— Ah, muro maldito, quem foi o infeliz que empilhou um a um os seus tijolos gelados e intransponíveis?
Assim lamentava-se todos os dias Píramo, jovem e belo assírio que o ódio dos pais havia encerrado longe dos olhos de sua amada Tisbe, a mais bela virgem de todo o Oriente. Apesar de morarem um ao lado do outro, isto era para ambos quase o mesmo que estarem em lados opostos do mundo, pois um muro intransponível e indestrutível fora erguido entre as duas casas.
— Que um raio o parta em dois, que os deuses o façam evaporar, que meu amor o derreta como um sol dardejante!
Assim dizia o infeliz Píramo, de punho erguido, a maldizer o dia inteiro, desta e de muitas outras maneiras, a funesta parede.
— Não sejamos tão injustos, meu amor! — balbuciava a bela Tisbe, por sua vez, do outro lado do muro. — Não fosse esta estreita fenda que o construtor desavisado deixou aberta, e jamais poderíamos conversar assim, livremente. Não, não culpe o muro, nem seu construtor, mas apenas nossos pais, que de maneira insensível nos consomem a alma nesta cruel agonia.
Tisbe parou um pouco; o ruído de um longo suspiro chegou até os ouvidos de Píramo apaixonado.
— Píramo, precisamos ter muita paciência…
— Paciência?! — exclamou a voz emparedada. — Minha paciência esgotou-se, minha amada Tisbe. Que mal fizemos nós? Que crime cometemos? Como posso me conformar diante de tanto despotismo? Já não suporto mais viver apenas das doces palavras que me diz, sem poder ver a maravilhosa boca que as pronuncia, nem ler os bilhetes que introduz pela fenda, sem poder ver a alva mão que os escreve.
Píramo tentou, então, pela milésima vez, ver se conseguia enxergar um pedacinho, por mínimo que fosse, de sua adorada Tisbe. Mas a parede era muito espessa, e a fenda, muito estreita.
— Oh, pudesse agora tomá-la em meus braços… — exclamou Píramo, agoniado, afagando as heras que cobriam o muro como se fossem os cabelos de sua amada.
— Píramo amado, não se exalte, podem nos ouvir — sussurrou Tisbe, com a boca grudada no pequeno vão do elevado muro.
“Se pudesse ao menos escalá-lo… “, pensou o jovem assírio, enterrando os dedos nas poucas saliências e reentrâncias do sólido anteparo. Oh, mas o perverso construtor fora sábio o bastante para fazê-lo de pedras suficientemente lisas e escorregadias. O jovem não conseguiu enterrar mais do que a ponta de suas unhas entre as saliências, sempre estrategicamente afastadas umas das outras.
— E um maldito deboche! — disse ele, retirando as unhas escalavradas, ao descobrir finalmente, após detida inspeção, que eram todas fendas falsas.
“Será que até isto o perverso construtor arquitetara?”, pensou Píramo.
O jovem ergueu, então, os olhos para o alto, mas por mais que elevasse as vistas não conseguia divisar o fim do muro: as pedras lisas e inconsúteis perdiam-se nas nuvens, tornando impossível ver-lhes o fim, ao mesmo tempo em que do alto descia a água das nuvens, escorrendo sempre pelo muro, como uma parede que na estação das chuvas verte a umidade sem cessar, tornando impossível até mesmo às lagartixas escalarem-no.
E que fera monstruosa haveria lá no topo? Que medonho obstáculo estaria à espera do audaz que enfim o alcançasse?
— Oh, minha paixão e meu tormento! — exclamou o jovem, por fim, com seus lábios ardentes colados à pedra molhada, como se beijasse os lábios úmidos da própria Tisbe. Mas sabe Júpiter quantas pedras sobrepostas ainda separavam seus ardentes lábios! Oh, se ao menos fossem feitas de blocos de gelo duro, para que o calor de seus lábios acabasse, cedo ou tarde, por dissolvê-los…
— Quando poderei beijá-la de verdade, tocar seus lábios, sua pele macia, envolver seu corpo lindo e encantador num abraço infinito? Teremos de esperar, então, até que estejamos velhos, ao ponto de meus olhos não poderem mais distinguir a sua beleza? — exclamava Píramo em seu estado febril.
Neste momento foi abruptamente interrompido por Tisbe.
— Ambos velhos…? Eu e você…? — repetia ela, como se não conseguisse acreditar que isto um dia aconteceria. — Mas você é tão belo, não há jovem de maior beleza em toda a Babilônia!
— Por enquanto, minha bela e fascinante Tisbe… O tempo, porém, é veloz e desapiedado para com os mortais.
— Realmente, você está ficando diferente. Está mais maduro e sua voz mais grave, embora mais desanimada, também… Ah, tem razão, meu belo Príamo… Basta! Isto não pode continuar assim — disse Tisbe, revoltando-se, afinal, com aquela situação.
— Isto mesmo! — repetiu ele, entusiasmando-se. — Ah, minha doce Tisbe, enfim me ouve… Tenho pensado muito nisto e já tenho um plano concertado para nós. É muito simples.
Amanhã à noite, quando todos estiverem dormindo, fugiremos.
— Oh, Píramo, mas será muito perigoso…
— Não, basta que tenhamos um pouco de cautela e outro tanto de audácia -disse Píramo, colando a boca ao muro. — Vamos nos encontrar junto ao túmulo de Nino, fora dos limites da cidade. Você logo o reconhecerá, pois ele é protegido por uma imensa amoreira, com frutos brancos como a neve, bem ao lado da fonte. Aquele que chegar primeiro aguardará o outro, sob os galhos daquela bela e frondosa árvore.
— Por Vênus! — exclamou Tisbe, estupefata. — Então você já tinha tudo planejado?
— Sim, foram os fervores da bela deusa, protetora dos amantes, que me inspiraram a arquitetar este desesperado plano — respondeu Píramo, mais aliviado.
Os dois aguardaram, então, que Apolo terminasse de recolher no horizonte o seu flamejante carro e a Noite estendesse sobre o céu o seu negro e estrelado véu.
Tão logo escureceu, Tisbe levantou-se da cama, cautelosamente, e, após certificar-se de que todos na casa dormiam, deslizou furtivamente pela janela até alcançar o portão de saída.
Antes de cruzá-lo, deu uma última olhada no muro maldito, cujo topo nem as aves altaneiras podiam divisar.
— Maldito muro, maldito construtor — ela praguejava, colocando a capa e dando-lhe as costas para sempre.
Depois de ter atravessado o campo, sob o sopro úmido e frio de Bóreas incansável, avistou finalmente a gruta; com um pouco de dificuldade subiu pela encosta até alcançar, enfim, o famoso túmulo. Sentou-se, pronta para esperar o amado, que não deveria tardar.
Tisbe assim permaneceu, encostada sob a amoreira, durante um bom tempo, até que de repente viu surgir, à luz difusa da noite, uma leoa — sim, uma terrível leoa que avançava a largos passos em sua direção. Suas mandíbulas estavam ensangüentadas, pois havia recém abatido uma presa, e buscava agora aliviar a sede junto à água da fonte. A moça, assustada, esgueirou-se por trás da árvore e, antes que o animal percebesse sua presença, já havia se misturado à noite escura.
Na pressa, entretanto, deixara a capa para trás, caída junto à amoreira de alvos frutos.
A leoa, depois de saciar a sede com a água fresca da fonte, virou seus passos, agora lentos e pesados, em direção ao bosque, em busca de repouso. Entretanto, ao avistar a capa caída ao chão, começou a brincar com ela, enterrando nas dobras as unhas ainda tintas de sangue, e a rasgar-lhe as franjas com seus dentes amarelos e afiados, até reduzi-la a um monte de tiras ensangüentadas.
Píramo chegou bem depois, após a leoa haver partido. As coisas para ele não haviam corrido tão fáceis como para Tisbe, pois os cães haviam começado a latir assim que ele pusera os pés no jardim. Trepado nos galhos de uma árvores, tivera de aguardar que o cão e o vigia se afastassem outra vez para poder reencetar a sua fuga.
Assim que chegou ao túmulo, viu, sob o clarão ofuscante da lua, as fundas pegadas da leoa impressas na areia.
— Tisbe, Tisbe! — gritou ele, com os olhos atônitos pousados sobre os farrapos ensangüentados da capa da amada. — O deuses, o que significam estas tiras ensopadas pelo sangue? — bradava Píramo, cobrindo de lágrimas o que restara da malsinada capa. — Oh, Tisbe infeliz, a que funesta desgraça a arrastei? Como pude deixá-la aqui sozinha, à mercê de feras cruéis e selvagens?
Píramo ergueu-se, então, e relanceando o olhar por tudo gritou, aos prantos:
— Vamos, venham, leões malditos! Venham completar sua negra tarefa! Abandonem os rochedos e venham terminar de saciar seus estômagos, despedaçando com seus dentes afiados este corpo que já não tem mais vida!
Píramo urrava, batendo no peito em desespero. Então, sacando da bainha o seu punhal, fez com que o bronze afiado se enterrasse em seu próprio coração.
O sangue que espirrou da ferida esguichou com uma profusão tal que acabou por tingir de vermelho as amoras brancas que pendiam da árvore, penetrando terra adentro pelo caule até atingir suas raízes.
Enquanto isso, Tisbe, abraçada aos joelhos trêmulos, aguçava os ouvidos, com a sensação de ter ouvido Píramo chamá-la. Imaginou-o sozinho, esperando-a sob a amoreira, com a leoa a lhe rondar os passos. Encheu-se enfim de coragem e resolveu arriscar-se a voltar, mas estacou surpresa ao se deparar com a amoreira de frutos vermelhos, em vez dos frutos brancos e reluzentes.
— Que milagre os deuses preparam aqui? — disse, impressionada.
Seus passos vacilaram, pois achava que havia se enganado de local, até que, ao fixar melhor a vista, avistou o corpo de Píramo caído ao chão, lutando contra a morte. Correu até ele com o coração aos saltos e apertou-o nos braços trêmulos:
— Píramo, amado, sou eu, a sua terna Tisbe! — gritava ela, beijando sem parar aqueles lábios já lívidos e frios. — Vamos, beije-me também e deixe que eu lhe comunique meu alento!
Ao ouvir a voz de Tisbe, Píramo abriu pela última vez os seus exaustos olhos; um sorriso efêmero iluminou seus lábios, e logo em seguida sua alma renunciou à vida. Ela avistou, então, sua capa toda esfarrapada e a bainha vazia do punhal.
— Matou-se por minha causa — exclamou, alterada. — Oh, funesto engano! Oh, Parcas fatais! Perdemos um ao outro antes mesmo de nos possuirmos.
Assim esteve lamentando a desdita sua e de seu amado, até que, erguendo a cabeça, pareceu tomada por uma irredutível decisão.
— Já que a vida foi implacável em seu propósito sinistro de nos manter afastados, que seja a morte agora a nos unir para sempre! — disse, apanhando o punhal que caíra da mão de Píramo e enterrando-o em seu próprio peito.
E assim ficaram os dois corpos juntos, unidos como um só, até que Aurora divina retornou, tingindo o céu com seus rosados véus.
Algum tempo depois surgiram os pais dos fugitivos, mergulhados em aflição. As mães abraçaram-se, soluçando agoniadamente o seu desconsolo, ao descobrirem os corpos dos dois amantes, abraçados ao pé da árvore fatal. Cada mãe jogou-se, em desespero, sobre seu próprio filho, mas eles estavam tão unidos que, ao fazê-lo, cada qual se viu obrigada também a abraçar o outro. E ao erguerem, finalmente, seus olhos nublados de lágrimas, perceberam ao alto, sob os galhos balouçantes, os frutos, antes brancos como a neve, agora tingidos de um vermelho intensamente vítreo e brilhante.
Píramo e Tisbe, separados em vida, foram finalmente unidos pela morte e. desde então, repousam no mesmo túmulo, sob a sombra das amoras escarlates.
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