Glauco era um pescador na cidade de Antédon, na Beócia. Um dia estava sentado num penhasco à beira-mar, exercendo descansadamente o seu ofício, como costumava fazer todos os dias. Sua pescaria estava indo muito bem, obrigado, e os peixes prateados empilhavam-se a seu lado sobre a relva.
— Mais alguns e já posso ir para casa — disse o pescador, lançando outra vez a resistente rede para o mar.
Neste instante, porém, percebeu que algo estranho ocorria com os peixes ao seu redor: apesar de estarem quase mortos, readquiriam novo vigor após mastigarem um pouco da relva fresca. Um deles pulou de repente para dentro da água com um ímpeto renovado; outro seguiu logo atrás; em breve todos os demais também estavam outra vez dentro das ondas, tão dispostos e ágeis como antes.
Glauco tomou um punhado da relva entre os dedos.
— Que virtude mágica terá ela? — perguntou-se, aproximando do nariz a misteriosa erva.
Mastigou algumas folhas. Imediatamente sentiu algo estranho agitar-se em suas entranhas: um desejo frenético, na verdade, de também lançar-se ao mar!
O pescador, esquecendo para sempre da sua rede, tirou a roupa e lançou-se com um mergulho voraz às ondas revoltas.
Oceano e Tétis, as duas divindades marinhas que o observavam, resolveram no mesmo instante adotá-lo.
— Façamos dele um deus! — sugeriu Tétis, encantada com a beleza do jovem. As águas de todos os rios do mundo acorreram, então, num turbilhão que envolveu o jovem, fazendo-o rodopiar loucamente, como se estivesse a flutuar numa poderosa linfa vital. Glauco não sabia, mas estava prestes a sofrer um novo nascimento.
O antigo pescador havia perdido a consciência em meio ao turbilhão revolto. Enquanto estivera imerso nas profundezas, seu corpo sofrerá uma transformação surpreendente: suas pernas haviam amalgamado-se num único membro, uma longa cauda repleta de escamas prateadas que refulgiam sob o reflexo dos raios do sol. Da cintura para cima, entretanto, Glauco permanecia quase o mesmo, à exceção dos seus cabelos, que, antes claros e lisos, haviam ficado agora revoltos e tomado uma coloração escura e esverdeada como a das algas.
— Que lindo ser ele se tornou! — disseram todas as criaturas do mar. Esta, pelo menos, era a opinião dos seus semelhantes. O próprio Glauco,
embora a princípio tivesse ficado francamente espantado — e mesmo horrorizado -com sua nova condição, aos poucos foi se acostumando com sua nova aparência.
— É… para um homem-peixe não estou nada mal! — disse ele, com um sorriso, ao mirar-se embevecido, qual novo Narciso, nas águas esmeraldinas.
Desde então Glauco passou a viver entre as ondas, nadando e mergulhando o dia inteiro, feliz como o mais feliz dos peixes.
Um dia, ao surgir de um mergulho que dera às profundezas do mar, retornara à superfície e fora recostar-se um pouco sobre as pedras de um alto promontório. Não vira, entretanto, que bem ao alto também estava descansando uma bela ninfa, chamada Cila. Ela estava envolta apenas por um véu diáfano e tão fino como se fosse a própria espuma do mar a envolver seu corpo bronzeado.
Cila, assustara-se com a aparência daquele ser — para ela, apesar de ele ser um jovem metade humano, ainda assim era assustador com sua repulsiva cauda, que ele mantinha dentro da água, mas cuja barbatana erguia-se de tempos em tempos para dar um grande tapa nas ondas espumantes.
De repente Glauco ergueu os olhos para o alto e enxergou a ninfa. Imediatamente sentiu-se tomado por uma paixão fulminante.
— O ninfa encantadora, desça até mim e me diga quem você é, tão bela assim!
Cila, tomada de um medo repentino, ergueu-se e desceu para a floresta, embrenhando-se dentro da mata fechada. Glauco ainda tentou segui-la, mas percebeu pela primeira vez a desvantagem de sua nova condição: suas antigas pernas, agora convertidas em uma grossa cauda, eram inúteis para encetar qualquer perseguição terrestre.
— Oh, maldição! — disse o jovem, arrastando-se pela relva, como um peixe que quisesse viver doravante em terra firme.
Glauco logo desistiu; seu peito estava machucado pelo esforço de rastejar pelo gramado e pelo cascalho pontiagudo. Chegou mesmo a tomar de novo um pouco da relva entre os dedos e mastigá-la agoniadamente, na esperança de que o mesmo sortilégio que o convertera em peixe pudesse transformá-lo outra vez em homem. Mas foi tudo em vão: sua longa cauda permanecia estirada por vários metros, incapaz sequer de mantê-lo em pé.
— Linda ninfa, não fuja de mim, pois não sou nenhum monstro! — gritou, desesperado.
Mas nenhuma voz lhe respondeu de dentro da mata. E desde então Glauco não conseguiu mais colocar os olhos sobre ela. Sua vida tornara-se triste e amarga. Deitado o dia inteiro sobre aquelas mesmas pedras, passava o dia a aguardar o reaparecimento de sua amada Cila. Mas sempre em vão.
Um dia, no último limite do desespero, resolveu procurar a feiticeira Circe — a mesma que eternizara sua fama ao converter em porcos os homens de Ulisses, na ilha Eéia. E foi para lá que Glauco dirigiu a sua longa cauda.
— Poderosa Circe, preciso de um filtro amoroso para conquistar o amor de uma ninfa, a mais adorável de quantas possam existir em todo o mundo! — disse Glauco, com os olhos rasos de lágrimas.
Durante um longo tempo o deus esteve tentando convencer a feiticeira a lhe ceder a tal poção. Mas mal sabia ele que a cada palavra sua a feiticeira sentia o coração tomado por um desejo imenso de compartilhar do afeto daquele jovem. “Que belo espécime!”, pensava Circe, surda aos rogos e súplicas do jovem.
Mas tanto Glauco insistiu em falar de Cila — e só de Cila — que a feiticeira sentiu crescer dentro do peito o ódio por aquela que agora ela já via como a sua rival.
— Está bem, acalme-se! — disse Circe, fingindo ceder aos seus apelos. -Vamos ver o que posso fazer.
A feiticeira meteu-se dentro de sua casa e lá começou a preparar um filtro, mas muito diferente daquele que Glauco poderia esperar.
— Tome, leve até ela esta poção — disse Circe. — Vou lhe mostrar onde ela está.
Quando lá chegar, derrame todo o conteúdo deste frasco na baía onde ela se banha. No mesmo instante ambos terão uma surpresa.
E assim fez o pobre Glauco, sem desconfiar de que a bruxa tramava a desgraça de sua amada e a sua própria infelicidade.
Glauco avistou Cila banhando-se no local indicado. Era um lugar retirado, onde dificilmente embarcação alguma atravessava. Cila estava inteiramente nua, deitada sobre as pedras. Assim esteve durante um bom tempo, adormecida. Glauco, pé ante pé, foi por dentro da água e liberou o conteúdo do frasco bem no local onde a bela Cila estava prestes a mergulhar outra vez.
— Pronto — disse Glauco, baixinho. — Logo você estará rendida aos meus amores!
Cila, com efeito, não demorou a erguer-se; os poucos e dourados pêlos do seu corpo estavam recobertos por uma fina camada de sal, que ela espanejou com a mão antes de mergulhar novamente na refrescante água.
Tão logo seu corpo dourado havia entrado na água, contudo, começou a ser alvo de uma transformação, a exemplo do que muitos anos antes ocorrera com Glauco. Mas — oh! — quanta diferença havia entre as duas metamorfoses! Enquanto o jovem havia se transformado num elegante misto de homem e peixe, Cila se transformava num verdadeiro monstro. De sua cintura brotaram cabeças enormes de cães e uma ninhada de serpentes, que ela tentou afastar com a mão inutilmente, pois estas criaturas agora faziam parte do seu próprio corpo. Suas pernas, a exemplo das de Glauco, também haviam se tornado uma única cauda, mas infinitamente mais horrível, recoberta de escamas ásperas como as de uma serpente, terminando num longo feixe de espinhos gotejantes de veneno.
— Oh, deuses, que castigo é este que recai sobre mim? — clamou a pobre ninfa.
Cila, que desdenhara a feiúra do deus-peixe, agora se transformara num ser aos seus próprios olhos muito mais horrendo, pois não participava de nenhuma natureza, fosse humana ou marítima.
Seu caráter, acompanhando também a degeneração de seu corpo, tornou-se tão ou mais detestável do que o seu horrível aspecto. Envergonhada de sua nova forma, a criatura bestial correu a refugiar-se numa escura caverna e desde então não fez outra coisa senão atacar e estraçalhar toda criatura que lhe passou perto, como, por exemplo, seis dos marinheiros de Ulisses, quando este cruzava aquelas nefastas águas a caminho de sua casa.
Glauco, infeliz no amor, ainda tentou mais tarde conquistar Ariadne, abandonada por Teseu na ilha de Naxos, porém também sem sucesso. Seu destino parecia ser apenas o de nadar
— nadar para sempre, livre e desimpedido, porém sem nunca encontrar o afeto sincero de uma mulher.
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