Dona Benta e Narizinho foram à horta ver o tio Barnabé plantar mudinhas de morango numa leira muito bem estercada.
— Não estão juntas demais, José? — perguntou Dona Benta, que não gostava de plantas muito juntas. O negro velho endireitou o corpo, botou as mãos na cintura e depois de correr os olhos pelas três carreiras de mudinhas já plantadas, disse:
— A mó que não, Sinhá. Como este ano eu botei “menas” esterco, a folharada vai ser menor; por isso juntei um tiquinho mais as mudas.
Dona Benta, que sempre teve muita confiança no tio Barnabé, deixou que ele fizesse como entendia. Depois da visita à horta, ela e Narizinho foram ao pomar e sentaram-se no banco tosco que Pedrinho e o Visconde haviam feito junto ao tronco da pitangueira da Emília.
— Por onde andará aquela diabinha? — indagou Dona Benta. De manhã passou por mim como um corisco e afundou no laboratório do Visconde. Andam tramando qualquer coisa.
Narizinho não disse nada; estava distraída, a espantar com uma palhinha um grupo de formigas ruivas que se tinham atracado a uma pobre minhoca. Sem interromper a “salvação”, disse:
— Vovó: ando desconfiada de uma coisa…
— De que, minha filha?
— Ando cismando que Emília é uma fada que veio a este mundo sob forma de boneca e depois virou gente. Tudo em Emília são disfarces — até a vara de condão de todas as fadas.
— Não estou entendendo, minha filha — disse Dona Benta, erguendo os óculos para a testa.
— Pois eu estou; e estou cada vez mais convencida de que o “faz-de-conta” de Emília é uma varinha de condão disfarçada. Que diferença há entre o “faz-de-conta e uma vara mágica? Preste atenção nisso, vovó. Naquela aventura de Hércules com o javali do Erimanto, por exemplo. Hércules estava perdido. Quando o javali avançou contra ele com ímpeto de avalancha o coitado só dispunha duma arma: as cinco flechas de ponta de bronze que tinha no carcás. A senhora sabe o que é carcás, não?
Dona Benta riu-se.
— Sei, minha filha; é o canudo, ou recipiente, que os antigos arqueiros levavam à cintura para o transporte das setas. E você sabe o que é arqueiro?
Narizinho não sabia.
— É o flecheiro antigo — o homem, ou o soldado, armado de arco e flecha, nos tempos em que ainda não havia arma de fogo. A palavra arqueiro vem de arco, como espingardeiro vem de espingarda, carabineiro vem de carabina, etc.
Mas continue a história. Hércules estava só com cinco setas no carcas…
— … e todas “humanizadas”, isto é, sem pontas. Em certa ocasião Emília deu de ter dó das vítimas de Hércules e “humanizou” todas as suas flechas, isto é, quebrou-lhes a ponta. De modo que quando o javali investiu contra Hércules e ele o recebeu com a clava e a clava rachou em vinte pedaços e o grande herói teve de recorrer às flechas, estaria irremediavelmente perdido se não fosse o “faz-de-conta” de Emília. O Visconde me contou tudo exatinho como foi. Assim que se viu sem a clava, Hércules deu tremendo salto para trás e botou uma flecha no arco e atirou. A flecha bateu no peito da fera, plaf, e caiu no chão, não entrou na carne. Hércules deu outro pulo para trás e desferiu segunda flecha — e foi a mesma coisa: a flecha bateu no javali e caiu no chão. Com quatro flechas aconteceu a mesma coisa, e só quando ele ia lançar a quinta e última flecha, é que Emília recordou que havia “humanizado” todas as cinco e portanto o grande herói estava perdido, ali diante do mais feroz javali que ainda apareceu no mundo e sem nenhuma arma para enfrentá-lo, nem um canivete! Vê que situação horrível, vovó?
Dona Benta achou que realmente a situação de Hércules não era nada boa, e que a ex-boneca havia cometido uma grande imprudência. “Tudo neste mundo tem limites. Emília excedeu-se. Hei de fazer-lhe um sermãozinho sobre os perigos do excesso. E depois, que aconteceu?”
— Aconteceu que quando Hércules ia lançar a quinta e última flecha, Emília teve a sorte de lembrar-se da “huma- nização” e gritou, no instantinho em que a flecha ia escapando do arco: “Faz de conta que essa tem ponta!” e a flecha adquiriu ponta e matou o javali!… Não acha isso maravilhoso, vovó? Não acha que coisas assim só as fadas conseguem por meio de suas varas de condão?
Dona Benta franziu a testa e ficou pensando; depois disse:
— Você tem razão, minha filha. Coisas assim só as fadas conseguem realizar. Não há dúvida…
— Logo, Emília é uma fada, vovó! Logo, o tal “faz-de-conta” que ela tanto usa é uma vara de condão disfarçada..
— Sim, uma vara verbal…
— … porque as varas de condão podem ter todas as formas, e não só a de vara — pelo menos eu penso assim.
— E pensa muito bem minha filha. A vara de condão de Aladino era uma lâmpada, a de certos mágicos é um anel, a dos sacis parece que é a carapucinha…
Calaram-se as duas. A minhoca já estava livre das formigas, mas continuava ali mesmo, a revolver-se em movimentos morosos. “Parece que está ferida”, disse Narizinho. “Deve estar envenenada”, observou Dona Benta. “Essas formiguinhas, quando mordem, injetam ácido fórmico. Para nós, gente, a dose de ácido fórmico duma picada de formiga não causa mais que um ardor na pele; mas para uma minhoca deve ser algo terrível, e com certeza mortal. Observe bem essa minhoca, Narizinho, para ver se ela morre.”
Narizinho voltou ao assunto do “faz-de-conta” da Emília.
— E há ainda uma coisa, vovó, que me faz crer que Emília é uma fadinha disfarçada. Às vezes deita-se aqui debaixo desta árvore e fica horas lidando com um bichinho — paquinha, vaquinha, besouro e até lagarta. Conversa com eles como se fossem gente; entende tudo quanto dizem. Ora, isso é coisa de fada. Eu também brinco e falo com os insetos — mas eles não me entendem, nem eu entendo nada do que eles dizem. Emília entende tudo! Ela é fada, vovó, e eu estou começando a ter medo…
— Por que medo, minha filha? Emília nasceu aqui e aqui se desenvolveu, e hoje é a minha neta número 3. Não há razão nenhuma para termos medo dela.
— Tenho medo de que fique poderosa demais…
Estavam nesse ponto da conversa quando Emília apontou lá adiante; vinha arrastando o Visconde pelas barbas de milho. O pobre sábio resistia como cabrito levado para a feira.
— Que será aquilo? — murmurou Dona Benta. Judiação, tratar o pobre Visconde assim…
Ao dar com Dona Benta e Narizinho sentadas na raiz da sua pitangueira, Emília largou das palhas do Visconde e este deixou de resistir à moda dos cabritos — e aproximaram-se os dois.
— Que é isso, Emília? Que judiação é essa com o pobre Visconde?
Emília botou as mãos na cintura e, muito vermelha e empinadinha para trás, disse:
— Pois é este estupor que me está escondendo qualquer coisa. Cada vez que me aproximo do seu laboratório, fecha uma gaveta e disfarçadamente diz: “Olhe que nuvem bonita lá no céu, com forma de elefante!” Elefante é o nariz dele. E eu então resolvi trazê-lo perante a senhora para que se confesse. Como dona do sítio, a senhora não pode tolerar que alguém ande aqui com atitudes misteriosas.
Narizinho deu uma grande risada.
— Ora, Emília! Pois então uma criatura que possui uma verdadeira vara de condão, como é o “faz-de-conta”, não consegue descobrir o que um pobre viscondinho anda fazendo?
É que o meu “faz-de-conta” não anda funcionando muito bem agora. Parece que se desarranjou por dentro, como a bota de sete léguas de Polegar…
— E você quer que vovó arranque do Visconde a confissão do que ele está fazendo?
— Exatamente…
Dona Benta riu-se do caso e com o seu ar bonachão interpelou o sabugo.
— Vamos, Visconde, conta à Emília o que está fazendo, já que não está fazendo nada de mal. Se há no mundo uma criatura incapaz de fazer qualquer coisa de mal, é o Visconde de Sabugosa. Todos sabemos disso.
O Visconde não ofereceu nenhuma resistência; e com a maior naturalidade foi contando que havia descoberto o “Periscópio do Invisível”; e que guardara segredo apenas por desejar fazer uma surpresa a todos.
— Que história de Periscópio do Invisível é essa Visconde?
— Ah, é uma invenção deveras maravilhosa. Por meio do meu periscópio qualquer pessoa pode ver as mil coisas que há ou que se passam neste mundo e nossos olhos não vêem.
— É verdade mesmo, Visconde?
Dona Benta, apesar de afeita às maravilhas que se passavam em sua casa, não deixou de sentir um pequeno frio na espinha, quando o Visconde, um sábio incapaz de mentir, respondeu com voz firme: “É!” E voltando-se para sua neta disse:
— Você descobriu hoje uma fada aqui no sítio — e agora aparece-me um mágico…
— Fada aqui? — berrou Emília. Narizinho descobriu alguma fada aqui? Duvido!… Duvido e não admito! Ela que venha com sua vara de condão, que eu…
— Que eu o que, Emília?
— Que eu… Não digo. Ela que venha para ver! Fada aqui! Olhe o desaforo!…
Narizinho cochichou ao ouvido de Dona Benta: “Está vendo, vovó? Esse acesso de ciúme de Emília é prova absoluta de que ela é mesmo o que eu digo: uma fada, e das boas. Não quer saber de nenhuma rival por aqui.”
Desde esse dia Dona Benta passou a olhar para a ex-boneca com certo ar de desconfiança. Quem sabe se Emília não era realmente uma fada?