Nos confins daquela floresta onde a luz se tornava rara, onde os ciprestes se erguiam como sentinelas; uma promessa do confronto vindouro. Sob a sombra das imensas árvores, um homem envolto em mistérios se movia com a graça de um predador: o Mago de Cipre, cuja reputação é conhecida por muitos, mas seu nome permanece enterrado, como os sábios decidiram.
Depois de uma vida cruel, tornou-se uma lenda que percorria as eras como uma ameaça. Uma lastimável vida longa.
Subjugou muitos homens de fama – incluindo até um rei poderoso, aquele mesmo –, matando também toda a linhagem dos alquimistas azuis, aprisionando seus espíritos até seu conflito com o terrível Daxa.
“O Mago de Cipre”, cheio de apelidos e não sabemos o seu nome. Um dos poucos nomes proibidos até mesmo em minhas anotações – seu próprio nome era um encanto.
Eu, que o vi em seus momentos de glória e ruína, quando estou lá embaixo, me forço a não tentar recordar; minha memória desgastada é uma bênção.
Ora, ele sempre soube que Daxa um dia iria até ele. O acsi descia de tempos em tempos para investidas que, aqui em cima, sabemos bem o motivo, mas lá embaixo ninguém entendia. Mas a certeza do mago vinha de uma profecia desferida contra ele pelo guardião do Livro do Convênio, meu antigo amigo. O mago cria que o livro poderia lhe acrescentar poderes ou, ao menos, sabedoria; então, atentou contra o guardião que, apesar de lhe ter resistido bem, por fim, tombou. Mas não sem antes decretar a sentença do mago com a profecia que o perturbaria pelo resto da vida.
A profecia continha uma advertência enigmática: ao atingir o ápice de seu poder, ele invocaria forças que nem mesmo ele compreenderia, muito menos poderia conter ou dominar; e o percurso do seu poder seria interrompido. O maior trunfo do mago traria também sua ruína com uma reação inevitável que ele só saberia no preciso momento. O instante em que ele ambicionasse o inalcançável seria também o momento crítico, invocando algo que ele desconhecia.
Desde aquele dia, a cada passo que deu, preparou-se para o encontro com o acsi. Como os Ascï são seres de outra Concessão, creio que não podem ser mortos, mas se é possível, o mago bem que chegou perto.
Todo o vasto território estava preparado com recursos únicos, como as frestas feitas nas árvores que, ao menor dos ventos, assobiavam um harmonioso e hipnótico canto, e ainda, as almas azuis que guardavam o lugar com um engenhosidade impensável.
Daxa, como se quisesse enfrentá-lo em sua melhor condição, esperou um momento – quando o mago estava no auge de seu poder – que ele estivesse próximo o suficiente da floresta para que o embate fosse lá. E o dia chegou.
Primeiro, o mago ouviu o riso.
O Mago parou, congelado, enquanto um sorriso sombrio se formava em seus lábios. Ele, que não sabia o momento em que tudo aconteceria, nunca deixara de estar preparado a cada segundo. Sabia que essa seria a sua hora. Dentro dele, uma mistura de excitação e temor.
O bastão de cipreste brilhava em tons azulados em sua mão direita, um lembrete cruel dos alquimistas massacrados.
O ar ao seu redor tremulava, carregado de um poder sufocante para pessoas comuns. A floração ao seu redor emanava um perfume intenso de poder e feitiçaria que qualquer acsi reconheceria. O mago estendeu a mão, seus dedos longos se moveram com uma destreza quase sobrenatural. Um sussurro se adiantou de seus lábios, quase inaudível, acumulando algo no ar. No instante seguinte, as folhas tremularam como se uma melodia apenas percebida por ele estivesse sendo tocada; a floresta pulsou em resposta. Uma névoa ainda sutil começou a se agitar.
Enquanto isso, o eco distante da risada ainda cortava o ar. Daxa, o campeão dos Acsï, estava descendo.
Como trovão, colidiu contra o chão, fazendo tudo estremecer. Os ciprestes pareciam se inclinar para assistir o embate iminente. A terra parecia viva, uma plateia atenta; que fortuna! que terror!
A batida rasgou o solo e fez o mago cambalear. O mago deixou o chão, mas sabia que a luta precisava ser no solo ou não teria chance. Fechou os olhos absorvendo as penumbras que dançavam à sua volta, sentindo a presença das guardiãs furiosas do seu domínio – uma extensão de sua vontade, preparadas e para este momento. Daxa estava atento, tentando entender o ambiente à sua volta enquanto podia. A névoa confusa passou a envolver tudo na floresta desde a altura dos ombros até a copa das árvores.
O primeiro olhar direto entre os dois fez a floresta prender a respiração por um momento. Tudo aguardava o desenlace do que se anunciava.
O mago correu com passos firmes, sua capa se arrastando e deixando um rastro de runas e assombro; uma artimanha ancestral.
O acsi podia ver as guardiãs aprisionadas, mas não sabia como elas seriam usadas. E não podia discernir os riscos no ar: as barreiras ocultas que começaram a se erguer conforme o mago as conjurava.
Começou uma das batalhas mais duras do terrível Daxa, sem dúvida a mais longa, contra o mago mais cruel de todas as eras.
O estrondoso Daxa, o engenhoso Mago de Cipre.
Pouco se viu daqui de cima, pois a névoa tornava a batalha quase invisível a quem estivesse fora. Mas eu não estava aqui; estava lá, com a proteção e sutileza de sempre, vendo com estes olhos.
Enganos complexos transformavam o ambiente conforme os dois se moviam. O vento provocou o canto das árvores, uma sinfonia inquietante que perturbava, embaralhava, desnorteava. Os ecos das energias se entrelaçavam como serpentes que se somavam aos estalos doridos eram a trilha sonora de suas vidas. Apenas o mago parecia imperturbável, movendo-se como uma sombra entre as árvores, lançando feitiços que desenhavam formas na breu.
Daxa avançou, uma tempestade de luz e força, e o mago respondia com o jogo habilidoso de uma mente cruel e astuta.
O mago manipulava as barreiras em movimentos sutis. O acsi esbarrava, tropeçava, chocava-se com aquilo que não via, nem sabia o que era. E a cada toque numa delas, um comando adicionado ao meio sensível. A ardência causada, outrora desconhecida por ele, gerava raiva e ansiedade, que atrapalhavam ainda mais seu desempenho. E o mago, um maestro.
Daxa não parecia mais intocável.
Intentou o mais óbvio: passou a golpear o ar, como se caçasse fantasmas. Mas cada vez que seus punhos colidiam com a defesa invisível, a repercussão era tão devastadora que o impacto reverberava não apenas pelo ambiente, mas também em sua consciência. Lembranças, desejos, ansiedades, insatisfações, esperanças, lamentos. Dúvidas.
O mago sabia. E rituais esquecidos vão sendo recitados como segredos ao ouvido; os lábios hermeticamente selados em pactos perigosos afetariam até um acsi. As palavras fluíam em um idioma que rasgava o silêncio como lâminas. Daxa se esquivava e golpeava. E as barreiras começam a se enfraquecer a cada choque.
O mago olhou ao longe, Daxa acompanhou o olhar: as almas, aguardando o momento eram um sopro do legado que ele havia erradicado; os olhos queimavam de ódio impotente.
Em sua astúcia, o mago decidiu tornar algumas barreiras visíveis. Cintilando como fios de aranha entre as árvores, Daxa viu os riscos dançantes se moverem de acordo com a vontade do seu oponente; eram cortes e exibições de luz que confundiam a sua percepção. A floresta inteira pareceu girar e as barreiras se transformaram em elementos do ambiente — ciprestes que se aproximavam, sombras que se estendiam e tomavam formas sem sentido. O mago fez com que Daxa duvidasse de si mesmo.
Ele sentia golpes e feitiços o atingirem e fazerem seu corpo vibrar; sentia uma onda de poder imparável, enquanto via sua própria magia, uma fração do seu domínio, lentamente se desvanecer. Cada movimento que Daxa fazia era um lembrete do seu maior problema: o tempo conspirava contra ele.
O estrondoso Daxa, o paciente Mago de Cipre.
Mas o acsi era incansável e cada investida o tornava mais feroz. O campeão, com um rosnado emudecedor a floresta. Passou a tentar destruir todo o ambiente. O furacão de força começou a desmoronar as primeiras defesas do mago; não sem consequências.
Ferido, a cada momento tentava entender o que exatamente o atacava, sua mente misturando desespero com um fascínio crescente.
Com a maioria das barreiras se rompendo, o mago ergueu as mãos, invocando uma a uma as almas azuis, que estouravam as barreiras restantes à medida que eram projetadas na direção do acsi, num brilho ofuscante com um estampido que reverberava nas árvores ao redor, fazendo-as tilintar como cristais. Daxa se esquivou da primeira por reflexo, mas, sem entender o que houve, teve dificuldade de se livrar das seguintes.
Nunca antes tinha visto algo tão mortífero. Mal podia imaginar o que um impacto daqueles faria a ele. Mas depois da septuagésima sexta alma, descobriu. E o fascínio fugiu de seus olhos.
Daxa não parecia mais indomável.
Quando a septuagésima sétima alma explodiu em seu braço, iluminou parte da floresta em um clarão azulado. E houve mais do que a dor lancinante: o confronto ameaçava as noções da própria existência. A cada acerto, era como se uma parte de si fosse arrancada. E cada projétil deixava uma marca, não só em seu corpo, mas em sua essência, que ora a dissolvia, a misturava, ora revelava camadas de dor e arrependimento suprimidas. Não se sabe por quanto tempo as marcas o afetaram ou mesmo se ainda permanecem. Ninguém ousou perguntar.
Mas Daxa entendeu o artifício. As almas não estavam sendo arremessadas, mas liberadas do cativeiro e voltando com extrema velocidade aos seus corpos selados, todos em posições diferentes e tão distantes dali que jamais poderia localizá-los.
Viu-se forçado a concentrar seus esforços em evitar ser atingido, criando um espetáculo deslumbrante de energia, o que o tornou um alvo ainda mais fácil contra o fundo escuro da floresta.
Outras almas o acertaram, dessa vez com impacto menor. A realidade se tornava cada vez mais turva. Daxa sentiu sua forma tremer e algo se quebrou dentro dele. Mais que uma dor, uma perda. Ele rugiu, seu brilho oscilando, e enquanto o que antes era um lampejo de dúvida, agora atravessava seu olhar como uma possibilidade pela primeira vez. Uma lembrança forçada do dia da Insurgência trouxe uma ponta de medo e horror.
A batalha se arrastou. Daxa, pela primeira vez desde o início dos tempos, parecia um homem comum ofegante. A luminosidade de sua forma começava a vacilar. Mas não havia mais barreiras visíveis ou invisíveis e o estoque de almas começou a se esgotar.
O mago partiu para outra artimanha. Cupinzeiros de rocha e ferro levantavam-se do solo, pondo-se à frente de cada passo do acsi. Alguns o acertaram nos pés, outros no tronco, outros ainda nas costas.
Eram as últimas forças do mago, que precisou precipitar seu último recurso. Enquanto a batalha se intensificava, o mago se lembrou da profecia que o assombrou a vida toda e que usaria a seu favor. Começou a murmurar palavras do Livro do Convênio, amarrando seu destino ao do acsi, tentando fazer tudo culminar em um único momento. Teria seu fim, mas tentaria arrastar um acsi consigo.
Os anos de preparação não foram suficientes para saber se o efeito seria o esperado, mas era hora de descobrir. À medida que pronuncia as palavras, as barreiras se tornam mais substanciais, parecendo responder ao desespero do acsi. Cada golpe desferido por Daxa não atingia apenas as barreiras, mas a um eco infame da profecia, invocando a existência e fazendo-o hesitar.
Foi então que algo aconteceu.
No clímax de sua magia, uma luz intensa rompeu a névoa e banhou a floresta, ofuscando e tornando tudo ainda menos visível que antes, com um ruído que preencheu o lugar, reverberou pelo corpo do mago e interrompeu o ritual. Nesse seu primeiro momento vertiginoso, Daxa não piscou.
Com um movimento rápido, ele atravessou o espaço entre eles e desferiu um golpe direto. O mago foi lançado contra um cipreste, sua figura tremendo antes de finalmente desabar. Os ventos cessaram, a floresta silenciou.
Ele se voltou para o corpo caído do mago e, com um gesto de desprezo, virou o rosto e voltou para as suas habitações. Dessa vez, sem sinal de riso.
O estrondoso Daxa, o lendário Mago de Cipre.
Daxa sempre foi tão orgulhoso que, para a sua vergonha, até hoje permanece intocada na floresta a zombaria esculpida às pressas pelos próprios acsï: uma estátua do mago dos ciprestes, cujo nome nunca terminou de ser escrito.
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