha foi construída por ANFIÃO e ZETO, filhos gêmeos de Zeus e ANTÍOPE, filha do deus-rio local, ASOPO. Hermes tinha sido amante de Anfião e havia o ensinado a tocar lira. Na construção da grande muralha em torno de Cadmeia, Anfião cantou, acompanhado pela lira, e as pesadas pedras carregadas por Zeto ficaram tão encantadas pela música que flutuaram para o lugar e a muralha da cidade foi terminada rapidinho. Como resultado, Anfião e Zeto, além de Cadmo, tiveram os créditos de cofundadores de Tebas.

Terminado o trabalho, Cadmo e Harmonia se voltaram para a questão de seu casamento. Descendentes de Titãs e deuses, aliados a olímpicos e também punidos por eles, mas muito mortais e muito humanos, os dois poderiam hoje ser chamado de “casal celebridade”. Suspeito que a imprensa e a mídia social de hoje não resistiriam a apelidá-los de “Cadmonia”.

status de primeiros amantes do mundo conhecido significava que a festa de casamento alcançaria uma honra nunca antes concedida a uma união mortal, contando com a presença dos maiores da terra e dos maiores do céu. Os presentes foram estupendos. Afrodite emprestou a Harmonia sua cinta, um item de lingerie mágico que tinha o poder de provocar o desejo mais estonteante e arrebatador. Diz-se que Harmonia era muito pudica e que seu amor por Cadmo ainda não tinha se consumado. Essa cinta, emprestada pela deusa do amor e da beleza (e que podia muito bem ser a mãe natural de Harmonia) para ser usada durante a lua de mel, foi, portanto, um presente de grande valor.

Mas nenhum presente ultrapassou o colar que Cadmo deu à noiva. Era a mais linda joia que já se vira. Elaborado, com as melhores calcedônia, jaspe, esmeraldas, safiras, jade, lápis, ametista, prata e ouro, provocou suspiros de admiração entre os convidados quando ele o prendeu no pescoço de sua linda noiva. Correu um murmúrio de que tinha também sido um presente dado por Afrodite.

O murmúrio acrescentou que tinha sido feito por Hefesto. O murmúrio avançou ainda mais e sugeriu que Hefesto tinha sido impelido por sua mulher, Afrodite, a elaborar o colar, porque ela, por sua vez, tinha sido impelida a fazer isso por seu amante Ares, que – como você lembra – acalentava uma bronca contra Cadmo por ter matado o Dragão Ismênio. Acontece que a verdade cruel e chocante a respeito do colar era que ele era amaldiçoado. Profunda e irrevogavelmente amaldiçoado. Infortúnio miserável e calamidade trágica cairiam sobre a cabeça de quem o usasse ou possuísse.

Isso tudo é ao mesmo tempo confuso e fascinante. Se Ares e Afrodite fossem realmente os pais verdadeiros de Harmonia, por que quereriam destruir a própria filha? Tudo para vingar uma serpente aquática morta? Além disso, será que a doce Harmonia podia mesmo ser filha do Amor e da Guerra? E, se fosse verdade, por que o resultado suave dessas duas forças poderosas e assustadoras seria amaldiçoado por eles com tanta crueldade desnaturada?

A união de Cadmo e Harmonia parece, como a de Eros e Psiquê, sugerir um casamento de dois aspectos principais e contraditórios de nós mesmos. Talvez a tradição oriental de conquista, escrita e comércio representada por Cadmo – o nome dele deriva da velha raiz árabe e hebraica qdm, que quer dizer “do leste” – possa ser vista aqui se fundindo com amor e sensualidade para criar uma nova Grécia, dotada de ambos.

Mas, nesta história como em tantas outras, o que realmente podemos discernir é o enigma enganador, ambíguo e inconstante de violência, paixão, poesia e simbolismo que jaz no coração da mitologia grega e se recusa a ser solucionado. Uma álgebra demasiadamente instável e adequada para ser computada tem forma humana e divina, não é pura e matemática. É divertido tentar interpretar esses símbolos e as reviravoltas na narrativa, mas as substituições não funcionam exatamente e as respostas dadas, em geral, não são mais claras do que as de um oráculo ambíguo.

Então, de volta à história. O casamento foi um grande sucesso. A cinta fez seu trabalho afrodisíaco (literalmente) e o feliz casal foi abençoado com seus próprios descendentes: dois filhos, POLIDORO e ILÍRIO, e quatro filhas: AGAVE, AUTÔNOE, INO e SÊMELE.

Cadmo, entretanto, ainda tinha de pagar por ter matado o dragão. Ares o condenou a trabalhar em nome dele durante um ano olímpico, que parece corresponder a oito anos humanos.

Depois disso, Cadmo voltou a governar a cidade que tinha construído. Mas a praga do colar poluiria qualquer felicidade ou satisfação que ele pudesse ter como rei.

Destinado à poeira

Depois de muitos anos de paz e prosperidade em Tebas, uma das filhas de Cadmo e Harmonia, Agave, se casou com PENTEU, filho de Equionte, um dos cinco senhores fundadores (os últimos Espartos que sobraram, você lembra). Cansado do reinado, mas, como tantos outros heróis depois dele, incapaz de conter a coceira dos pés e a sede de viagens, Cadmo disse um dia a Harmonia:

— Vamos viajar. Vamos conhecer mais o mundo. Penteu está pronto para assumir o trono na nossa ausência.

Eles viram muita coisa. Muitas cidades e muitas metrópoles. Viajaram como um casal normal de meia-idade, sem pedir grandes recepções ou banquetes em sua honra. Só um pequeno grupo de atendentes os acompanhou. Infelizmente, no entanto, Harmonia incluiu o maldito colar na bagagem.

Depois de muitas viagens pela Grécia, eles resolveram visitar o reino acima, na direção do Adriático ocidental, ao sul dos Bálcãs e de frente para a costa leste da Itália, que tinha sido estabelecido pelo seu caçula, Ilírio, e que era, previsivelmente, chamado de Ilíria.

Uma vez lá, Cadmo se sentiu repentinamente cansado e foi tomado de uma apreensão insuportável. Ele clamou aos céus.

— Durante os últimos trinta anos, eu soube, no coração, que, ao matar aquela serpente-d’água danada, tinha matado a chance de felicidade para mim e para minha mulher. Ares não tem piedade. Não vai descansar enquanto eu não estiver tão achatado na terra quanto uma cobra. Se isso acalmá-lo e trouxer mais paz à minha vida atormentada, então, que me deixe terminar minha vida deslizando pela poeira. Assim seja.

Logo que essas palavras saíram de sua boca, essa prece infeliz se tornou uma realidade infeliz. O corpo dele começou a encolher dos lados e espichar no comprimento, sua pele começou a empolar e formar escamas lisas, e a cabeça, a se achatar num losango. A língua que tinha proferido esse desejo horroroso aos céus, agora, se agitava e dardejava entre duas presas. O homem que tinha sido Cadmo, príncipe de Tiro e rei de Tebas, caiu se retorcendo no solo, uma cobra comum.

Harmonia soltou um grande grito de desespero:

— Deuses, tenham piedade! — gritou ela. — Afrodite, se é minha mãe, mostre agora algum amor e deixe que eu me una na terra com aquele que amo. Os frutos do mundo são pó, para mim. Ares, se é meu pai, mostre misericórdia. Zeus, se, como alguns dizem, você for meu pai, então, em nome de toda a criação, tenha piedade, eu imploro.

Não foi, no entanto, nenhum desses três quem ouviu essas preces, mas a misericordiosa Atena, que a transformou numa serpente. Harmonia deslizou pela poeira atrás de seu marido-serpente e eles se enroscaram com amor um no outro.

O par acabou seus dias à sombra de um templo dedicado a Atena, mostrando-se apenas quando precisavam aquecer o corpo ao sol do meio-dia. Quando chegou o final, Zeus os fez voltar à forma humana a tempo de morrerem. Os corpos deles foram levados para ser enterrados com grande cerimônia em Tebas, e Zeus enviou duas grandes serpentes para guardarem suas tumbas pela eternidade.

Vamos deixar Cadmo e Harmonia em seu eterno repouso. Eles morreram sem saber que sua filha mais moça, Sêmele, tinha, na ausência deles, soltado no mundo uma força que o mudaria para sempre.