O Nascimento de Baco

A princesa Sêmele, filha de Cadmo e Harmonia, estava deitada em seu leito. Estava só, mas ao seu lado ainda havia a marca profunda de um corpo — o corpo de um deus. De fato, Júpiter, o mais poderoso dos deuses, estivera até há pouco gozando dos prazeres que lhe proporcionara sua mortal amante.

— Béroe! — disse Sêmele, espreguiçando-se. Um raio cálido de sol que entrava pela janela de cortinas balouçantes acariciou seu ventre.

Alguns instantes de silêncio.

— Béroe, surda! — gritou Sêmele, apoiada aos cotovelos. Uma velha criada entrou apressada.

— Desculpe, minha ama…

— Béroe, esta noite foi verdadeiramente divina… — disse a jovem, sorrindo. “Então é tudo verdade!”, pensou Juno, pois era a esposa divina de Júpiter quem estava ali, metamorfoseada na velha criada de Sêmele.

— Vamos, ajude-me a me vestir — disse a jovem, erguendo-se.

— Desculpe, ama, me intrometer em tais assuntos — disse Juno disfarçada -, mas está certa, verdadeiramente, de que este homem que priva de seu leito todas as noites seja mesmo Júpiter, o deus supremo?

— Que diz, Béroe? — exclamou Sêmele, enrubescendo. — Um homem, ele? Sua tonta, nenhum mortal poderia amar uma mulher como este divino ser! Homem algum teria o seu toque misterioso, nem beijo algum teria a volúpia que ele, Júpiter, põe em seus divinos lábios…

Sim, Juno sabia perfeitamente de tudo isso. “Mas as carícias que ele lhe dá nunca serão mais do que o mero produto de um instante, estando sempre conspurcadas pelo susto e pelo medo de um terrível castigo”, pensava Juno, tentando vingar-se mentalmente da adversária.

Entretanto, desconfiava em seu íntimo, mesmo sem dar-se conta claramente disto, de que justamente ali poderia estar uma parcela do encanto e das delícias que ela, esposa legítima, jamais poderia desfrutar.

— Mas existem tantos homens, bem, digamos… — disse a falsa Béroe, fingindo escolher o termo certo -… tão hábeis, minha ama, que às vezes nós mulheres, frágeis e tolas que somos, deixamos nos enganar com humilhante facilidade…

— Não diga tolices, Béroe — disse Sêmele, entregando as vestes à velha e lhe dando as costas nuas. — Vamos, vista-me.

— Eu mesma, minha ama — prosseguiu Béroe, sem dar atenção às reprimendas -, quantas vezes fui ludibriada por homens que me pareceram deuses.

— Você?! — exclamou Sêmele, com um riso escarninho. — Você, Béroe, amada por um deus? Rá!

Sêmele, contorcendo-se de riso, impedia que a ama lhe cobrisse o corpo, e embora Juno soubesse que o deboche não fora feito a ela, ainda assim sentiu-se tomada pelo rancor — tal o poder que uma afronta, mesmo feita por engano, pode ter sobre a vaidade feminina. Enquanto escutava o riso, sem poder concluir sua tarefa, Juno percebeu nas costas da jovem as marcas inequívocas que o amor deixara em sua — sim, ela tinha de admitir — nudez perfeita. Juno tinha diante de si o mapa exato do país da traição: cada mancha arroxeada que Juno encontrava sobre aquela alva pele simbolizava uma província do prazer que Júpiter, auxiliado pelos desvelos da amante, havia descoberto e marcado em seguida com a mesma ganância do explorador que descobre um lugar paradisíaco e instala com fúria o seu marco a fim de deixar bem clara a sua posse exclusiva.

Sêmele fez menção de virar-se, mas a falsa Béroe não lhe permitiu; temia ver em que outros lugares infames poderiam estar depositadas aquelas manchas.

— Vamos, minha ama, deixe-me vesti-la — disse a criada, introduzindo a veste pela cabeça, como quem ensaca algo que deseja ver logo ocultado.

— Calma, Béroe, não se zangue… — disse a jovem, ainda tomada pelo acesso de hilaridade.

— Peça-lhe uma prova… — disse Béroe, com voz insinuante.

— O quê?

— Peça a ele uma prova, cabal e definitiva, de que ele é mesmo quem afirma ser.

— Mas que prova melhor poderia Júpiter me dar, além das que já tenho? -disse Sêmele, já vestida, abraçando-se com braços fingidamente alheios.

— Você sabe que os deuses usam uma forma humana apenas para se relacionar com os mortais — disse a Juno disfarçada. — Peça, então, que ele se mostre para você em todo o seu divino esplendor. Sêmele ficou alguns instantes pensativa, enquanto Béroe penteava, fio a fio, os seus longos cabelos. — Está bem, lhe pedirei a tal prova! — disse a bela filha de Cadmo.

— Apenas não esqueça de uma coisa — disse a velha, com um sorriso pérfido no escondido rosto -, deve fazer antes com que ele jure pelo Estige que não lhe negará qualquer pedido.

— Por que pelo Estige? — quis saber a jovem.

— Porquê este é um juramento fatal, ao qual os próprios deuses estão submetidos —

disse Juno, em tom solene. — Todo aquele que jura pelo rio infernal deve cumprir rigorosamente com a sua palavra, e nem mesmo Júpiter tem poder para transgredi-la.

Dito isto, a falsa Béroe afastou-se, e Sêmele ficou entregue aos seus próprios pensamentos. Quando a noite chegou, Júpiter reapareceu, como de costume. -Júpiter, meu amado! -disse a jovem, lançando-se a seus braços.— Desde que você começou a vir até mim, nos braços da noite, que eu nunca mais soube dizer, com certeza, quando é dia ou quando é noite.

— Por que estas palavras? — perguntou o deus supremo.

— Porque me parece que a noite quando chega, trazendo-te consigo, me traz um dia ainda mais claro e brilhante do que aquele que está partindo, apenas isto.

Os dois amantes abraçaram-se, e após um longo beijo, Sêmele, tornando-se séria, tomou o rosto de Júpiter em suas mãos.

— Meu querido, preciso que você me dê uma prova de seu amor.

— Prova de amor? — exclamou Júpiter, surpreso. — Para quê?

— Não importa; apenas prometa. Prometa pelo Estige que me dará tal prova. Só assim poderei ter sossego em minha alma e confiar plenamente em você.

Júpiter relutou durante um longo tempo. Jurar pelo Estige — o mais irrevogável dos juramentos -, e tudo apenas por um capricho feminino!

— Está bem, eu prometo — disse Júpiter, afinal.

— Vamos, pelo Estige… — disse Sêmele. — Diga, por favor…

Júpiter acedeu, contrariado, e fez o juramento. Sêmele, aliviada, foi até o fundo do quarto e parou, com um ar misterioso estampado no rosto.

— Quero agora uma prova definitiva de que você é mesmo o Júpiter que tanto amo —

disse ela, com o ar subitamente decidido.

— Do que está falando, criatura?

— Mostre-se agora, diante de mim, tal qual é! Júpiter ficou paralisado.

Não, aquilo não podia ser verdade. Ela devia estar brincando, ou então louca. Claro, só uma louca lhe pediria uma coisa destas. E ele sabia perfeitamente que não poderia fazer isto sem destruí-la.

Júpiter chegou a abrir a boca para lhe explicar o motivo, mas subitamente deu-se conta de que o destino da pobre moça já estava selado, pois ele havia feito o juramento fatal. Nada poderia fazer com que ele voltasse atrás — mesmo que ela mudasse de opinião ou tentasse anular sua vontade anterior.

“Finalmente verei o que mortal algum antes viu”, pensou a jovem, extasiada.

Júpiter, pesaroso, afastou-se um pouco, embora soubesse que era um ato inútil. Depois, concentrou-se e fez com que suas formas humanas fossem lentamente se apagando. Ao mesmo tempo uma luz, a princípio muito tênue, foi brotando do seu corpo, em dourados feixes, como se um segundo sol estivesse a nascer dentro dele.

Sêmele deu-se conta, subitamente, do que estava para acontecer, quando viu a vaporosa cortina atrás do deus desaparecer como num sopro, e uma nuvenzinha de fagulhas ser expulsa pela janela, impelida pelo vento.

— Não, Júpiter… Não! — gritou a pobre jovem, mas já era tarde demais. Uma bola de chamas irrompeu de dentro da forma humana do pai dos deuses e se expandiu por todo o quarto; relâmpagos espalhavam-se em todas as direções e um fragor intenso de chamas devorando tudo abatia-se sobre a jovem infeliz.

— O, maldita Béroe! — gritava Sêmele, ajoelhada, com a cabeça oculta e os ouvidos tapados. — Béroe e a minha maldita desconfiança foram a minha perdição!

Caiu no chão o corpo chamuscado e já sem vida de Sêmele. Dentro dela, porém, sem que ela tivesse sequer sabido, ainda pulsava outra vida.

Júpiter, dando-se conta disso, retirou do ventre da amante morta o produto divino dos seus amores: um bebê, muito jovem ainda, mas que respirava. Sim, ele respirava! Júpiter, antes que o palácio inteiro ardesse, retomou sua forma humana e, fazendo um talho na própria perna, introduziu o pequeno e delicado ser dentro de sua própria coxa.

“Não poderia encontrar um refúgio mais seguro”, pensou Júpiter, que já era capaz de se alegrar outra vez, com a descoberta daquele agradável consolo.

— Afinal, para alguém que já gestou um ser em sua própria cabeça, gestar outro em sua coxa não será coisa tão penosa… — disse o deus supremo, indo embora.

E foi assim que dali a algum tempo veio ao mundo Baco, o único deus cujos pais não eram ambos divinos, sendo filho de uma divindade com uma bela mas infeliz mortal.

BACO APRISIONADO

Assim que Baco, filho de Júpiter e de Sêmele, nasceu da coxa do próprio pai, este chamou Mercúrio e ordenou-lhe que levasse o garoto para ser criado pelas ninfas do Nisa, um lugar ameno e paradisíaco.

— Lá ele estará em perfeita segurança — disse Júpiter, com alegria.

O pequeno Baco foi entregue às ninfas e também a um estranho e divertido ser chamado Sileno, filho do deus Pã, que se tornou o pai adotivo do futuro deus das vinhas.

Durante seus primeiros anos Baco participou, junto com Sileno — sempre bêbado e a cair de cima de seu inseparável burrico -, de toda espécie de brincadeiras. Mas se o velho Sileno sabia ser brincalhão — e mesmo irresponsável, muitas vezes -, também sabia demonstrar que era dono de profundos conhecimentos, que sua aparência exótica e pouco respeitável podia fazer adivinhar.

— Deixe que falem — hic! — o que quiserem! — dizia Sileno, erguendo-se do são.

amparado pelo jovem pupilo. — Sileno sabe mais — hic! — que todos os sabichões da Terra…

Um dia o jovem Baco, vestido com seu manto púrpura, resolveu ir até a praia e lá adormeceu. Neste ínterim havia se aproximado da costa um grande navio — na verdade, um navio pirata — que andava à caça de nova presa.

Um grupo de marinheiros desceu à terra para buscar água, e quando estes pisaram nas areias claras deram de cara com o belo rapaz adormecido. Sua tez delicada, seus lábios rubros e o todo mais de sua aparência denunciavam que seria filho, ao menos, de um senhor poderoso do lugar. Quem sabe, até, do próprio rei.

— Vamos levá-lo conosco — disse o mais rude daqueles homens. — Poderemos pedir por ele um belo resgate.

Entretanto, o timoneiro, Acetes, tinha bom olho para as coisas divinas e percebeu logo que o garoto tinha algo de estranho.

— Deixemos o rapaz em seu lugar e vamos embora de uma vez — disse ele -, pois não pressagio nada de bom desta aventura.

— Virou Cassandra, agora? — disse Lícabas, o mais feroz e impiedoso dos piratas, com uma gargalhada assoprada que fez espirrar no rosto do pobre timoneiro uma chuva de seus perdigotos podres.

Acetes, conhecedor do estratagema do vilão, deixou para limpar depois o produto infecto da boca do asqueroso Lícabas, pois sabia perfeitamente -já vira, na verdade, por duas vezes acontecer o mesmo — que limpar o rosto diante dele era decretar a própria morte.

O garoto foi, então, embarcado, mas não à força, porque não opôs nenhuma resistência contra seus raptores. Estranhamente calmo, Baco só fazia observar docilmente aqueles homens sujos e cruéis.

“Verdadeiramente é um deus!”, pensava o bom Acetes, observando o rapaz.

— Dirija direito este troço! — disse uma voz ao seu lado. Era um dos piratas, que fora destacado pelo próprio Lícabas para vigiar o timoneiro.

Enquanto isto, Lícabas, que fora se tomando cada vez mais de antipatia pelo jovem deus, ordenou de repente a um de seus marujos:

— Amarrem esta mocinha! — disse, acentuando bem a última palavra. E antes que dessem cumprimento a sua nefanda ordem, aproximou bem a horrível carranca do rosto delicado de Baco.

— Frisou hoje cedo os lindos caracóis, menina loira? — disse o sórdido Lícabas, arreganhando a horrível dentadura, na qual se podiam perceber três dentes acavalados a disputarem o mesmo espaço.

Depois, tomando sua faca, enrolou um dos cachos loiros sobre o fio, como se fosse frisá-

lo, mas os fios partiram-se.

— Ora, menina, que pena! — disse. — Eu só ia fazer mais um cachinho… Um jato de perdigotos explodiu da boca de Lícabas, como a onda esbatida

que o vento impele, no inverno, sobre a costa pedregosa — mas, curiosamente, nenhuma das gotas apodrecidas foi alojar-se no rosto do jovem Baco.

— Cadê a corda, sardinhas regurgitadas pelo gato? — perguntou Lícabas, que mudava de espírito como o céu muda durante o verão abrasante.

Um boçal bem mandado surgiu carregando um rolo áspero de cordas.

— Deixa ver — disse Lícabas, esfregando um pedaço sobre a parte interna do braço. —

Não serve; traga outra!

Um rolo de fios de cobre espetado surgiu, nos braços do mesmo homem. Depois de testá-lo, o vil Lícabas aprovou.

-Amarrem-no, já!

Três homens fortes tomaram da corda e enrolaram Baco num abraço odioso. Mas, coisa estranha!, tão logo terminavam de fazer os nós, eles se desmanchavam como por encanto, e a corda caía aos pés de todos, sem provocar o menor arranhão na vítima.

— Imbecis! — disse Lícabas. — Tratem de fazer um nó decente ou mandarei dar um nó nas tripas de cada um de vocês!

Trinta nós foram feitos, e os mesmos trinta nós desfeitos, até que o sol caísse. De repente, porém, o navio parou em meio ao mar. Parou, simplesmente. Ninguém sabia explicar o motivo.

— O vento cessou de todo — explicou Acetes ao capitão, temendo uma reação brutal.

— Então dêem nos remos! — ordenou Lícabas, que sabia dividir o instante das punições com o instante da ação.

Os remos foram lançados com estrídulo à água, mas na mesma hora viram-se enrolados por um emaranhado de algas. Ao mesmo tempo começou a subir pelo mastro a folhagem espessa das vinhas, que se espalhou por todo o convés.

— Vejam, está chovendo! — disse um dos marinheiros, estendendo a mão.

Mas não era uma chuva normal, e sim uma chuva de vinho, que num instante cobriu todos de vermelho. Alguns, é verdade, gostaram da peça e abriam suas bocas para receber o produto da grande nuvem vermelha pairada acima do barco. Mas quando Lícabas, que não era homem para graças, enterrou uma espada dentro da garganta do primeiro, a brincadeira acabou-se ali.

Baco, misteriosamente, tinha agora ramos da vinha pendurados atrás das orelhas e portava em sua mão um grande tirso, com a ponta encimada por uma enorme pinha. Como quem rege um concerto de flautas, Baco agitava o seu cetro, com um sorriso alegre estampado no rosto — o sorriso da embriaguez divina!

O convés encheu-se, também, de animais silvícolas, enormes e assustadores. Enormes felinos espalhavam-se por todo o barco — tigres, linces e um jaguar que parecia divertir-se imensamente com aquilo tudo -, o que tomou os marinheiros de pavor.

— Verdadeiramente, este rapaz é um deus ou um demônio! — exclamou um deles, lançando-se borda afora. Muitos outros o seguiram, mas tão logo alcançavam a água, viam seus corpos mudarem abruptamente para algo inumano.

Lícabas, o último que relutava, ainda, em abandonar o barco, de repente começou a perder o equilíbrio.

— Mas o que é isso? Maldição! — disse, enquanto observava seus pés unindo-se por uma estranha membrana, quase transparente. Suas pernas também foram perdendo o pêlo espesso que as recobria e tornando-se lisas como a pele de um peixe.

Num último instante, antes de enlouquecer, o sórdido Lícabas chegou a achar graça daquela estranha metamorfose que se operava em si próprio.

— Estarei enlouquecendo, então? — exclamou, dando sua última gargalhada. Mas não foi de sua boca que saiu, desta vez, o infame jato, mas de uma

protuberância instalada bem no alto de sua cabeça. Lícabas, bem como todos os seus homens — à exceção do bom Acetes -, haviam se transformado em golfinhos, que tubarões ferozes perseguiam em alucinante disparada.

— Sou Baco, deus do vinho e da alegria! — disse o jovem, com os olhos refulgentes, ao timoneiro. — Leve-me de volta e instaure um templo, em meu nome, em todas as terras por onde andar, para que se possam celebrar neles os meus sagrados ritos.

Assim se fez, e desde então Baco obrou ainda muitos e mil outros prodígios.


QUER VIRAR ESCRITOR?
PARTICIPE DO UNIVERSO ANTHARESSAIBA COMO CLICANDO AQUI.

Comparando as mitologias grega e romana - Universo Anthares

Comparando as mitologias grega e romana - Universo Anthares

[…] O Nascimento de Baco […]

Os 12 deuses do Olimpo e seus poderes na mitologia grega - Universo Anthares

Os 12 deuses do Olimpo e seus poderes na mitologia grega - Universo Anthares

[…] O Nascimento de Baco […]

Comments are closed.