— Pronto, meu cesto já está tão abarrotado de botões de açafrão que já posso voltar para casa; nem Prócris nem Orítia jamais colheram tantos em suas vidas — disse, entusiasmada, a bela Creúsa, referindo-se às suas duas irmãs.
Creúsa já se preparava para sair da profunda caverna onde colhera as plantas quando foi brutalmente agarrada por um jovem que surgira do nada. Ele era divinamente belo, mas Creúsa não teve tempo de perceber isto, tal o inesperado ataque do jovem, que fez os açafrões voarem para todos os lados, enfeitando de amarelo as pedras da caverna. Gritou por socorro, chamando por sua mãe e pelas irmãs, mas em vão, pois o viril Apolo já a arrastava selvagemente para dentro da caverna escura.
Creúsa lutou com todas as suas forças, cheia de aversão e repulsa, mas os seus esforços resultaram inúteis diante da força e da perspicácia do deus. Alguns minutos depois estava a sós com seu ódio e sua vergonha. Sentia-se tão aviltada em seu corpo quanto em sua alma. A partir daquele dia seu desprezo pelo Deus estendeu-se a todos os mortais, e aumentou ainda mais quando descobriu que esperava um filho daquele funesto relacionamento e quando Apolo nem por isso se abalou para auxiliá-la em sua terrível e solitária gestação.
Os meses passavam, e a jovem, disfarçando a gravidez entre as dobras de seus longos e complicados vestidos, nada contou, nem à própria mãe. Não podia prever qual seria a reação dos pais; ouvira muitas histórias de jovens que acabaram sendo mortas, simplesmente, ou expulsas de casa ou do próprio reino. Assim, quando sentiu que o bebê ia nascer, foi até uma caverna escura e ali deu à luz o seu filho. No começo ficou algum tempo parada, com o bebê nas mãos, sem saber o que fazer; mas passado o choque do parto, limpou a criança e envolveu-a nas roupas que havia tecido para este propósito. Depois a cobriu com sua bela capa e partiu, deixando-a ali.
O resto do dia andou sem destino, até que, arrependida, retornou aos prantos à caverna para resgatar o pobre inocente, que havia deixado entregue à própria sorte. Porém, quando chegou, o bebê não estava mais lá.
— Oh, deuses, não! — exclamou Creúsa, cujo instinto maternal falava agora com mais força do que o sentimento da vergonha e o medo da morte reunidos. -Não pode ter sido devorado pelas feras selvagens, ou haveria aqui algum terrível indício — disse ela, procurando algum pedaço de roupa ensangüentada. — A menos que tenha sido arrebatado por uma grande águia ou um abutre… Oh, deuses, o que terá sido feito dele? Por que fui deixá-lo aqui?
O tempo passou, e um dia o pai de Creúsa, o rei Erecteu, casou-a com Xuto, um estrangeiro que o auxiliara numa guerra. Esse homem era certamente grego, mas, como não tinha nascido nem em Atenas nem na Ática, era visto como estrangeiro e, por isso, desprezado pelos atenienses. Por esta razão, ninguém viu como uma infelicidade o fato de ele e Creúsa não terem filhos. Xuto, no entanto, desejava-os ardentemente. Foram, então, para Delfos, o refúgio dos gregos em seus momentos de dificuldade, para saber do Deus se ainda teriam filhos.
O marido estava na cidade se aconselhando com um dos sacerdotes, quando Creúsa decidiu ir sozinha para o santuário de Apolo. No jardim externo, encontrou um belo jovem que, em trajes sacerdotais, purificava o lugar sagrado com uma água que tirava de um vaso de ouro, enquanto cantava hinos em louvor ao deus. Olhou com brandura e admiração para a bela senhora que tinha à sua frente. Creúsa sorriu, por sua vez, e começaram a conversar:
— A julgar pelo seu aspecto, a senhora deve ter uma ascendência nobre e ser protegida pelos deuses — disse Ion, timidamente, depois de cumprimentá-la.
— Protegida pelos deuses? — disse Creúsa, com um sorriso amargo. — Melhor diria
“perseguida pelos deuses”.
— Suas palavras beiram a impiedade; não devia permitir que elas escapassem com tanta facilidade de seu coração — disse o jovem, surpreso com a amargura da mulher.
Ela nada respondeu, mas seu olhar perdido lembrou o terror e o sofrimento de tanto tempo atrás e a angústia contínua pelo filho que jamais voltara a ver. Contudo, ao ver nos olhos do jovem o espanto provocado pela sua reação, perguntou-lhe:
— E você, quem é? Possui tão rara beleza que parece mesmo o filho de um deus. Como pode, tão jovem, já estar a serviço de um dos templos mais sagrados de toda a Grécia?
— Me chamo Ion — disse o jovem -, mas de minha origem pouco sei além do fato de que fui encontrado por uma sacerdotisa de Apolo, certa manhã, instantes após haver nascido, nas escadas do templo. Ela criou-me com tanta devoção e ternura como se fosse minha própria mãe.
O trabalho aqui no templo muito me orgulha e me satisfaz. É mais gratificante servir aos deuses do que aos homens.
— Servir nunca é gratificante — disse Creúsa, cuja voz ainda denotava claramente a amargura que lhe pesava na alma. — Gratificante é termos nossa vontade entregue ao nosso exclusivo arbítrio.
— Está blasfemando outra vez — disse Ion, sorrindo bondosamente. — Por que seus olhos, tão divinamente belos, mostram-se tão amargurados? Não é neste estado que os peregrinos costumam chegar a Delfos; pelo contrário, chegam todos alegres e cheios de ânimo por poderem estar diante do santuário de Apolo, o deus da verdade.
— Apolo! — exclamou Creúsa. — Jamais me aproximarei de seu templo com alegria. —
Depois, respondendo ao olhar de espanto e censura de Ion, disse-lhe ainda: — Meu marido veio a Delfos com um único objetivo: saber, por meio do oráculo sagrado, se ainda poderemos ter ou não um filho. Minha finalidade, porém, é bem outra: preciso saber o que aconteceu com um bebê, que era o filho… — Creúsa deteve sua voz por um instante, abafada pelo cruel remorso —
… filho de uma amiga minha, uma pobre criatura a quem o seu piedoso deus fez um terrível mal.
Uma vez gerado o filho que ele a obrigou a conceber, a infeliz mãe viu-se obrigada a abandoná-lo em uma caverna escura e fria… e desde então essa mãe não teve mais um instante de paz. É
possível que a esta altura seu filho já tenha até morrido, pois se passaram muitos anos. Mesmo assim ela precisa saber o que foi feito daquela pobre e inocente criança. É por isto que vim consultar Apolo, em nome dessa desafortunada mulher.
— Que palavras terríveis você disse agora! — falou Ion, escandalizado. -Estas acusações, perdoe-me, são por demais levianas para que as possa levar a sério. Deve ter sido um homem qualquer que seduziu a sua amiga, e ela, envergonhada, lança agora a culpa sobre os ombros de uma divindade.
Ion falara duramente, ofendido com a acusação feita ao deus de sua predileção.
— E tudo verdade! — disse Creusa, acusativamente. — Foi um deus, sim, o autor da negra perfídia, e nenhum outro mortal.
Ion calou-se; depois, abanando a cabeça tristemente, disse a Creúsa:
— Ainda que fosse verdade, o que pretende fazer é uma grande loucura: ninguém pode aproximar-se do altar de um deus para ofendê-lo com injúrias.
Creúsa baixou a cabeça. Sim, nem mesmo tendo sido tratada daquela maneira tinha ela o direito de pretender afrontar um deus.
— Talvez você esteja certo — disse ela, finalmente, olhando para o jovem com uma ternura que jamais sentira por ninguém. — Estou ficando louca. Louca de ódio e desespero. É
melhor eu ir embora.
Enquanto se despedia do jovem, percebeu que o marido se aproximava.
Xuto vinha com o rosto transbordando de entusiasmo e contentamento. Num gesto impulsivo, estendeu os braços para abraçar Ion, mas este repeliu-o com virilidade. Ainda assim, Xuto conseguiu envolvê-lo em seus braços.
— E meu filho! — disse-lhe Xuto, com os olhos enternecidos. — Foi o próprio Apolo quem o disse, através de seu oráculo.
— Ele, seu filho”? — perguntou Creúsa, sem poder acreditar. — E quem é a mãe?
— Não sei — respondeu Xuto, entre alegre e confuso. — A única coisa que me foi dita é que este belo jovem é meu filho!
Pairava, agora, entre os três, o mais absoluto constrangimento. Ion estava distante e indiferente, enquanto que Xuto continuava confuso, mas feliz. Creúsa permanecia atônita. Nesse exato momento entrou a velha sacerdotisa e profetisa de Apolo. Apesar de sua enorme preocupação, Creúsa não pôde deixar de olhar fixamente para as roupas que a sacerdotisa trazia nas mãos. Uma delas era um véu, e a outra, uma capa de donzela.
— O sacerdote pede que vá até ele — disse a sacerdotisa a Xuto. Assim que este saiu, ela aproximou-se tristemente do jovem Ion e disse:
— Meu querido! Você deve ir a Atenas com o pai que acabou de conhecer. Leve consigo essas roupas que o envolviam quando o encontrei, e que Apolo o proteja! — concluiu a sacerdotisa, triste com a renúncia que se via obrigada a fazer.
— Oh, as roupas de meu nascimento! — exclamou Ion, levando-as aos lábios. — Tenho certeza de que um dia elas me ajudarão a encontrar minha verdadeira mãe, onde quer que ela esteja.
Creúsa olhava para o garoto e, para o véu e para a capa tão emocionada, que as lágrimas, a tanto tempo contidas, explodiram num incontrolável acesso de emoção.
— Ah, meu filho, meu pobre filho! — disse ela, lançando os braços em volta do pescoço do jovem, enquanto chorava com o rosto encostado ao dele.
“Ela deve estar louca!”, sinalizou o jovem à velha sacerdotisa, sem nada entender.
— Não, não estou louca, meu filho! — disse Creúsa, ao vê-lo fazer aqueles gestos. —
Esse véu e essa capa são meus! Enrolei-os em você, quando você nasceu. A amiga de quem falei não era outra senão eu mesma… Ouça meu querido, sou a sua mãe, não tenha dúvida alguma sobre isso e… Apolo é o seu pai.
— Oh, por favor! — disse Ion, recuando. — Isso tudo é muito absurdo!
— Desdobre estas roupas — disse Creúsa — e veja que posso descrever todos, um por um, ponto por ponto, os bordados que enfeitam as roupinhas e o agasalho, pois foram feitos por minhas próprias mãos. Procure e achará também duas pequenas serpentes de ouro pregadas na capa. Eram minhas, fui eu que as coloquei ali.
Íon desdobrou as roupas e ali estava tudo conforme Creúsa descrevera, os bordados e as duas serpentes de ouro. Depois de examinar tudo, olhou para Creúsa como se a visse pela primeira vez.
— Mas então é tudo verdade — disse, maravilhado com a mãe e ao mesmo tempo decepcionado com o deus. — Você é a mãe que procurei a vida toda…
íon jogou-se nos braços da mãe, vencido pela mesma emoção.
— Mas então o deus da Verdade é falso? Disse que eu era filho de Xuto! -continuou ele, confuso.
— Apolo não disse que você era filho de Xuto, e sim que o oferecia a ele como uma dádiva — esclareceu a sacerdotisa, com uma entonação severa na voz.
De repente, porém, mãe e filho viram surgir do alto uma maravilhosa visão: envolta num halo de intensa luz, uma deusa de celestial beleza descia dos céus, diante de seus olhos!
— Sou Minerva, filha de Júpiter — disse a aparição. — Apolo pediu-me que aqui viesse para confirmar que íon é filho de Creúsa e dele próprio. Foi ele quem o tirou da caverna quando ela lá o abandonou. Leva-o contigo para Atenas, Creúsa. Ele é digno de governar meu país e minha cidade.
A deusa desapareceu em seguida. Mãe e filho trocaram um olhar cheio de amor e alegria.
— E quanto ao deus? — perguntou íon para Creúsa. — Ainda guarda no coração algum resquício de ódio pelo que ele fez?
Creúsa sentia-se quites, apenas isto. Sabia lá ela o que era bem e o que era mal, em se tratando dos deuses? Tudo isto agora pouco importava. Seus olhos estavam voltados para o futuro, de onde via sempre a lhe sorrir o rosto jovem e feliz de íon, seu filho.
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