Descrição
“As coisas vão melhorar”, pensei, quando vi o seu sorriso no dia anterior.
Sentado perto das lanchonetes na rodoviária, eu o esperava comprar as nossas passagens. A fila era enorme, mas ele fez questão de ficar com o filho no colo. As malas dele estavam com ele e as minhas comigo.
Encontro duas mulheres sentadas: Beatriz e Amanda. Elas perderam o ônibus e estão tentando descobrir o que fazer. Eu faço alguns comentários pra tentar fazer amizade, mas mais pra deixá-las menos ansiosas. Começa a funcionar. Eu digo que estou com o meu amigo. Elas o olham, veem a criança e, como eu soube depois, pensam que somos homossexuais, mas não dizem nada. Eu não nego porque não percebo. Depois, descubro que elas são lésbicas. Beatriz é mãe e a criança está com ela. Percebo que há algo mal resolvido entre elas, apesar de serem namoradas, ou algo assim. Digo, sem comentar que percebi isso no ar, que também tenho um problema com o amigo que mora comigo. Ainda não digo que não somos homossexuais, porque até o momento não entendi que elas pensam isso. Elas percebem, mais do que eu, que meu amigo parece muito ansioso. Ele olha pra nós muitas vezes, nunca sorri, parece bastante inquieto. Ele sai da fila da passagem, mas não sinaliza nada. Eu não percebo, mas as malas dele são postas no bagageiro do ônibus, enquanto as minhas estão comigo. Ele se senta num dos bancos do terminal e fica por lá. Pra mim, a sensação é de que está tudo certo e só devo aguardar que meu amigo me chame, ou algo assim. Continuo conversando com as duas durante mais uns 10 minutos. Elas contam algumas coisas, poucas, sobre o passado e o que exatamente estavam fazendo ali.
Quando olho para meu amigo, ele já está na fila pra entrar no ônibus. Me despeço às pressas e vou até ele. Pergunto da minha passagem e ele dissimula, mas de um jeito bom o suficiente pra eu não entender o que aconteceu: “Como assim? Achei que você ia comprar. Eu comprei a minha. Você não comprou? Tem que correr lá”. A situação não me dá tempo pra pensar. Eu apenas corro até o guichê, que está com fila. Corto as pessoas, recebo alguns xingamentos e pergunto sobre lugares naquele ônibus. A atendente também reclama por eu ter cortado a fila, mas a primeira pessoa, entendendo a situação, diz pra mulher aceitar me atender. A atendente olha para o computador, enrola até conseguir acessar os dados daquela viagem, faz uma cara que eu não gostei de ver e diz que não há mais lugares. Tento argumentar, mas não há o que fazer. Corro até o ônibus. Meu amigo já está lá dentro com a criança. O motorista já está fechando a porta. Eu tento entrar, ele questiona. Eu tento explicar e chamo meu amigo. O motorista fica sem saber o que fazer, pedindo pra que eu saia, mas sem jeito e sem entender exatamente a situação. Meu amigo não se manifesta e eu preciso gritar seu nome algumas vezes. Ele finalmente aparece, apenas ao longe, e diz algo como “Não dá, não vai dar! Desiste!”. Agora sou eu quem está sem reação. Fico em choque. Desço do ônibus. Fico paralisado pensando enquanto o ônibus sai do terminal e desaparece no horizonte. As duas moças se aproximam e Amanda está com as minhas malas. Elas perguntam o que houve. Eu dou uma explicação tão mal feita quanto uma criança pega no susto. Elas entendem do jeito delas e Amanda me abraça. Agora, quem não sabe o que fazer sou eu. Elas perderam o ônibus. E eu… bem, nem sequer sei a totalidade do que perdi.
Depois de alguns minutos conversando, não sei de qual das duas foi a ideia, mas as duas se convencem de me convidar (e insistir) que eu vá com elas. Eu não entendo na hora o argumento, nem pra onde afinal elas vão, mas aceito. A sensação me corrói. Elas tentam me consolar, mas também não sabem precisamente o que está havendo. Alguma delas chama um uber, que nos leva a um hotel. Gentilmente, elas se dispõem a pagar pra mim. Eu mal agradeço, sem perceber ao certo o que está acontecendo. Elas pediram dois quartos: um pra mim e outro pra elas. Mas nós subimos diretamente pra aquele que seria o meu. Beatriz levou as suas malas para o outro quarto e voltou. Tentei fazer os primeiros resmungos e esboços sobre o que estaria acontecendo, mas ainda não conseguia acreditar. Os minutos parecem passar mais rápido do que o normal e já precisamos dormir. Eu estou com os olhos grudados no nada o tempo inteiro e não é difícil perceber que dormir não vai acontecer tão cedo. Amanda diz a Beatriz que acha melhor ficar ali comigo, provavelmente por ainda achar que eu sou homossexual. Beatriz concorda, se despede e vai para o quarto. Não conversamos muito mais depois disso. Ela fica comigo apenas tentando me consolar, mas sem dizer muito. Pegamos no sono algum tempo depois.
*****
Estamos, nós três, morando juntos. Elas demoraram um pouco pra descobrir (ou entender) que eu não sou homossexual, mas isso não fez muita diferença. Estamos nos dando muito bem. Aos poucos, eu vou entendendo a história anterior das duas, como elas chegaram onde chegaram e o problema que está rolando entre elas silenciosamente. Beatriz, obviamente, se relacionava com homens até pouco depois do nascimento da criança, mas começou a odiá-los por causa dos últimos com quem ela se meteu, que nunca a agrediram, mas, segundo ela, a trataram como um objeto. Não curiosamente, ela conheceu a todos eles em boates ou lugares ainda mais duvidosos pra relacionamentos. Amanda, por sua vez, sofreu abusos do padrasto e a mãe não fez nada, nem mesmo depois de ter ouvido as reclamações da filha – não poucas vezes. Ela ainda não tinha se relacionado amorosamente com ninguém antes de conhecer Beatriz, que a convenceu de que os homens seriam as piores coisas do universo (“menos você”, como ela me disse algumas vezes). Era algo como “somos mulheres, logo, somos contra os homens”. Sim, bem ao estilo pré-escola.
Beatriz, até então, também não havia se relacionado com mulheres, mas convenceu Amanda sobre isso e foi aí que tudo entre elas começou. O problema era que aquilo, mais do que tudo, era uma questão de discurso, uma questão de orgulho. Não era uma questão de felicidade, mas de autoafirmação. Assumir o equívoco e voltar atrás era uma opção realmente muito difícil, e isso estava acabando com as duas fazia tempo, principalmente com Amanda. Mas elas não podiam admitir, nem a elas mesmas, internamente. A viagem que elas pretendiam fazer era pra tentar renovar a relação, ou algo assim. Publicamente, elas desistiram por minha causa, mas com o tempo ficou evidente que elas apenas não precisavam daquilo. Ou melhor, não era daquilo que elas precisavam.
Estou numa situação delicada. É difícil ter algo a dizer sobre isso. Afinal, eu “jamais iria entender”, sendo eu homem hétero. Ou foi o que me disseram. E, aliás, eu também nunca entendi de discursos, muito menos de relacionamentos. Havia namorado 2 vezes na vida: uma na adolescência, outra quando estava na faculdade. Nas duas ocasiões, eu era imaturo e não aprendi muita coisa. Meus relacionamentos com amigos também eram estranhos. Tive poucos amigos na infância pelo fato da minha família ter se mudado muitas vezes. Nunca tive amigas. E então, eu tinha duas.
E por falar em amizade: o amigo com quem eu morava, meu único “melhor amigo” de toda a vida e com quem eu havia combinado uma parceria para o que eu imaginei que seria o negócio da minha vida, havia discutido comigo sobre o assunto mais imprestável e imbecil do universo: política. Eu achava que amigos superavam coisas pífias assim e podiam discordar sem maiores problemas. Mas ele preferiu o discurso do que a amizade. A discussão aconteceu três dias antes de entregarmos a chave de onde morávamos à imobiliária e nos dirigirmos à rodoviária. Nesse intervalo, mesmo com tanta coisa pela frente, tanta coisa em jogo, ele mal falou comigo. Exceto pela manhã, quando um sorriso sugeriu que iria dar tudo certo e as coisas se acertariam. Ou eu fantasiei isso. Não sei a partir de que momento ele teve aquele plano na rodoviária, mas ele preferiu me enganar e mentir. Preferiu me deixar pra trás sem família, sem dinheiro e sem casa pra voltar.
Bem, aquilo ficou pra trás. Eu estou bem. Estamos bem, nós três.
Com o tempo, fico apegado às duas, mas excessivamente à Amanda. Não há ciúmes, nem nada parecido. Mas há uma coisa: eu sei que gosto dela; gosto mesmo. Eu a amo. Tecnicamente, ela não pode gostar de mim por três motivos: 1) eu sou homem, uma espécie desprezível; 2) eu sou homem, ela é lésbica; 3) ela ama Beatriz, ou se esforça muito para achar isso.
As coisas continuam assim até eu descobrir, muito tempo depois, que elas não estão mais se relacionando como amantes. O detalhe foi que não aconteceu um evento específico, algo como “a gota d’água”, nem nada. Elas também não foram claras com elas mesmas sobre isso, talvez pra não admitir nada que não quisessem. Por isso, demorei pra descobrir (sozinho) e pra, depois, questionar primeiramente Amanda, que confirmou, fazendo parecer que estava bem com aquilo. Elas estavam bem, “como amigas”, diziam.
Dias depois, eu resolvo ser sincero sobre mim com Beatriz. O que eu quero, praticamente, é me aconselhar sobre o que eu sinto, ver se estaria tudo bem (ou até que ponto estaria). Conto sobre o que eu sinto, nessa primeira vez, de um jeito light, o que ela não faz parecer que não acredita muito. Por dentro, eu não sei, mas por fora ela se esforçou pra não levar a sério, não dar importância. Dias depois, em outra situação, ainda de um jeito light, eu conto de novo, apenas insistindo, e é a partir de então que ela começa a ficar mais áspera. Ela finge ser tolerante ao que eu digo, mas o tom denota outra coisa. Chegou outro dia e eu questiono o motivo da intolerância nítida, ao que ela nega, enquanto, por outro lado, argumenta que a Amanda não gosta de homens e eu precisava respeitar sua escolha. Eu questiono se realmente sou eu quem não a está respeitando. O discurso a faz argumentar algo horroroso: Amanda não pode se relacionar comigo. Ela o diz com argumentos incrivelmente odiosos e sem lógica. Aliás, razão não está em questão, o discurso está. Indelicadamente, ela pede que eu não insista naquilo. Eu não sou um animal descontrolado e, ainda que ressentido, engulo a seco e deixo pra lá por um tempo. As coisas mudam quando, numa conversa com Amanda, ela me diz que acha que fez as piores escolhas da vida e começa a me contar sobre a confusão de sentimentos a respeito de relacionamentos desde que conheceu eu conto. Eu tendo mostrar que ela não é um fantoche das ideologias, ao passo que ela parece insistir “na causa”, sem entender as contradições, as falácias e a óbvia prisão na qual se meteu (e da qual poderia facilmente sair a hora que quisesse). Ao final da conversa longa, ela fica abalada e, agora não tão confiante assim, se põe em cima do muro.
Eu volto a me aconselhar com a Beatriz, que notavelmente agora está com uma mescla de ciúmes e inveja ardentes. Mas ela bem sabe da hipocrisia em seu coração. É a coisa mais difícil de admitir, mas ela sabe. Ela sabe que é culpada por sair em busca dos piores homens e depois culpar todo o resto. Ela sabe que é culpada por se expor como um pedaço de carne e depois reclamar dos compradores a tratarem como tal. Ela sabe que é culpada por seduzir homens comprometidos e depois achar que eles a respeitariam. Sim, ela sabe. Ela sabe também que usou retórica barata pra convencer a Amanda e, no fim das contas, aliciá-la pra confirmar seu discurso e seu deleite pessoal. Ela não odeia a Amanda, mas ela sabe que foi assim. Ela sabe o que fez.
Em nossa conversa, eu exponho pela primeira vez com profundidade as coisas de dentro de mim. Mas é tudo pelo discurso, e ela sente que não tem saída a não ser me acusar de intolerante, nojento e o pior dos insultos: “homem!”. Com a Amanda fora de casa, eu recebo muito mais que uma sugestão de sair de lá, antes mesmo que ela volte. Eu fico alterado, não tenho sangue de barata. No impulso, me parece mesmo ser melhor ir embora dali e nunca mais voltar. Mais uma vez, parece que eu não fui bem em meus relacionamentos. Quando a Amanda volta, eu estou com quase tudo preparado, me sentindo um lixo, mesmo entendendo que a Beatriz forçou muito a barra. Na sequência, o diálogo se dá mais ou menos assim, se bem me lembro:
— Eu tenho uma notícia: vou deixar vocês. Você não precisa se preocupar, continuo amando você. Vocês. Mas vai ser melhor eu ir embora.
— O quê? Como assim? O que aconteceu?
— Eu discuti com ela e, pela minha experiência, ela vai demorar muito pra se recuperar. Depois a gente conversa melhor, pode ser?
Eu a deixo sem entender direito o que houve e sem maiores explicações. E eu não tenho pra onde ir. Meus pais moram em outro estado, não tenho irmãos, nem parentes que morem perto. Vou para um hotel. Lá, recebo a visita da Amanda depois de avisá-la sobre onde eu estava. E é também quando eu decido contar as coisas. Mas ela já sabia. Ou melhor, ela já sabia uma versão da Beatriz. Eu mal começo a contar e ela diz que eu devia ter dito a ela primeiro. Não entendo o tom da afirmação, mas abro o jogo: eu apenas quis muito, mas nunca pensei que ela fosse querer algo comigo. Eu sabia que, no fim das contas, amá-la não me dava nenhum direito. Se ela não me quisesse, estaria tudo bem. Mas, desconfiando que não fosse acontecer, e dada a situação, escolhi sair da casa sem rodeios.
Então, ela me conta em detalhes como foi a conversa entre elas, e não foi boa, ao menos não para a Beatriz. Na discussão, a Amanda se deu conta instantaneamente do autoritarismo daquela que já a tinha convencido de muita coisa; aquela de quem ela gostava tanto e sabia da reciprocidade. Ainda assim, as coisas ficaram claras o bastante. Amanda precisou argumentar contra si mesma, rasgando o coração, para só assim fazê-la entender. Questionou se elas deviam deixar que traumas e decisões imaturas guiassem toda a sua forma de pensar e as obrigassem a moldar até mesmo sua sexualidade e seus preconceitos contra metade da humanidade, que elas jamais conheceram, conheceriam e tão pouco poderiam ser capazes de decretar quaisquer juízos de valor. Diante dos fatos, Beatriz só fez tremer os lábios e chorar. Elas se abraçaram, ficaram em silêncio por longos minutos e ela me enviou a mensagem perguntando sobre onde eu estava. Ao que parece, Beatriz quer se desculpar comigo.
Mas cá estamos, eu e Amanda. Só agora percebo o quanto ela está calma e começo também a me acalmar. Ela parece não precisar de nada, mas eu… eu preciso dela. Eu preciso muito. O que eu faço?