Aquiles e Escamandro

A Guerra de Tróia, travada pelos gregos para recuperar Helena de belos braços das mãos de seus raptores, ainda ardia em seu furor.

O irado Aquiles já se reconciliara com o chefe da expedição grega, Agamenon, para quem perdera a posse de uma escrava, abstendo-se, em revanche, de participar da maior parte da guerra. O herói estava de volta à luta, com todo o furor de sua alma.

Como o lobo ferido que, estando longo tempo retirado na floresta por não ter condições de perseguir e dilacerar com seus afiados dentes a presa ambicionada, retorna, enfim curado, com redobrada voracidade, assim era Aquiles, semelhante aos deuses, quando, empunhando sua lança e o escudo forjados por Vulcano, colocava outra vez seus pés de sólidas grevas sobre o campo de batalha.

— Eia, gregos de longas cabeleiras! — gritava o heróico filho de Tétis, a deusa dos pés argênteos. — Assolemos o inimigo até que, recuando às portas Céias, os obriguemos a nos dar entrada na sagrada cidade de Príamo, semelhante aos deuses!

Aquiles de pés velozes, louco de fúria por haver perdido seu fiel amigo Pátroclo, morto às mãos de Heitor de elmo reluzente, matava troianos sem fazer a conta. Seu carro, avançando com fragor, esmagava os corpos e escudos dos inimigos abatidos, de tal forma que o pêlo alvo dos seus cavalos estava agora todo tinto do sangue dos guerreiros mortos.

— Aqui, às margens do Escamandro, misturarei as suas águas cristalinas com o sangue torvo destes cães! — bradava sempre.

De fato, cumpria o guerreiro grego regiamente o que dizia: após encurralar os troianos assustados até as margens do rio que nasce no monte Ida, começou a passá-los na sua comprida lança, assim como fazem os pescadores quando os peixes em desova, na estação dos calores, abundam, atropelando-se uns aos outros sobre as margens espumosas dos férteis rios.

As águas do torrentoso Escamandro absorviam o sangue que jorrava dos corpos ajuntados em seu leito, quando, de repente, do centro das águas escarlates e revoltas, ergueu-se aos poucos, bem em frente a Aquiles de insaciável lança, a cabeça e o corpo de um velho descabelado. Seu semblante era irado e suas vestes, antes alvas e orladas de franjas espumosas, agora estão tintas do sumo amargo das batalhas.

— Basta, Aquiles! — grita o velho e iracundo Escamandro. — Vá saciar a sua sede nas planícies, pois não posso mais beber o produto amargo da sua ira!

— Silencie suas queixas, portentoso rio que desce do elevado Ida! — diz Aquiles de sólidas grevas, afrontando de espada erguida o próprio rio de sagradas águas.-Minha vontade já decidiu que o curso de suas espumosas águas será interrompido até que os peixes que nelas sobrenadam tenham despido com as bocas toda a gordura que reveste os ossos desses inimigos!

Escamandro, rio irado, mergulha de volta às torvas águas. Dali a instantes um turbilhão furioso começa a sacudir o leito inteiro do rio, e ondas altas como aquelas que o proceloso mar ergue em dias de tempestade começam a sublevar-se também por todo o seu majestoso curso.

Assim como as águas dos rios nas épocas de cheia expulsam de si os corpos dos animais mortos, tragados pela correnteza em sua inconsiderada sede, tal é o furor com que o Escamandro de revoltas águas lança para o alto os corpos dos troianos de fundas feridas, fazendo no ar um horrendo concerto de armaduras e escudos que se entrechocam.

— Aquiles, semelhante aos deuses! — exclama o velho rio, cuja face engelhada e gigantesca surge misturada às revoltas águas. — Sua sede de sangue ultrapassou todos os limites e agora infringe também os sagrados limites do temor aos deuses. Por isto, farei desabar, agora, sobre você, a força de meus milhares de braços embebidos pela ira!

Uma tremenda cortina de ondas espumosas envolve, então, o valoroso filho de Tétis, fazendo com que desapareça diante de seus olhos a luz que o carro do Sol ainda esparge generosamente por todo o azulado empíreo.

Assim como o caminhante descuidado, que se metendo por ravinas pouco conhecidas mete o pé por tudo, de maneira inconsiderada, indo acabar por cair no profundo fosso, cercado pelas paredes úmidas e impossíveis de serem escaladas, assim Aquiles de grande cabeleira vê-se cercado pela parede sólida das águas do irado Escamandro.

— Rio divino, por que se mete em um assunto que não lhe diz respeito? -brada Aquiles, de espada luzente ao punho.

Mas Escamandro de cenho franzido não se digna mais em responder e faz desabar sobre o herói, filho de Peleu, todo o fragor de suas águas. Aquiles de pés velozes, dando um salto, põe-se então a correr, após furar a cortina d’água com um golpe furibundo de sua cortante espada.

O rio, afrontado ainda mais por este golpe que uma mão mortal ousa lhe desferir, convoca todas as suas águas para que, deixando o leito onde até então descansavam mornamente, se ergam como uma só corrente para esmagar o agressor de longas cabeleiras. Aquiles de pés velozes faz então valer a sua alcunha: virando o escudo para as costas, corre com quantas pernas tenha para longe das ameaçadoras águas.

Uma onda gigantesca, com o formato de um poderoso braço, ameaça abater-se sobre o escudo que Aquiles de sólidas grevas traz preso às costas.

— Por mais que corra, bravo Aquiles, não poderá fugir ao meu fero braço, que só busca vingar a torva ofensa que fez aos deuses! — ruge o proceloso e irado rio. — Mesmo que seus pés ligeiros tentem levar-lhe adiante, com este imenso escudo preso às costas você parecerá sempre, diante de minha rapidez, como o lerdo animal de que a ira de Juno soberana se serviu para castigar Quelone, a preguiçosa ninfa!

Assim como o braço do gigante aborrecido serve para espantar a pequena e frágil mosca que teima em lhe perturbar o sono, assim o braço líquido do Escamandro, de forte corrente, abate-se sobre o audaz guerreiro.

Aquiles de longas cabeleiras é lançado longe, mas ainda tem vigor bastante nos pulsos para agarrar-se ao robusto galho do olmo alto e frondoso que está à sua frente. Mas nem as sólidas raízes da portentosa árvore, metidas nas profundezas da terra dura, são fortes o bastante para parar o curso impetuoso das águas do encolerizado rio, que leva adiante a árvore, as raízes e o guerreiro valoroso, que em um de seus galhos segue preso, a mal de sua sina.

Então, estirando os braços de sólida musculatura, Aquiles, filho de Peleu, lança-se com um grito de guerra ao peito portentoso do Escamandro irado, bracejando em suas águas temperadas pelo sangue dos troianos de sólidas armaduras. Após travar rude combate, num corpo a corpo viril com o próprio rio, alcança com seus pés cansados a planície, que agora serve de margem às águas expandidas do revoltoso Escamandro.

— É debalde, Aquiles semelhante aos deuses, que procura a planície ou outra elevação qualquer para escapar à minha ira — diz o rio, insaciável de furor -, pois onde as pegadas fundas de seus velozes, porém já cansados pés, pisarem, em seguida as farei apagar com o curso furibundo de minhas niveladoras águas.

Neste momento, Aquiles, apoiando-se a um rochedo, ergue os olhos até a morada de Júpiter celestial e clama, assim, em sua voz:

— Pai dos deuses, por que permite que a fúria de um deus menor se sobreponha ao seu poder infinitamente maior? Por que consente que o filho da sua querida Tétis, esposa de meu pai Peleu, passe pela vergonha de ter de morrer afogado como um reles pastor, que tomando pé errado afunda sobre as águas de um córrego raso e acaba por entregar ao Hades sombrio, de maneira esquecida e vexatória, a sua alma reles? Quer dar, então, este mesmo e lastimoso fim ao rompedor das muralhas de escudos que troianos de sangue audaz erguem todo dia à sua frente, e que os rompe com o poder de sua incansável lança?

Enquanto diz tal, os joelhos de Aquiles avançam a custo sobre a água, que já lhe sobe pelas fortes grevas. Os corpos e armaduras dos troianos mortos batem a todo instante em seus desprotegidos flancos, magoando-os. E assim como os astros brilhantes rodopiam sobre o éter, despedindo sua fulva luz, assim os escudos dos vencidos, brilhando e rodopiando ao sabor das ondas, parecem pequenos sóis a girar seu curso errante sobre a planície inundada.

Quando Aquiles já está prestes a ser engolido em definitivo pela imensa boca do Escamandro, cujos dentes são os vorazes peixes que degustam a carne apodrecida dos guerreiros mortos, eis que Juno, esposa de Júpiter, surge ao lado do pai dos deuses.

— Basta, meu tresloucado esposo! — grita a deusa de olhos brilhantes.

E dando-lhe as costas vai buscar seu filho coxo, Vulcano, artificioso deus.

— Vai, filho e artífice soberano! — diz Juno, de altivo ar. — Libera, desde já, sobre o tormentoso rio, o fogo inteiro de suas forjas, até que Escamandro, engolfado pela ira, veja-se obrigado a refluir as águas aos seus antigos e prescritos limites.

Vulcano, do portentoso fogo, sobe então de suas escuras furnas e empunhando seus foles vigorosos faz surgir rios de fogo e pez, que lança incontinenti sobre as águas do revoltoso Escamandro.

As águas do rio, iradas, erguem-se como colunas prateadas e avançam para fazer frente às labaredas que avançam, também, em ordenada fila.

— Escamandro, deus decrépito, pretende fazer frente, então, ao fogo insaciável de meus foles? — brada Vulcano, sacando de sua portentosa aljava os raios que os ciclopes forjaram a noite inteira, em suas escuras e fuliginosas furnas.

O choque dos dois exércitos, do fogo que escalda e da água que enregela, abala o céu e a terra. E assim como as aves, postadas em alegre cantoria durante o dia inteiro, suspendem suas vozes, voltando suas cabeças para o horizonte de onde rola o trovão furibundo que prenuncia a faiscante tempestade, assim, dentro e fora das muralhas da cidadela disputada cessam os gritos de ira e de dor, para que aqueus e troianos unam seus olhares atemorizados para o terrível fragor de armas que se fere quase ao lado.

O fogo tremendo de Vulcano artificioso calcina toda a planície, depois de haver secado as águas invasoras que a afogavam, queimando e consumindo as carnes, os ossos e mesmo as armaduras e escudos que ali jaziam abandonados. Uma massa líquida, ainda fumegante, mistura de ossos negros e bronze derretidos, ainda coalha a campina como o vômito infecto que alguma fera das batalhas, descomunal e largamente saciada, houvesse regurgitado sobre o chão.

As águas do impetuoso Escamandro agora chiam, lançando para os céus uma gigantesca nuvem de vapor, enquanto os peixes, que nele fazem sua morada, sobem mortos aos milhares, cozidos a ponto de romperem-se suas peles, flutuando sobre a linha d’água como um manto ondulante e cintilante de escamas.

A figura do velho Escamandro rompe, finalmente, a superfície das suas próprias águas, sem poder mais nelas se ocultar. E assim como o mergulhador, que após percorrer as profundezas do rio consumiu gota a gota o último alento dos pulmões, tal é o estado que o Escamandro apresenta quando põe para fora da água a sua cabeça de longas, úmidas e prateadas cãs.

— Vulcano, artífice supremo! — clama Escamandro, de faces afogueadas que refulgem como o pomo avermelhado das macieiras, quando o sol nelas incidiu o dia inteiro. — Cessa a ira de suas forjas, eis que minhas águas não são fortes o bastante para deter o fragor insaciável das línguas de fogo que você expele com tanto ímpeto!

Escamandro, como quem ferve e referve dentro de um caldeirão, abrasado de maneira incessante pelo basto lenho incendiado que arde em sua base, sente que suas forças o abandonam, e antes que cesse toda a vida de suas águas pede trégua ao inimigo, que não cessa nunca de cuspir mais e mais o produto ígneo de suas forjas.

— Vulcano, filho amado — diz finalmente Juno, a deusa de olhos brilhantes -, que as palavras de clemência de um velho e vencido rio bastem para acalmar a sua ira.

O deus artífice, no entanto, ainda esparge por todo o leito do rio o conteúdo flamejante de seus foles. Vulcano brande os seus pesados foles até que nem mais uma única faísca reste dentro deles.

Enquanto isto, na planície, Aquiles empunha novamente a sua lança e com um berro descomunal já arremete outra vez contra os troianos, os quais, diante do avanço inexorável do mais terrível dos aqueus, se precipitam e atropelam, com todo o vigor de seus pés e joelhos, em direção às muralhas seguras de Tróia, mãe-pátria protetora.


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