Orfeu adorava a esposa Eurídice, uma ninfa da floresta. Recém-casado, a maior felicidade do filho de Apolo era tocar sua lira para a mulher. Sendo filho do deus da música, não era de estranhar, realmente, que tivesse a mesma perícia do pai. Por onde quer que Orfeu andasse, tocando o seu instrumento, tudo como que se paralisava, todos atentos, exclusivamente, ao som que saía de seus talentosos dedos.
— Toque outra canção para mim — pedia Eurídice todas as noites, antes de adormecer.
Era tanta a paixão que a jovem nutria pela música do marido que às vezes o próprio Orfeu deixava de lado a Ura, enciumado da própria música.
Um dia, Eurídice estava passeando com suas amigas ninfas quando, separando-se delas, entrou por uma vereda do bosque, onde gostava de caminhar. Sentado, com as costas apoiadas a um tronco, estava o pastor Aristeu, entregue aos seus pensamentos. Percebendo que alguém se aproximava, ergueu a cabeça.
— É ela, Eurídice! — disse Aristeu, que era apaixonado pela ninfa. Levantando-se com rapidez, foi na direção da moça, tentando parecer que
era um encontro casual. Eurídice, no entanto, recuou alguns passos ao vê-lo, pois sabia dos sentimentos que o pastor nutria por ela.
— Espere, volte aqui! — gritou Aristeu. — Não precisa se assustar.
Mas Eurídice não queria conversa. Por isso mesmo apertou mais o passo. Aristeu, revoltado, lançou-se em seu encalço.
— Não adianta fugir de mim, Eurídice, pois a amo e ninguém me impedirá de tê-la um dia só para mim!
— Ninguém, a não ser a minha vontade! — respondeu Eurídice.
Aristeu não escutou estas palavras, pois o amor só escuta o que lhe convém.
Aproveitando que a mulher parará para lhe dizer estas palavras, agarrou os ombros dela e tentou beijá-la à força.
— Adoro você, Eurídice, e você ainda há de ser minha, de qualquer jeito! -exclamou o pastor com a voz alterada e o rosto congesto.
A ninfa, percebendo que corria perigo, arremessou-se numa corrida para dentro da mata.
Enquanto fugia, sentia atrás de si os passos ligeiros de seu perseguidor. De repente, porém, Eurídice aproximou-se perigosamente de uma serpente, que, assustada, acabou picando o seu tornozelo. A ninfa caiu ao solo, com um grito de dor. Aristeu logo a alcançou, mas descobriu que nada mais podia fazer para salvar a sua amada. A jovem, aos poucos, perdia a consciência, ingressando no mundo das sombras.
Quando Orfeu recebeu a terrível notícia, sua alma cobriu-se de luto; sua lira, que até então somente tocara acordes alegres, agora silenciara; a partir daí, nas raras vezes em que tocava, tudo o que se ouvia eram sons tristes como um lamento. Não conseguindo mais viver sem sua adorada Eurídice, Orfeu tomou uma decisão extrema: foi até Júpiter, pedir que a trouxesse de volta da mansão dos mortos.
— Não posso fazer nada sem a concordância de Plutão — disse o pai dos deuses, convencido da dor do infeliz amante. — Tudo o que posso fazer é lhe ceder Mercúrio, que o conduzirá até o reino de meu irmão.
— Ótimo! — disse Orfeu. — Irei amanhã mesmo até o inferno para trazê-la de volta.
Abandonando tudo, Orfeu partiu na outra manhã, tendo apenas a companhia de Mercúrio. Pela primeira vez desde a morte da esposa, o poeta mostrava-se um pouco animado, chegando até a tirar alguns alegres acordes do seu instrumento. Porém, logo retornou à sua música plangente, ao chegar à gruta que, segundo a tradição, dava acesso à morada dos mortos.
— Aqui é a entrada dos infernos — disse Mercúrio, apontando a cratera com seu caduceu.
Sem medo algum, Orfeu começou a descer as profundezas do terrível abismo. Quanto mais descia, maior era a escuridão, tanto que foi obrigado a acender um facho. Depois de muito andar, avistou ao longe o brilho de algo tremeluzindo ao chão. Era o Estige, um dos rios infernais que levam ao reino de Plutão. Ali estava ancorada uma barca, tendo ao lado e em pé Caronte, com sua longa barba branca e seu olhar de poucos amigos.
— O que quer aqui? — disse o velho, apalpando o visitante. — Você não tem a aparência de um morto.
— Quero rever minha esposa, que desceu recentemente a este lugar — disse Orfeu, com decisão. — Aqui está Mercúrio, que traz a autorização do próprio Júpiter.
— E como pensa que vai passar para a outra margem? Com seu corpo pesado irá levar a pique a minha barca — disse Caronte, ameaçando o intruso com seu pesado remo.
— Vamos, toque logo esta droga! — ordenou Orfeu, sem se impressionar com as ameaças do velho senil. — Eu a manterei flutuando com os acordes de minha lira.
Intimidado com a vontade de Orfeu, Caronte desatou as amarras que prendiam a barca à terra e, maravilha para seus cansados olhos, ela flutuou com mais leveza do que nunca sobre as águas escuras do temível rio. Ao desembarcar. Orfeu acalmou com seus acordes a ira de Cérbero
— o monstruoso cão de três cabeças que guarda a entrada do inferno -, de modo que ele veio rastejando docilmente e lambeu com suas três línguas os pés do inesperado visitante. Depois Orfeu cruzou com vários condenados, que ao escutarem a melodia que saía das mãos do músico cessaram por alguns momentos a sua faina. As danaides deixaram cair ao chão os seus baldes de chumbo; Íxion deixou de girar a sua roda; e Sísifo abandonou o seu rochedo, que rolou colina abaixo.
Avançando sempre, Orfeu chegou, enfim, diante do trono de Plutão e de sua esposa, Prosérpina. Ambos pareciam interessadíssimos naquele vivo que chegava ao seu reino daquela maneira surpreendente.
— O que deseja aqui, visitante? — disse Plutão, brandindo seu tridente, como a demonstrar que, ainda que apreciasse a música, não aprovava aquela invasão de seus domínios.
— Vim implorar a vocês, soberanos do mundo subterrâneo, que peçam às Parcas para que reatem o fio partido da vida de minha esposa Eurídice, devolvendo-a à vida. Se não puderem ou não quiserem fazê-lo, no entanto, que cortem também o fio de minha vida, permitindo que eu aqui permaneça junto a ela.
Impressionado com a retórica e com a melodia de Orfeu, Plutão pediu a Mercúrio que trouxesse a esposa do visitante. Impossível descrever a reação que se apoderou de Orfeu quando viu novamente sua amada. Suas pernas tremiam: sua face convulsa era uma máscara de todos os rostos que a emoção pode pintar: e sua voz, um grito como jamais se ouviu igual.
— Eurídice, você está viva! — disse o esposo à mulher morta.
Ela lançou-se aos braços de Orfeu e durante alguns minutos o inferno inteiro silenciou, em respeito à dor dos dois amantes.
— Está bem, permito que você a leve de volta para a Terra — disse Plutão. com a concordância de Prosérpina. — Porém, há uma condição.
— Sim, diga qual é — disse o impaciente Orfeu.
— Você deverá fazer o restante do trajeto sempre à frente de sua esposa, jamais voltando-se para trás para olhar para ela. Se o fizer, imediatamente a perderá para sempre —
disse o deus infernal, de maneira categórica.
— Está bem, assim o farei — disse Orfeu, seguindo adiante, levando atrás de si Eurídice e Mercúrio.
Refizeram, assim, todo o trajeto da descida, só que em sentido contrário. Por várias vezes Orfeu teve ímpetos de voltar-se para trás para ver se sua esposa ainda o acompanhava, recebendo sempre sua admoestação:
— Não, Orfeu, não se vire!
O poeta já divisava nas alturas a cratera por onde ele e o deus mensageiro haviam entrado.
— Veja, Eurídice, estamos quase chegando! — disse Orfeu, voltando-se inadvertidamente para ela, a um passo da liberdade.
Nem bem seus olhos fixaram o rosto de sua amada, viu-a ser carregada de volta à escuridão pelos braços de Mercúrio.
— Espere, não, volte! — clamou Orfeu, devorando com os olhos a última imagem de Eurídice, que, com os olhos esgazeados, lhe estendia inutilmente as mãos.
Um grande terremoto sacudiu a caverna, fazendo com que um imenso rochedo bloqueasse para sempre o seu regresso ao reino das sombras. Orfeu, no último limite do desespero, arrancava os cabelos e dilacerava o rosto.
— Ai de mim! Por que fui olhar para trás no último minuto, faltando tão rouco! — dizia, inconsolado.
Mas nada mais havia a fazer. Eurídice estava longe dele, para sempre.
Orfeu, tal como o desgraçado Édipo, parecia destinado a ser perseguido incessantemente pelos deuses, até a sua morte. Deixando o lugar, percorreu várias feiras, arrancando de sua lira acordes lúgubres e ao mesmo tempo de uma beleza triste. Instalando-se numa floresta, na Trácia, Orfeu dedicou-se a tocar sua música, alheio a tudo o mais. As mulheres de lá, no entanto, não cessavam de persegui-lo, em especial um grupo de bacantes — sacerdotisas de Baco -, que tudo faziam para conquistar seu amor. Era em vão que prometiam ao poeta raros prazeres e lhe diziam palavras das mais doces. Ele mostrava-se sempre irredutível, até que um ia. tomadas por um furor maligno, as mulheres avançaram para ele, lançando-lhe pedras e dardos, sem, no entanto, atingi-lo, pois sua música o protegia.
— Abafem o som da música! — disse uma das bacantes, enlouquecida de ódio. Batendo seus tambores e estalando seus címbalos, elas finalmente conseguiram abafar a música de Orfeu, tornando-o vulnerável aos seus ataques. Uma chuva de pedras e dardos desceu, então, sobre o poeta, que tombou morto sob te implacável ataque. Não satisfeitas, as bacantes ainda pegaram o corpo do músico e o fizeram em pedaços, lançando sua cabeça e sua lira no rio que leva o —
esmo nome do poeta. Enquanto elas avançavam juntas em direção ao mar, iam passando pelas margens, encantando os pastores e as ninfas que as habitavam. A alma de Orfeu, no entanto, estava liberta, e tão logo se viu livre de suas perversas algozes, o poeta correu para os braços de sua Eurídice, que o aguardava no mesmo lugar onde ele a deixara.
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