Ceix e Alcione

— Vamos cavalgar pelo campo, meu querido? — convidou uma manhã a rainha Alcione, filha de Éolo, já conduzindo pelas rédeas o seu cavalo.

— Ah, minha amada, me desculpe! — respondeu o esposo Ceix, rei da Tessália. —

Amanhã, talvez. Hoje estou sem ânimo algum, pretendo ir descansar um pouco.

— O que está havendo? — disse ela, encurvando suas negras sobrancelhas. -Cadê aquela alegria radiante que você herdou do seu pai? Há dias que anda perambulando pelo jardim, como se grande tristeza o afligisse…

Alcione entregou o animal de volta ao cavalariço e seguiu com o marido.

— É verdade, minha doce Alcione, não estou sendo uma boa companhia para você —

disse Ceix, desanimado. — Desde que meu irmão morreu muitas coisas mudaram aqui na Tessália; tenho a triste impressão de que os deuses me hostilizam. Por isso, resolvi fazer uma viagem a Carlos, na Jônia, para consultar o oráculo de Apolo; só assim descobrirei que motivos têm os deuses para estarem desgostosos comigo.

Alcione abraçou-se ao marido e seguiu com ele até o palácio:

— É natural que se sinta assim, meu querido! — disse ela, tentando confortá-lo. — A morte de um irmão, afinal, não é coisa que se supere de um dia para o outro. Mas daí a pôr-se em mar aberto, sob a inclemente fúria dos ventos e dos mares, apenas para consultar um oráculo, já me parece um exagero.

Ceix escutou calado, mas seu semblante denotava uma obstinação ferrenha.

— Não vejo com bons olhos essa viagem, ela me soa como um terrível presságio — disse Alcione, voltando à carga. — Conheço perfeitamente a força dos ventos e das tempestades, pois sou filha do deus dos ventos. Quantas vezes vi de meu palácio, nas altas montanhas da ilha Eólia, navios serem jogados sobre os penhascos, sendo feitos em mil pedaços, enquanto os destroços e os cadáveres trazidos pelas ondas se espalhavam horrivelmente mutilados pela praia.

— Muito embora tudo isto, Alcione querida, ainda assim devo partir — disse Ceix.

— Muito bem, então irei junto — respondeu Alcione, decidida.

— Nada me daria maior prazer, acredite! — disse Ceix, tomando o rosto da esposa em suas mãos. — Mas justamente pelas razões que você acabou de citar é que não posso me arriscar a levá-la. Mas prometo que pelos raios de meu pai, Vésper, irmão de Japeto e de Atlas, que, assim que resolver tudo, voltarei, antes da lua ter girado duas vezes sobre sua órbita.

Ceix entrou no seu reluzente palácio, que neste momento lhe pareceu apenas um local triste, ermo e sombrio.

No dia seguinte o dia amanheceu nublado e cinzento. Ainda assim o rei tratou de fazer os preparativos para a viagem. Mandou que lançassem às águas o navio de côncavas madeiras e que substituíssem as antigas velas por outras, inteiramente novas. Quando tudo finalmente ficou pronto, Ceix abraçou fortemente a esposa e embarcou no navio. Alcione, em terra, ficou observando seu amado esposo desaparecer por detrás das lágrimas que afogavam seus azulados olhos. Permaneceu ainda ali por algum tempo, olhando para o vasto mar que se estendia triste e solitário a sua frente. Com um esforço sobrehumano girou devagar sobre o próprio corpo e voltou para o palácio, com as lágrimas descendo pelo rosto.

Enquanto isso, os marinheiros manejavam os remos e alçavam as velas. A viagem transcorria tranqüila, sem incidente algum. Porém, quando chegaram ao meio do caminho, o tempo mudou de repente, e o vento leste começou a soprar forte como um furacão, deixando o mar encapelado e recoberto por um manto de espuma.

— Recolham as velas, marinheiros, rápido! — gritou o mestre, mas o ruído dos ventos e das ondas impedia que se ouvissem as ordens de comando. Os marinheiros começaram a agir por conta própria, mas seus esforços eram baldados diante da fúria dos ventos, que erguiam até o céu as suas paredes espumosas, para em seguida fazerem-se ruir como um bloco de montanha que se desprende do alto com todo o peso. Em meio a isso, a chuva torrencial caía com tanta força, em cortinas quase sólidas de água, que parecia que o céu estava prestes a se fundir com o próprio mar.

De repente, o mastro foi despedaçado por um raio; em seguida o leme foi arrancado do seu lugar pelo golpe decidido de uma onda, que pareceu agarrá-lo com seus dedos liquefeitos, arrojando-o ao mar, sem piedade. As ondas invadiram o navio com tamanha fúria que, quando retornavam, a embarcação já estava feita em pedaços.

Alguns dos marinheiros, petrificados pelo choque, caíram na água e não tiveram mais forças para se erguer; outros, boiando, tentavam manter-se à tona agarrados aos destroços, mas desapareciam em seguida no meio da noite tempestuosa, lançando terríveis gritos de desespero.

Ceix agarrou-se a uma tábua, clamando pela vida ao próprio pai, mas foi tudo em vão: depois de ver-se engolido por duas ondas, sucumbiu, afinal, à uma terceira, que o arrastou para o fundo, sem dar-lhe chances de retornar à superfície. Quando finalmente deu-se conta de que não havia mais salvação, dirigiu seus últimos pensamentos a sua amada Alcione, que permaneceria para sempre, lá longe e sozinha, a lhe esperar:

— Oh, minha amada! Que as ondas se apiedem de mim, levando ao menos meu corpo até você, para que possa, assim, fazer meus funerais e chorar pelo marido que nunca mais irá contemplar!

Enquanto isto, na Tessália, Alcione contava os dias para a volta de Ceix. Escolheu mil vezes os trajes que usaria quando seu amado Ceix desembarcasse de volta, com bons augúrios trazidos do oráculo, na distante Jônia. Rezava o tempo inteiro, a todos os deuses — em especial para Juno, esposa de Júpiter, na esperança de que lhe trouxesse de volta o marido, feliz e com saúde.

Mas a deusa, não suportando mais escutar as preces inúteis da infeliz Alcione, penalizou-se afinal e mandou chamar íris, sua alada mensageira.

— íris, fiel mensageira — disse Juno -, vá até o palácio do Sono e diga-lhe para enviar uma visão a Alcione, para que ela saiba de uma vez por todas do naufrágio e da morte do marido; somente assim poderá, então, recomeçar a vida sem estar presa a uma enganadora promessa.

íris partiu pela estrada do arco-íris, agitando sua capa multicor, até que o primeiro bocejo a alertou para o fato de que devia estar chegando, enfim, aos domínios do Sono, na isolada região dos Cimérios. O palácio desse silencioso deus estava situado numa montanha, nas profundezas de sua maior caverna, para que nenhum ruído alterasse o seu maravilhoso estado.

— Quanto silêncio! — disse ela, baixinho, levando nas mãos as suas sandálias. Com efeito, nunca íris, mensageira celeste, havia visto em suas andanças um lugar mais calmo: nada parecia perturbar o majestoso silêncio daquelas plagas. A natureza inteira parecia muda, ainda que viva, sob uma noite sempiterna. Chovia, e o ruído da chuva caindo era o único que se escutava, como que convidando ao sono. As árvores permaneciam com seus galhos e folhas escuras perfeitamente imóveis, sem fazer o menor ruído.

Os passarinhos eram mudos, pois não precisavam nunca saudar o alvorecer de um novo dia.

Uma vez por mês, porém, uma ligeira patina azulada recobria as coisas como um véu muito fino, por um período muito breve de tempo; neste momento a noite eterna tomava uma sutilíssima refração amarelada, produto de alguns raios esmaecidos do sol que erravam feito aves douradas perdidas nos céus cimérios — único reflexo do dia que conseguia penetrar naquelas regiões umbrosas. Então suas criaturas despertavam molemente para um simulacro de dia e partiam para suas brevíssimas ocupações mundanas. Mas mesmo estas revestiam-se de uma tal espectralidade onírica que os habitantes do lugar preferiam antes acreditar que o Sono cedera o cetro, por alguns brevíssimos momentos, ao Sonho, seu irmão mais agitado, do que imaginar que aquilo pudesse ser um dia verdadeiro e integral.

Mas ouvindo melhor escutava-se um outro ruído, sim, além da chuva.

íris voltou sua cabeça e, depois de afastar os fios molhados dos olhos, avistou, serpenteando por entre o vale, lá embaixo, o rio Letes, o maravilhoso rio do Esquecimento. Mas não, seria uma injustiça dizer que o murmúrio de suas águas produzia um ruído; não, era antes um zunido. Sim, o antiqüíssimo curso d’água, que a tradição chamava de rio de azeite, escorria mansamente as suas águas num murmúrio quase hipnótico, que ainda mais predispunha os seres e as coisas ao maravilhoso esquecimento de si mesmas.

— Deve ser esta a gruta… — disse baixinho, outra vez, a bela íris de pés de lã. Antes de entrar, Isis atravessou um imenso campo de papoulas, com a sua capa colorida espremida contra o delicado nariz, para que não viesse a cair desmaiada devido ao aroma intensamente inebriador que subia daquelas flores misteriosas. Uma vez dentro da gruta, Isis errou por diversos caminhos, escuros e, claro, silenciosos, até que finalmente encontrou o enorme recinto onde estava instalado o leito do deus do Sono — um leito todo feito de um ébano lustroso, cercado por imensas plumas negras e cortinas da mesma cor. Ao seu redor estavam postados os sonhos, alguns belos e confortadores, outros tétricos e assustadores; estes últimos mantinham-se quase sempre afastados, somente às vezes conseguindo aproximar-se do leito do deus, por um descuido de seus ajudantes, que não raro acabavam por adormecer à cabeceira do leito do grandioso deus.

Assim que a deusa entrou, a luz de suas multicoloridas vestes iluminou o ambiente. Os sonhos, espavoridos, puseram-se a correr em todas as direções, metendo-se por baixo da cama, pulando a ampla janela, que dava do escuro quarto para a escuridão da noite, ou simplesmente agachando-se com as vaporosas mãos a recobrirem os olhos. O deus do Sono abriu os olhos pesados; seus longos e alvos cabelos revoltos misturavam-se às suas barbas brancas, que lhe desciam até o peito.

— Quem é você e o que quer aqui? — disse o Sono, entremeando à pergunta um gigantesco bocejo que abalou toda a montanha. Era este o único ruído alto que se podia escutar em todo o reino.

— Venho a mando de Juno, esposa de Júpiter, pai dos deuses e senhor do trovão — disse Isis, fazendo uma grande reverência. — A deusa soberana ordena que envie um sonho a Alcione, na cidade de Traquine, na gloriosa Tessália, revelando-lhe a morte… do marido… que ocor… reu num trágico… naufrágio.

íris começara a bocejar terrivelmente e sentia que um sono poderoso, como nunca antes havia sentido em seus membros, começara a se apoderar de si. Por isto, tratou de dar cumprimento à sua missão e de ir dando logo o fora daquele lugar.

— Morfeu, acorde! — disse Sono ao seu filho, que tinha a rara capacidade de se metamorfosear em qualquer coisa.

O velho Sono sabia, no entanto, que despertar Morfeu não era tarefa fácil. Precisou usar de muita paciência — e de infinitas ameaças — para retirar o filho de seu fofo leito. Mas, enfim, conseguiu, e depois de ter-lhe dado todas as recomendações e de o filho ter partido, ainda que relutantemente, pôde, enfim, o velho Sono recostar-se novamente sobre o seu travesseiro, espichar-se de lado em seu espaçoso leito e cobrir de novo sua orelha com os pesados cobertores.

Morfeu cortou a vasta escuridão com suas asas silenciosas e logo chegou à cidade de Alcione, adquirindo a forma do falecido Ceix. Foi então até o leito da rainha e, com a barba encharcada e a água a lhe escorrer pelos cabelos, debruçou-se sobre ela, dizendo:

— Alcione, veja! Sou eu, seu amado Ceix! Realmente, você estava certa nos seus pressentimentos. Aqui você vê apenas a sombra daquele que um dia teve a felicidade e a honra de ser seu marido. Os ventos furiosos desencadeados por seu pai (não sei por que razão) destroçaram e afundaram meu navio. A morte me levou, sim, mas até o último momento seu nome esteve impresso em meus lábios. Mas agora nada mais há que se possa fazer. Não espere mais por mim, minha querida.

Alcione, gemendo e soluçando, procurava em seu pesadelo abraçar o corpo do marido.

— Não fuja, meu amor! — exclamava ela, estendendo os braços. — Assim como quis ir com você naquela funesta viagem, deixe-me ir também nesta outra, porque sei — ai! — que desta você jamais vai retornar! Partamos juntos!

Alcione foi despertada por sua própria voz. Assustada, olhou em torno, para ver se o marido ainda estava presente, mas só viu os criados que, alarmados por seus gritos, haviam acorrido, trazendo uma luz. Não encontrando o marido, Alcione esmurrou o peito como se o apunhalasse e fez em tiras suas vestes.

— Ceix está morto! — lamentou-se. — E com ele, também, a minha razão de viver.

Todos tentavam convencê-la de que tudo fora apenas um sonho ruim, mas Alcione não queria discutir.

— Basta, calem-se todos! — disse ela, silenciando as vozes. — Ceix naufragou e está morto para todo o sempre, ai de mim! Eu o vi, reconheci-o. Não pude tocá-lo, e isto é mais uma prova da veracidade do que afirmo, pois assim são as sombras quando andam nas mansões de Plutão e mesmo fora dela, intangíveis e impalpáveis. Sim, era ele, estou perfeitamente certa disto.

Alcione olhou ao redor, como se ele ainda pudesse estar por ali.

— Oh, quantas vezes alertei-o! Por que não me ouviu, amado esposo?

O sofrimento impediu-a de continuar, e assim permaneceu a rainha, jogada sobre o leito, com os soluços a lhe sacudirem o corpo até que Aurora de róseos dedos viesse abrir as cortinas ensolaradas de um novo dia.

Quando as primeiras luzes da manhã inundaram o seu rosto, Alcione, esgotada de chorar, dirigiu-se à praia e procurou o lugar onde vira o marido pela última vez. Contemplava o vasto mar, que nunca lhe parecera tão sinistro e solitário como agora, quando avistou algo que subia e descia ao sabor das ondas, vindo em direção à arrebentação.

— É um corpo, o corpo de um náufrago! — disse ela, correndo para as úmidas areias.

Sim, era Ceix, seu marido. Alcione, em desespero, lançou-se às águas, bracejando em direção ao cadáver que rodopiava de braços abertos como uma estrela marinha.

— Meu amado Ceix! — gritava ela entre as ondas revoltas, que a cada instante ameaçavam submergi-la.

Então, como se uma mão invisível a fisgasse, sentiu que seu corpo tornava-se leve, a pairar sobre as ondas. “Estarei também morrendo, afogada pelas ondas cruéis, a exemplo de meu amado esposo?”, pensou ela.

Mas aos poucos foi se convencendo de que não estava morrendo, mas renascendo —

renascendo para uma outra vida. Alcione agora pairava sobre as ondas. Seus braços se transformaram em alvas e graciosas asas, enquanto o restante de seu corpo recobria-se das mesmas e macias penas. Alcione agora era uma ave, uma maravilhosa ave! Rapidamente ela voou em direção ao corpo do marido, lançando estridentes gritos de dor, que cortavam os céus como um lamento fúnebre e tristonho. Quando se aproximou do corpo, bicou-o em sua boca e subiu outra vez para o alto, lançando novos gritos de dor. Ceix, entretanto, também havia readquirido a vida e agora, transformado numa bela e majestosa ave da mesma espécie daquela que o acariciara, subia aos céus atrás de sua amada Alcione.

E desde então, uma vez por ano, durante uma semana, o mar fica calmo e sereno como um lago. São os dias em que Alcione desce dos céus para chocar seus ovos, produto dos amores seus e de seu marido, sobre a água plácida do mar. Tão logo nascem os belos filhotes, os ventos voltam a agitar o mar.