A MORTE, SEGUNDO HIPÓLITO
O destemido Hipólito sabe que a morte se aproxima; seu carro desgovernado, puxado por quatro cavalos enlouquecidos pelo medo, ameaça tombar a qualquer momento. O touro monstruoso e incansável que o persegue desde as primeiras horas do dia queima agora suas costas com o hálito incendiado.
De onde terá surgido aquela horrenda criatura? A mando de quem o perseguia?
Um pedaço rompido das rédeas está solto e chicoteia o ar, dificultando ainda mais o controle do carro. Quem dera Hipólito pudesse abandonar as frágeis rédeas e, num pulo ágil e certeiro, ir cair diretamente sobre o cachaço negro do touro, para então domá-lo e alcançar mais esta vitória retumbante. Já não fizera o mesmo, certa feita, durante as Festas Panatenéias, ao domar com sucesso um corcel soberbo e furibundo — e também negro, como a fera que agora o ameaça?
Não, desta vez não há mais platéia alguma; não haverá palmas nem risos de satisfação.
Tampouco o cercarão olhares cobiçosos. Parece que os deuses, para não humilhá-lo em sua derradeira aventura, quiseram que o teatro de sua inevitável derrota fosse a amplidão desértica dos imensos Rochedos Cirônicos que o rodeiam, em silêncio.
E Diana? Onde estará a deusa e amiga, neste instante derradeiro?
Uma árvore ressequida está logo adiante; seus galhos nus, esticados em todas as direções, parecem braços esquálidos que imploram por uma ajuda humana ou divina. O carro de Hipólito ruma celeremente em sua direção, enquanto a rédea solta agita-se cada vez mais, sob o impacto da vertiginosa velocidade.
Hipólito vai, sem volta, de encontro ao seu destino.
A PAIXÃO, SEGUNDO FEDRA
Fedra, esposa de Teseu e madrasta de Hipólito, está em Atenas para participar da Procissão das Panatenéias. Essa é a “Grande Festa”, que se realiza de cinco em cinco anos, em oposição às “pequenas” Panatenéias, realizadas anualmente.
Minerva, deusa homenageada, é reverenciada por meio de procissões náuticas e pedestres, às quais afluem milhares de atenienses e peregrinos de todo o mundo helênico, em busca de proteção às suas vidas e de alívio às suas tribulações.
Mas Fedra, mulher de Teseu, não consegue dar alívio à sua aflição: postada ao lado do enteado, está tomada pela inquietude. Seu esposo e rei, o grande Teseu, está em terra cuidando de outros afazeres.
— Nunca houve uma festa com tanto brilho, não lhe parece, minha madrasta?
Fedra ouve a pergunta que sai dos lábios de Hipólito, mas sua língua não consegue movimentar-se dentro de sua boca. Os dois estão ombro a ombro, e o contato daquele braço musculoso com o seu ombro nu impede qualquer outro pensamento.
“Seu ombro é cálido e viril”, ela reflete, enquanto os hinos a Minerva levantam-se de todas as partes; pode mesmo sentir, perfeitamente, a contração e relaxamento dos músculos rijos do braço do jovem a cada vez que ele ergue ou abaixa a mão para acenar ao povo. Somente quando suas peles se descolam é que a brisa vem alisar e secar em seu ombro o suor misturado de suas epidermes.
“Não posso mais agüentar esta tortura!”, pensa a mulher de Teseu. Quando a procissão termina, Fedra, desvencilhando-se de todos, dirige a palavra ao enteado:
— Hipólito, filho de Teseu… O rapaz volta-se para ela.
— Engraçado, minha madrasta — diz ele, dando-se repentinamente conta de algo que antes não percebera. — Por que me chama, desde há algum tempo, de “filho de Teseu”?
— Como? Não o entendo… — balbucia Fedra, sentindo um rubor vivido tingir as suas faces.
— Antes chamava-me de “meu filho”, como se fosse minha mãe, ou simplesmente de Hipólito — diz o jovem, com um sorriso alegre em seu rosto. — Por que esta mudança?
Fedra, atrapalhada, diz apenas, como se nada tivesse escutado:
— Vou subir para meus aposentos, no palácio. Faça as honras a Minerva como manda e pede a piedade.
A esposa de Teseu sobe, então, até o terraço de seu palácio. Mas nem mesmo o vento que sopra no alto pode apagar a flama do desejo que arde em seu peito.
— Hipólito, filho de Teseu… — balbucia ela, esfregando os dois ombros, como se, longe do contato daquele ombro jovem e viril, se sentisse desamparada.
— Filho de Teseu… Sim, ele é filho de Teseu… — prossegue ela em seu devaneio. —
Não, não é meu filho! — exclama, de repente, num misto de alegria e revolta. — Posso, então…
Se é assim, posso então amá-lo, Hipólito adorado…
Fedra, descontrolada e excitada, erra de um lado para o outro, como quem foge de algo que deseja loucamente perseguir.
— Sim, posso amar-lhe, Hipólito! Por que não, filho de Teseu? — exclama, de repente, de maneira impensada.
Dando-se conta, então, da audácia dessa proclamação, cerra com as duas mãos a barreira dos seus lábios. Lá embaixo, entretanto, soam os gritos frenéticos da plebe ajuntada.
Numa arena armada, está um grande corcel negro, que cinco cavalariços trazem a custo para o centro. Escoiceando e espinoteando, o animal derruba três deles, que são levados em braços para fora da arena. Uma grande mancha redonda de sangue brilha sobre o solo, iluminada pelo sol — metálica e escarlate como um pequeno escudo tingido de vermelho que jaz perdido em meio ao fragor de uma batalha.
De repente Hipólito — sim, é ele! — adentra a arena. Fedra sente o coração dar um pulo dentro do seu peito, como se o seu próprio órgão tivesse adquirido quatro rijas patas e ameaçasse escapar pela sua boca.
— Hipólito, meu querido e amado… oh, amado, amado Hipólito! — sussurra Fedra, agoniada.
Desde que tomou a coragem de dizer a si mesma, com seus próprios lábios, as palavras tão temidas, Fedra as repete sem parar em sua gelada solidão. As mãos que ainda comprimem sua boca são agora um selo inútil e despegado, incapazes de reter as palavras que sua boca teima em repetir com a mesma determinação exaustiva de um coro que os fiéis endereçam a Minerva.
Fedra assiste a toda a luta, a todos os lances de vigor e valentia que seu enteado protagoniza para dobrar a vontade do corcel imenso e insubmisso como a noite, até que finalmente a vontade e a inteligência humanas acabam por triunfar sobre o rude primitivismo do animal.
A madrasta de Hipólito, lá do alto, está radiante. Nunca admirara tanto a exuberância e vigor da juventude daquele jovem como naquele instante — naquele preciso instante em que admitira, finalmente, que o amava, para a dor ou a alegria, para a morte ou para a vida.
E quando Hipólito retorna ao palácio, com o corpo suado e exausto do prodígio, Fedra lança-se — a louca! — em seus braços, sem considerar mais nada.
— Hipólito, Hipólito amado! — diz ela, a sós com o enteado, beijando sua boca como quem bebe o alimento que lhe falta desde sempre.
— O que diz, Fedra, minha madrasta? — diz Hipólito, tentando desviar seus lábios daqueles outros, rubros e inchados, que os caçam com sofreguidão.
— Hipólito, amo você, meu adorado jovem! — exclama Fedra, descontrolada. — Ouça: seu pai nada mais representa para mim! Não amo mais Teseu, não o quero mais!
— O que diz, louca? — repete o jovem, sem ter outras palavras.
— Não, não quero mais o afeto insosso e cansado de seu pai, entende? Por que deveria, se não o quero mais? Quero os seus beijos, somente, meu jovem! Os seus, unicamente!
— Mulher maldita! — exclama Hipólito, irado com aquela injúria feita a seu pai. Depois, enxergando um pedaço da nudez do corpo de sua madrasta, que o acidente do encontro desnudara, diz a ela, num excesso de rigor: — Vamos, cubra de pudor a sua alma, já que o seu corpo o despiu de vez!
Fedra, recuando dois passos, permanece com a parte superior do tronco desnudo, em mudo desafio. Depois, recobrando lentamente o bom senso, ergue outra vez a parte de seu manto que havia descido até os laços que o prendiam na cintura. Correndo, a esposa de Teseu mete-se em outro aposento. Aos poucos vai-se dando conta da gravidade daquilo que perpetrara.
“Cubra sua alma de pudor!”, é o que soa ainda em seus ouvidos.
Ela cobrira a alma de desejo, mas o mundo queria o pudor. Jamais a perdoariam. O filho dileto iria levar logo a notícia a Teseu, rei e esposo, prestes a se tornar vítima de terrível e injuriosa afronta.
Cega agora pela ira, ela diz de si para si:
— Fique, pois, o mundo maldito com o seu pudor! Levarei comigo apenas meu desejo!
Sua mão rabisca uma carta, na qual acusa o enteado da infâmia horrenda que ela mesma perpetrara e, depois, arrancando fora o laço de seu manto, prende-o num laço sobre uma das vigas do teto. Sabe que não poderia enfrentar de outro modo a censura do marido, do rei e daquela horrenda sociedade, que pune o desejo raivosamente e às claras, mas o reverencia loucamente em segredo.
E enquanto seu corpo balançava-se, ainda com um resto de vida, seu manto desceu outra vez até a cintura, como em um protesto final contra a impossibilidade de amar que as Parcas sinistras lhe haviam decretado.
O CIÚME, SEGUNDO VÉNUS
Hipólito e Diana haviam sido criados juntos. Habituado a conduzir seu carro com invejável maestria, ele e a deusa haviam simpatizado tão sinceramente um com o outro, que passearem juntos era a coisa mais normal deste mundo para ambos.
Mas este era um privilégio que a casta deusa — todos sabemos — concedia a bem poucos imortais e a nenhum mortal. Seu cortejo compunha-se invariavelmente de algum punhado de belas ninfas, e toda vez que algum mortal ousava tentar algum contato, era severamente punido, como aconteceu com o pobre Acteão, ao flagrá-la nua durante o banho.
Mas com aquele jovem era diferente: Hipólito era tão casto quanto sua divina amiga, e por isso o mundo acostumou-se com a notícia de sua fraterna amizade.
Mas havia alguém que não pensava assim.
— Veja, meu filho, como ela o abraça tão ternamente! — disse Vênus, um dia, encolerizada pelo ciúme, a seu filho Cupido. — Haverá somente pureza ali?
— Quem sabe, mamãe… — disse o jovem arqueiro, afetando despreocupação.
— Mas seu descaso para comigo passou de qualquer limite! — esbravejou a mais bela das deusas. — Nunca mais o vi render ofertas aos pés de minhas estátuas, nem freqüentar os paços de meus templos. Não, ele precisa ser punido!
Determinada a este fim, ordenou, então, que seu filho procurasse a madrasta de Hipólito, a bela Fedra, e alvejasse seu coração com a mais venenosa de suas setas.
— Quero que ela o ame como mulher nenhuma amou um homem antes. Cupido saiu em sua procura. Chegando em Tebas, dirigiu-se, às ocultas, ao palácio de Teseu, esposo de Fedra, e encontrou-os no leito.
O rei parecia sedento dos abraços e carícias da esposa, pois recém retornara de uma longa expedição militar. Quanto a ela, Cupido não pudera observar direito, pois o corpo forte e espadaúdo do marido cobria o da mulher em toda a extensão.
Terminado o amor, Cupido sorriu baixinho.
Fedra, contudo, voltara-se de braços, cobrindo a nudez com o lençol.
“Acho que minha tarefa não é tão necessária aqui!”, pensa Cupido outra vez, pondo, ainda, nova malícia em seus pensamentos. “Por que não deixar que as coisas sigam simplesmente o seu rumo?”
Mas a recomendação de sua mãe ainda soa bem forte em seus ouvidos.
No dia seguinte, Cupido aguarda que o rei abandone os aposentos, ficando só com a rainha. Ela parece pensativa, mas sem dar importância demais ao produto de suas elucubrações matinais. Cupido, que tem o dom da clarividência, observa o desfile monótono dos pensamentos da rainha. Na maioria futilidades do dia-a-dia, que ela relembra, intercalando esse pobre desfile com um bocejo ou dois.
“Opa!”, exclama mentalmente o deus arqueiro ao flagrar um pensamento mais indiscreto.
Sim, a imagem de Hipólito surge agora em sua mente. Inadvertidamente, ela parece fazer uma comparação entre os dois, pai e filho — que ela também considera seu -, mas sem nenhuma malícia.
“A hora é agora”, pensa Cupido, sacando a sua mais afiada seta. Após embebê-la no filtro do Amor, assesta a pontaria para o coração de Fedra, que está inteiramente a descoberto debaixo da pele clara do seio quase desnudo. E quando a imagem de Hipólito retorna, finalmente, às suas cogitações, o deus dispara a seta, certeira como todas as que arremessa.
Fedra, sem saber como, vê-se de repente entontecida.
— O que é isto que sinto, Júpiter poderoso? — exclama, cobrindo instintivamente o peito com o lençol.
E durante o resto do dia ficará com esta angústia na alma, sem saber o porquê de tanta inquietação, até que seu enteado aparece, ao cair da noite, com o rosto radiante de quem se exercitou bravamente em seu carro puxado pela pare-lha dos velozes corcéis.
“Como é encantadoramente belo o filho de Teseu!”, exclama mentalmente Fedra, como se o visse pela primeira vez. Depois repete baixinho, algo assustada: “O filho de Teseu!”
Cupido parte pela janela, satisfeito, mais uma vez, de sua eficiência.
A IRA, SEGUNDO TESEU
— Teseu, a rainha matou-se!
É com esta terrível notícia que o rei é recebido.
— Estão todos loucos? — grita Teseu, correndo até o local onde está o cadáver ainda quente de Fedra.
Abraçado ao corpo pendente da mulher, Teseu dá largas a sua dor.
— Por quê, quem foi o responsável por este gesto? — pergunta.
A escrava aponta para a carta que Fedra deixara. Teseu a toma com suas mãos trêmulas.
— Onde está Hipólito? — diz ele, erguendo os olhos.
Um brilho frio torna ainda mais gelado o azul de suas pupilas. Hipólito surge diante do pai.
— Ousou, então, na minha ausência, levantar a mão para esta que tomou o lugar de sua mãe? — diz Teseu; sua voz é bem articulada, mas seus membros agitam-se como os músculos dos cavalos quando estão postados para a corrida.
Hipólito silencia. Sabe que nada que disser poderá fazer seu pai acreditar em sua inocência. Abandona o recinto e, mandando atrelar os cavalos à sua biga, parte no mesmo dia para o Peloponeso.
Teseu, a sós, ferve de ódio. Não há mais Fedra nenhuma a seu lado para acalmá-lo; nenhuma palavra, nenhuma carícia, nada poderá agora refrear o seu ódio. Os problemas políticos também se avolumam: Menesteu, seu rival, disputa com ele o poder, apoiado por nobres insatisfeitos — ou seja, por traidores.
Traidores por todos os lados!
Pondo-se em pé, Teseu chama por seu pai, Netuno.
— Meu pai, deus poderoso, é a ti que clamo neste momento! — diz, cerrando os punhos.
— Na condição de seu filho, peço agora que punas Hipólito ingrato, e que jamais possa ele chegar ao seu destino!
O jovem, nesse momento, atravessava os caminhos ásperos e íngremes de sua jornada, conduzindo sua biga, puxada por fogosos corcéis. Em sua cabeça agitavam-se pensamentos de dor e remorso: dor por haver levado o próprio pai a fazer um tão mau julgamento de si mesmo, e remorso por haver provocado uma morte, ainda que a morte de uma mulher perversa e lúbrica, que tramara a sua perdição e de sua casa.
Ao mesmo tempo em que torce as rédeas na mão, com o coração tomado pela raiva, não pode deixar de relembrar as carícias da madrasta, os beijos ardentes, as mãos que percorriam seu corpo em todas as direções, como que vasculhando uma escuridão em busca do acesso à liberdade, que para ela era somente um: a realização do seu nefando desejo.
Nesse exato instante Hipólito é surpreendido com o surgimento inesperado, vindo das profundezas do mar — situado um pouco abaixo da ravina que ele percorre velozmente -, de um monstro marinho assemelhado a um grande touro negro, que lança flamas ardentes pelas duas narinas frementes.
“Por Júpiter, o que é isto?”, pensa Hipólito, atônito com aquela monstruosidade. Algo, porém, lhe diz que ele vem como o mensageiro da destruição e do castigo. Sim, do castigo, também, pois fora ele, Hipólito, o causador, ainda que involuntário, de toda aquela tragédia.
Enquanto luta para se desvencilhar, desviando com mão firme o seu carro Gdas investidas da terrível fera, Hipólito é assaltado por uma estranha visão, pois quando o temível touro aproxima-se, colocando-se quase ao seu lado, pode ver nas feições da fera o desenho do rosto de sua madrasta.
“O que é isso, estarei delirando?”, pensa, em meio ao tumulto da fuga e da poeira que os cavalos levantam.
Às vezes da própria poeira surge Fedra, dissociada do monstro, inteiramente nua e de braços estendidos, para dali a instantes dissolver-se outra vez no turbilhão do pó. Hipólito não está sendo perseguido apenas por seu fado.
Quem sabe descobre em si mesmo, também, tardiamente, um sentimento até então estranho, que justifica agora, plenamente, o destino que se desenhava para si? No último instante, porém, lembra-se novamente de Diana, a sua amiga e companheira.
Onde estava ela?
A AMIZADE, SEGUNDO DIANA
Diana, a casta deusa. Diana, filha de Latona e irmã de Apolo. Diana, que se afeiçoara pela primeira vez a um mortal — através de um sentimento absolutamente casto, como requeria a sua natureza -, estivera afastada durante todo este tempo. Não eram estes assuntos, com os quais inadvertidamente acabara por se envolver o seu amigo Hipólito, dignos de lhe despertar a atenção e o interesse.
Durante todo o episódio dos amores proibidos de Fedra e Hipólito, Diana procurara se manter ausente. Seu amigo estava prestes a ser engolfado no turbilhão de uma paixão, e ela, deusa castíssima entre as deusas, temia ser envolvida naquela atmosfera que tanto temia. Alvo, certa feita, dos desejos indiscretos de Acteão, ele bem soubera dos desgostos que podiam acarretar a um mortal — e mesmo a uma divindade poderosa como ela — os furores inspirados por Vênus.
Mas ao saber, finalmente, dos trágicos rumos que tomara aquela funesta paixão, Diana resolvera intervir e tentar ainda, desesperadamente, salvar a vida de Hipólito, uma vez que contra ele se levantava a ira de dois pais: a de Teseu, seu irado pai, e a de Netuno, pai implacável de seu pai.
— Teseu, modere a sua ira — disse-lhe a deusa, surgindo diante do rei, após o terrível pedido que este endereçara ao deus dos mares.
— É você, deusa severa, que me vem aqui falar em moderação? — disse-lhe Teseu.
Mas Diana, intransigente na defesa do amigo, não arredou pé.
— Vamos, Teseu, bem sabe que o seu filho é inocente.
Conduzindo, então, o rei até o espelho d’água do palácio, fez com que se desenrolassem ali as cenas da tragédia. Diante dos olhos estupefatos de Teseu surgiu uma nova Fedra, como ele nunca havia visto: a Fedra inquieta da procissão, a mulher desesperada no alto da sua torre desolada, os votos secretos de amor e o grande momento da sua declaração, quando seu seio desnudo agitava-se ao sabor de suas palavras ardentes.
— Hipólito, filho meu! — exclamou Teseu, cobrindo o rosto com as mãos.
— Acalme o seu coração e prepare-o para coisas ainda piores, pois o seu filho está à morte! — disse Diana, mostrando a cena do confronto, que se desenrolava naquele instante, entre Hipólito e a terrível fera marinha.
O rei, descolando as mãos da face, mirou o espelho onde se desenrolava a cena mais cruel que seus olhos poderiam esperar um dia contemplar. Assistia, então, à cena da morte de seu próprio filho.
A MORTE, SEGUNDO HIPÓLITO
O carro de Hipólito avança rumo a arvore de galhos nus. Em seu delírio Hipólito enxerga nela o corpo de Fedra — uma Fedra deformada, de corpo nu e enrugado como a casca da velha árvore, agitando seus vários braços descarnados.
Fedra-árvore o chama, engelhada, com as mãos de galhos estendidas.
A rédea partida chicoteia o ar; Hipólito só tem nas mãos a outra, insuficiente para deter a marcha enlouquecida dos cavalos. O monstro o está quase alcançando. Suas vestes chamuscadas roçam por suas feridas abertas.
Então o carro conduzido por Hipólito ultrapassa a árvore fatal. Um dos galhos roça por seu rosto, porém sem feri-lo. Dir-se-ia que uma mão macia e quente deslizara por suas feições.
Mas logo em seguida aquela rédea solta que se agitava loucamente no ar prende-se — ou é segura? — por um dos galhos secos da árvore.
Um baque impressionantemente brusco faz com que Hipólito seja arrancado do comando da biga. Os cavalos, perdendo o passo bruscamente, enovelam suas patas umas nas outras, parecendo que uma força maléfica os tentava unir num único e monstruoso eqüino de mil patas desencontradas. A biga volta-se no ar e tomba sobre os animais, matando-os instantaneamente, enquanto que Hipólito tem seu corpo arrastado por vários metros sobre o solo pedregoso, repleto de pedras rudes e afiadas como navalhas. Hipólito ainda se volta, uma última vez, sobre a poeira e os detritos, deixando erguidos para o céu as suas feições marcadas e o seu corpo dilacerado.
Hipólito, filho de Teseu, que um dia seria rei, agora está morto.
Diana, impotente para reverter um decreto mais forte que seu desejo, toma o corpo do amigo e o leva para Trezena. Ali, junto a um templo em homenagem a ela própria, Diana, está colocado para sempre o túmulo do mortal Hipólito.
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[…] Fedra e Hipólito […]