O Cavalo de Troia

Quase dez longos anos haviam se passado desde que principiara o cerco à cidade de Tróia. Já ia longe o dia funesto em que a bela Helena, rainha de Argos, fora raptada por Páris, filho do rei troiano, dando início àquela terrível guerra.

Muitos guerreiros famosos e de inexcedível valor já haviam perecido desde então, a começar por Aquiles, filho de Tétis e Peleu, o maior de todos os combatentes. O grego Ájax, terror dos inimigos, também já não existia mais. Do lado troiano, por sua vez, já haviam sucumbido Heitor, filho do rei Príamo — o maior dos heróis que Tróia sagrada conhecera -, além de Páris, irmão de Heitor e causador de toda a guerra.

Mas ainda restavam muitos homens de valor em ambos os lados, e a guerra dava sinais de que ainda poderia se estender por longos anos. Um desses homens era o solerte Ulisses, célebre por sua audácia e esperteza. O filho de Laertes, obtivera sucesso em sua mais recente façanha: raptara, junto com seu companheiro Diomedes, de dentro das próprias muralhas da cidade sitiada, o Paládio (uma estátua de Minerva que os oráculos diziam ser a garantia de que Tróia jamais seria vencida, enquanto permanecesse em seu pedestal). Agora ele imaginava um meio de pôr um fim definitivo àquela estafante disputa. O desfecho, entretanto, só poderia ser um: a invasão de Tróia e o saque completo da cidade.

— O ânimo de nossos homens chegou ao ponto mais baixo desde que aportamos nestas praias — disse Agamenon, chefe dos gregos, ao avistar Ulisses sentado e pensativo diante de uma fogueira. — Muitos já falam em negociar uma paz honrosa para ambos os lados, e outros, em simplesmente abandonar o cerco, voltando para seus países do modo como vieram.

— Fugir?! — exclamou Ulisses, incrédulo. — Como podem pensar nisto, depois de tantos sacrifícios e tantos companheiros mortos?

— E o pior é que logo, imagino, começarão as rebeliões… — disse Agamenon, apreensivo.

Ulisses voltou a observar a fogueira que ardia à sua frente: as labaredas, tocadas pelo vento forte que vinha do mar, erguiam muito alto as suas línguas de fogo. O relincho isolado de um dos cavalos presos no redil ali próximo acordou os demais, fazendo com que todo o acampamento ressoasse com aquele atordoante concerto eqüino; parecia que os próprios cavalos, insubmissos, ameaçavam rebelar-se para encetarem, também, a ansiada fuga.

De repente, porém, Ulisses pareceu hipnotizado; seus olhos fitavam as chamas elevadas, enquanto seus ouvidos, alertas, captavam os relinchos, misturando, aos poucos, as duas coisas numa só, até obter uma imagem nítida em sua mente.

— Fuga… labaredas… UM CAVALO!

Agamenon observou o amigo, assustado; estaria enlouquecendo, também, a exemplo do que acontecera com o infeliz Ajax, que acabara morto pelas próprias mãos, num terrível acesso de loucura?

— O que disseste? — falou Agamenon.

— Um cavalo, Agamenon, eis a solução! — bradou Ulisses, pondo-se imediatamente em pé. Seus olhos luziam, mas não eram produto do reflexo das labaredas. — Chame Epeus, o mais rápido possível.

Epeus era o mais hábil construtor que havia entre as hostes gregas, e apesar de já estar dormindo foi tirado às pressas de sua barraca por Agamenon e levado até o astuto Ulisses.

— Epeus, caberá a você a maior glória de toda esta guerra, caso obtenha sucesso em sua arte: derrubar as muralhas da invencível Tróia!

Ulisses disse essas palavras ao construtor com um tal brilho de euforia nos olhos que Epeus ficou sem saber o que dizer.

— Vamos, homem, temos muito trabalho pela frente! — disse o filho de Laertes, tomando-o pelo ombro. — Vai construir para nós, a partir deste momento, um cavalo, um imenso cavalo de madeira! — e Ulisses abriu os braços como se pretendesse abarcar com eles o próprio mundo.

Os três — Ulisses, Epeus e Agamenon — entraram num bosque que havia nas proximidades de Tróia. Ali, como obscuros conjurados, sentaram-se sobre alguns troncos caídos e puseram-se a confabular.

— Um cavalo oco — disse Ulisses, olhando fixamente nos olhos do construtor.

— Oco? — disse Epeus.

— Perfeitamente oco. Ali estarão guardados nossos homens, armados até os dentes, para quando o cavalo for introduzido dentro das muralhas da sagrada Tróia.

Agamenon escutava a conversa, entre incrédulo e fascinado, sem saber ainda se estava diante da idéia luminosa de um gênio ou do delírio absurdo de um demente. Durante a noite inteira estiveram discutindo o plano, até que o dia amanheceu e Agamenon convocou grande parte da tropa para que fossem derrubar toda árvore que encontrassem até haverem juntado a lenha necessária para a construção do gigantesco engenho.

Epeus trabalhou ininterruptamente durante vários dias, até que no começo de certa noite chamou os comandantes para virem apreciar a obra concluída, que permanecia escondida dentro da própria floresta. Agamenon, Ulisses e uma multidão de curiosos seguiram atrás: no interior de uma clareira avistaram, à luz dos archotes, a assombrosa figura do cavalo — imenso e terrível, do tamanho dos cedros e carvalhos que o cercavam.

— Um presente digno dos deuses! — murmurou Menelau, irmão de Agamenon.

Todos se aproximaram do cavalo, cuja madeira escura e polida resplandecia; mãos assustadas tocavam as pernas do eqüino, que descansavam na grande base sobre rodas, enquanto os olhares da maioria estavam voltados para os olhos do animal — sim, porque a arte perfeita de Epeus o levara ao requinte de dotar o cavalo de dois olhos gigantescos, onde ardiam dois faróis iluminados por uma miríade de velas, compondo um espetáculo ao mesmo tempo belo e aterrorizante.

— Epeus, você fez aquela parte tal qual lhe ordenei? — disse Ulisses, baixinho, ao construtor.

— Sim, não me esqueci deste detalhe, sagacíssimo filho de Laertes. Ulisses sorriu, deliciado: acabara de dar o último arremate, que impediria o fracasso daquele golpe tão engenhosamente arquitetado.

♦♦♦

Mais um dia amanhecia na Tróia sitiada. A grande cidade de Príamo jamais tivera um amanhecer calmo, desde que aquela guerra implacável começara. Mas naquela manhã algo diferente pairava no ar, a começar pelas fogueiras dos acampamentos dos sitiantes: estavam todas apagadas e não havia movimento algum entre os gregos do lado de fora das muralhas. Na verdade, não havia grego algum do lado de fora das muralhas.

Foi esta notícia, verdadeiramente espantosa, que uma das sentinelas foi correndo levar até o palácio onde o rei troiano ainda estava descansando.

— Grande Príamo, nutrido pelos deuses, algo de muito estranho acontece no acampamento dos aqueus soberbos!

— Vamos, diga logo o que há — disse o rei, enfadado. — Um homem que perdeu a quase totalidade de seus filhos dificilmente se espantará com mais alguma coisa…

— Majestade, os gregos… acho que partiram). — disse a sentinela, gaguejando.

— Vamos, levem este idiota daqui! — disse Príamo, fazendo um gesto com a mão. —

Sua boca fede a vinho, como a de quem passou a noite libando aos deuses.

— É verdade, venham todos ver! — insistiu a sentinela.

Aos poucos foram chegando outras vozes, confirmando a primeira. De fato, as barracas gregas haviam sido desmontadas durante a noite, e os côncavos navios já haviam deixado a barra, não sendo avistados sequer em alto-mar. Não havia sinal de grego algum, pelo menos que se pudesse avistar do alto das intransponíveis muralhas erguidas por Netuno.

— Que uma patrulha de soldados vasculhe tudo ao redor — disse Príamo, cauteloso. —

Deve se tratar, com certeza, de algum golpe tramado pelos gregos. Não se esqueçam de que aquele terrível Ulisses, mestre da perfídia, encontra-se entre eles.

Os soldados foram cumprir sua missão e retornaram já com o sol alto, dizendo que, de fato, não havia mais sinal algum dos gregos em terra firme, nem dos seus barcos em alto-mar.

Eles haviam partido.

Logo uma voz explodiu do alto das muralhas.

— O cerco terminou!

Outra voz gritou a mesma coisa, e uma terceira reproduziu o mesmo, e logo por toda a cidade só se dizia a mesma coisa: “O cerco terminou! O cerco terminou!”.

Mulheres e crianças saíram às ruas; homens carregando crateras cheias de vinho dançavam pelas vias públicas de Tróia e toda a cidade era uma alegria só. Tróia, enfim, era novamente uma cidade livre, livre para amar, para negociar, para odiar, para rir, para chorar —

enfim, para viver outra vez, como todas as cidades.

As imensas e pesadas portas Céias foram finalmente abertas, de par em par. Não havia mais perigo algum de invasão, e as pessoas podiam deixar os limites da cidade, sem qualquer receio. Todos acorreram para ver os restos do acampamento grego, rindo alegremente. Outros, mais judiciosos, saíam em busca dos cadáveres dos parentes e amigos mortos — ou do que pudesse restar deles -, pois ainda havia muitos corpos apodrecendo sob o sol inclemente.

Estava-se nisto, quando de repente surgiram alguns soldados troianos conduzindo, amarrado, um soldado grego.

Sim, era um “maldito soldado grego que não conseguira embarcar!”, diziam todos.

— Vamos apedrejá-lo! — gritavam muitos, ávidos pela desforra.

— Maldito aqueu, matador de pais e maridos troianos! — gritavam as mulheres, chorando e cuspindo-lhe na face.

— Diga logo qual o seu nome, cão grego! — disse um dos captores, pegando o infeliz pelos cabelos.

— Não, não me matem! — gritava o desgraçado.

— Vamos, diga o nome! — disse o mesmo homem.

O homem estava nu e trazia o corpo coberto de vergões, pois havia apanhado muito no caminho até chegar às portas da muralha.

— Meu nome é Sínon — disse ele — e também tenho ódio aos traidores aqueus!

— Está mentindo! — disse uma voz irada.

— Deixem-no falar — ordenou Príamo, que estava curioso para saber por que somente aquele grego restara no acampamento.

— Sou primo do maldito Ulisses — disse Sínon, com rancor nos olhos. -Este cão, desde que aqui cheguei, não tem feito outra coisa senão me perseguir!

— Por que os gregos partiram, afinal?

— Minerva voltou-se contra nós, desde que o solerte Ulisses roubou o Paládio sagrado do santuário de Tróia, matando covardemente os guardas da cidadela. Desde então os augúrios mostraram-se desfavoráveis para nós.

— E você, por que ainda está aqui?

— Fui escolhido para ser morto num sacrifício destinado a aplacar a ira de Minerva. Mas durante a noite consegui escapar, internando-me num bosque. Quando retornei os navios já haviam partido. Minerva ordenara que os gregos partissem imediatamente, sob pena de um tremendo castigo. Antes que partissem, entretanto, ordenou a deusa que lhe construíssem um imenso cavalo de madeira, a fim de que o Paládio seqüestrado fosse substituído por esse novo monumento sagrado.

— Cavalo? — perguntou Príamo.

— Sim, um magnífico monumento construído para aplacar a ira de Minerva. Neste momento um soldado troiano chegou correndo, justamente para avisar o rei da descoberta do monumento.

— Príamo, pai dos troianos, os gregos deixaram algo espantoso para nós! -disse o homem, esbaforido e com os olhos radiantes de quem viu algo inusitado.

Todos acorreram num tropel para o local onde o soldado apontara.

Ao chegarem numa parte mais afastada do antigo acampamento dos gregos, depararam-se com o majestoso cavalo erguido sobre as areias da praia -imenso e assustador, com o focinho proeminente apontado para a cidade de Tróia. Seus dois olhos ardiam com as lanternas acesas, e na parte frontal dele havia apenas esta inscrição:

“Oferta feita a minerva para que proteja os gregos em seu regresso”.

— O que faremos desta maravilha? — disse um dos soldados.

— Príamo, rei de Tróia, é quem decidirá — disse Timoetes, um dos comandantes. —

Vamos, soldados, postem-se atrás da estátua e levem-na até as portas da cidade.

Aos poucos o imenso cavalo de madeira, escuro e com os olhos flamejantes, avançou em direção às portas Céias. O povo, ajuntado em frente e ao alto das muralhas, despediu um grande grito de espanto e admiração tão logo o avistou.

— É um presente! — gritavam todos.

As crianças, escapando das mãos de suas mães, acorreram para ver aquele magnífico prodígio. Seus olhos arregalados — onde errava aquele misto de delícia e medo, que faz o fascínio da infância — brilhavam infinitamente mais do que os imensos e dardejantes olhos do cavalo.

♦♦♦

Dentro do cavalo gigantesco o calor era infernal. Constatava-se, assim, já nos primeiros instantes, a primeira falha daquela idéia aparentemente genial: mais de quinhentos soldados apinhados dentro dos desvãos apertados de um grande engenho de madeira não era coisa, afinal, muito praticável. Nem confortável. Ulisses e os demais homens — entre os quais, Acamas, filho de Teseu, Neoptolemo, filho de Aquiles, Macaonte, médico e filho de Esculápio, Menelau, esposo de Helena, além do próprio construtor Epeus — estavam desde as primeiras horas da manhã encerrados no ventre bojudo do animal.

Epeus havia acoplado dentro algumas tiras de couro de boi em forma de agarradeiras para que os homens pudessem manter-se firmes e suportar os solavancos que inevitavelmente sobreviriam ao primeiro movimento do gigantesco móvel. Agarrados a elas, eles escutavam as conversas nervosas dos soldados que os empurravam.

— Ulisses, isto é uma loucura! — disse um dos homens, francamente apavorado.

— Silêncio, idiota! — disse o filho de Laertes. — Quer que nos ouçam do lado de fora e nos matem antes mesmo de chegarmos às portas de Tróia?

Ulisses sabia que aquele era um caminho sem volta, uma desesperada tentativa de vencer a guerra, e que, uma vez fracassada, iria custar, de qualquer jeito, a sua própria cabeça. Por isto, em momento algum desgrudou a mão do punho de sua afiada espada, mantendo a orelha imprensada com toda a força contra a madeira para escutar melhor o que se passava lá fora, entre os soldados.

O gigantesco engenho avançava, aos trancos e barrancos. Os corpos suados dos gregos cheiravam mal, e aos poucos Epeus se dava conta de outra pequena falha: como fariam para liberar seus excrementos, uma vez encerrados ali dentro?

Graças ao ruído intenso das rodas e do vozerio dos soldados troianos, ninguém lá fora escutou o ruído das risadas esparsas. Mas na verdade a situação estava cada vez mais tensa e aflitiva no interior do cavalo, e Menelau, irmão de Agamenon, temia para muito breve um sério desentendimento entre os homens confinados. Pois havia dentro do cavalo um odor ainda pior do que o do suor e do excremento: o do medo avassalador.

Ulisses, espiando por uma pequena fresta do madeirame, viu as sólidas muralhas aproximarem-se. Uma multidão enorme ajuntava-se em frente às portas da cidade, com as pessoas, ainda muito pequenas, à distância, imiscuindo-se umas nas outras como num agitado formigueiro. Mas não havia somente inofensivos curiosos metidos na malta, os quais poderiam ser abatidos num piscar de olhos. Por toda parte estava, também, um número incalculável de soldados, todos de lanças enristadas e prontos a fazerem em pedaços o cavalo (e, conseqüentemente, os seus desgraçados ocupantes), tão logo tivessem a certeza de que estavam diante de uma terrível armadilha.

O cavalo de madeira parou diante das muralhas: apesar de imensas, no entanto, ele era quase duas vezes maior do que elas.

— Como faremos para colocá-lo para dentro? — perguntou alguém.

— Quem disse que este presente maldito alguma vez irá adentrar os muros da sagrada Tróia? — disse outra voz, colérica.

Uma discussão acesa se estabeleceu entre os comandantes troianos. Príamo, rei dos teucros, ordenou, então, que todos silenciassem.

— Sínon — disse ele, voltando-se para o grego renegado. — Os aqueus pretendiam deixá-lo lá onde ele estava?

— Sim, majestade! — disse Sínon, sem vacilar. — Por isto o engenhoso Epeus o fez deste tamanho: para que não pudesse jamais franquear as portas da sagrada Tróia. O oráculo que Calcas, nosso adivinho, fizera fora bem claro neste sentido: uma vez introduzido o cavalo sagrado dentro das muralhas da cidadela troiana, voltaria outra vez a cidade a estar protegida pela deusa, e força alguma poderia destruir a gloriosa cidade de Príamo.

— Ela tem, então, o poder de substituir o Paládio sagrado? — perguntou Príamo, tentado pela oferta.

— Sim, poderoso rei! — disse Sínon. — E como sou agora seu súdito extremado, só posso aconselhar que o leve para dentro destas sólidas muralhas, pois será sua mais sólida garantia contra os malditos gregos, caso resolvam retornar com mais homens e novos engenhos de guerra.

— Sim, alteza, não esqueça, eles têm agora em seu poder o nosso Paládio, estando assim o nosso templo inteiramente desprotegido — disse um dos comandantes. — Cedo ou tarde a deusa guerreira acabará por nos dar as costas, entregando-nos à fúria de nossos inimigos.

As vozes começavam a se tornar unânimes em favor de se fazer com que o cavalo adentrasse, de qualquer jeito, as intransponíveis muralhas.

“Enfim, os deuses começam a encaminhar as coisas a nosso favor!”, pensou Ulisses, dentro do cavalo. Um sorriso de alívio iluminava as barbas hirsutas de todos os guerreiros amontoados uns por sobre os outros.

Os troianos já começavam a imaginar um meio de fazer derrubar parte da muralha para poder introduzir dentro da cidadela o cavalo sagrado, quando um grito rouco e repentino fez silenciar todas as vozes:

— Loucos! Malditos! O que pretendem aqui? Entregar Tróia sagrada, de uma vez, à espada sangrenta de seus inimigos?

Quem dizia isto era Laocoonte, sacerdote supremo dos troianos. O velho adivinho surgira carregando uma grande lança numa das mãos e a brandia ameaçadoramente em direção ao robusto cavalo.

— Imaginam, então, loucos ingênuos, que os gregos partiram de verdade? É assim que, deveras, conhecem Ulisses, o solerte maquinador de enganos?

Laocoonte ergueu, então, a sua lança, e arremessou-a com todas as suas forças contra o flanco do cavalo. O comprido projétil encravou-se na madeira e ficou vibrando por um longo tempo, enquanto gritos horrorizados dos espectadores soavam a campo aberto.

— Sacerdote, não se precipite! — disse Príamo, temendo que aquela agressão à estátua pudesse atrair para os troianos a maldição eterna da filha de Júpiter.

Outra voz, no entanto, surgiu em Apolo às palavras do adivinho.

— Basta de ponderações! Não podemos nos arriscar de modo tão infantil. Queimemos de uma vez este presente nefando, pois ele será nossa ruína!

Enquanto isso, no interior do cavalo, a situação chegara ao limite crítico. Um dos soldados, que se ferira com o bronze afiado da lança arremessada por Laocoonte — pois sua ponta atravessara a madeira, indo enterrar-se em seu flanco — queria, por todos os meios, escapar dali e começar logo o ataque. Ulisses, arremessando o braço, tentava impedir, por sua vez, que o louco denunciasse com seus gritos a presença de todos. Neste instante, porém, lembrou-se do seu último artifício, aquele que segredara a Epeus construtor, antes que o cavalo estivesse concluído.

— De nada adiantará tentar sair, insano, pois somente Epeus, sábio engenheiro, conhece o segredo que abre as portas deste cavalo — disse Ulisses, com a boca colada à orelha do soldado ferido.

Um calafrio de pânico alastrou-se por entre os homens, tão logo essa informação percorreu as entranhas do cavalo. Alguém neste instante arremessara uma tocha ardente que explodira de um dos lados do cavalo. Uma chuva de faíscas entrou pelas frestas, aclarando os rostos apavorados dos homens no interior daquela soberba armadilha — armadilha que ameaçava, agora, voltar-se contra os seus próprios urdidores. O sangue do soldado grego empapava o piso onde se aglomeravam outros companheiros, esvaindo-se junto com a sua vida.

Lá fora as tochas já estavam sendo dispostas embaixo do cavalo. Um odor forte de alcatrão subia, metendo-se pelas frinchas e sufocando os homens de Ulisses.

De repente, porém, escutou-se uma voz que bradava:

— Laocoonte, corra, pois seus filhos estão sendo atacados por terríveis serpentes junto ao altar sagrado!

Todos silenciaram. Em nome dos deuses, o que significava aquilo?

O adivinho correu até onde estavam seus filhos e ficou estarrecido quando enxergou aquela que era a cena mais terrível que seus olhos de pai já haviam presenciado: os dois jovens, cada qual enrodilhado pelo corpo escamoso e gelado, contorciam-se em pavorosa agonia.

— Pai, socorro! — dizia um deles, enquanto o outro, já morto, era feito em pedaços pelos dentes afiados de uma das serpentes.

Laocoonte lançou-se aos monstros com as mãos limpas, mas também foi imediatamente envolvido pelos anéis do corpo das duas serpentes. Aos poucos sua resistência foi diminuindo, até que, totalmente enrodilhado pelas sanguinárias pítons, o sacerdote troiano exalou, também, o seu último suspiro.

A notícia causou estupor em todos. Príamo, rei troiano, ordenou que cessassem imediatamente de vilipendiar a estátua.

— Realmente, esta estátua é sagrada… — bradou o velho de longas barbas, ao examinar a lança que o desgraçado Laocoonte arremessara, toda tinta de sangue. — Que ninguém ouse tocá-

la novamente, sob pena de morte imediata.

No mesmo momento foram suspensas as fogueiras e os fachos recolhidos. Príamo ordenou que pusessem abaixo um pedaço da muralha, para que o portentoso cavalo pudesse franquear o interior da cidadela de Tróia.

Gritos de euforia e alívio percorreram as fileiras do povo ajuntado quando o imenso cavalo começou a ser empurrado. Porém, se o tivessem feito com reverente silêncio, poderiam ter escutado o retinir das armas no interior do estômago do fingido animal quando ele trombou por quatro vezes contra a muralha arrebentada, arrancando grandes pedaços de pedra que despencaram sobre as pessoas, provocando uma correria e uma balbúrdia ainda maiores.

Assim adentrou as muralhas troianas o soberbo presente grego. Dentro dele iam algumas centenas de soldados inimigos e um homem morto — a vítima sacrificial que sem querer o fingido Sínon apregoara como necessária.

Uma grande festa se estabeleceu por todos os recantos da cidade. Música e bebida estavam presentes dentro e fora das casas.

— Meu pai, sabe qual é a nova forma de cumprimento que o povo, nas ruas, inventou?

— disse Deífobo, um dos poucos filhos que ainda restara ao rei troiano.

— Não, meu filho, diga qual é… — respondeu o velho, com um sorriso ameno.

— “Tróia livre!” — respondeu Deífobo. — Assim bradam homens, mulheres, velhos e crianças, uns aos outros, quando cruzam pelas ruas. Não é lindo, meu pai?

Sim, fez o rei, dando um assentimento tímido com a cabeça.

Logo em seguida, entretanto, deu as costas ao filho, querendo significar com isto que preferia ficar a sós. Momentos de felicidade, sabia ele, velho e calejado que estava pela dor da perda, não significavam muita coisa quando não podiam ser compartilhados por aqueles que já haviam partido.

— Heitor, meu adorado filho… — disse o velho, com os olhos marejados de lágrimas. —

Que lástima que os deuses não permitissem que ainda pudesses estar entre nós para saborear o alegre dia da vitória.

Durante um longo tempo, Príamo, rei de Tróia, semelhante aos deuses, esteve sentado em seu trono, escutando o ruído da euforia, que parecia inesgotável. Pela sua cabeça passava a imagem recorrente dos filhos que perdera — oh, Júpiter inclemente, quantos que eram! -, a maioria abatidos pelo braço cruel do perverso Aquiles. E ao lembrar-se dele, inevitavelmente lhe veio à mente, outra vez, a figura de Heitor, o preferido do seu coração. (Sim, havia o irresponsável e estouvado Pária, mas mesmo este não lhe falava tanto à alma quanto o nobre Heitor. ) Como estar alegre, então, se iria levar para o resto da vida a imagem horrível do filho dileto sendo arrastado ao redor das muralhas de sua Tróia amada pelos pés, amarrado de maneira indigna ao carro do selvagem filho de Peleu, que, graças aos deuses, já havia também descido à mansão dos mortos?

♦♦♦

A noite avançara, e agora o silêncio em toda Tróia era quase completo.

Sínon, o falso amigo, depois de passar a noite inteira comemorando junto de uma bela troiana a sua nova condição de súdito de Príamo, esgueirou-se do leito, pronto para ganhar imediatamente a rua. Antes, porém, puxou seu afiado punhal e enterrou-o, de maneira vil e impiedosa, no pescoço da pobre moça. Depois, cosido com as paredes, percorreu as ruas, somente encontrando, vez por outra, algum bêbado caído pelas ruas, mergulhado numa poça de vinho misturado ao vômito. Sínon, enojado, dava uma cuspida em cada um desses que encontrava: estava chegando a hora de vingar-se dos insultos e bofetadas que recebera quando de sua fingida captura. Ao cruzar com o cavalo, que permanecia postado no centro da cidade, ele fez um sinal para o alto, indicando que a hora fatal se aproximava.

Sínon esgueirou-se para fora das muralhas quebradas, que, logicamente, ainda não haviam sido consertadas — pressa, agora, para quê? — e correu velozmente até alcançar o túmulo de Aquiles, que ficava no alto de um outeiro. Ali trepado, agitou, então, em direção à ilha próxima de Tenedos, um facho aceso. Lá estavam escondidas as tropas gregas, comandadas por Agamenon, o qual somente esperava o sinal prometido para embarcar seus homens e rumar a toda pressa para Tróia. O dia ainda tardaria a romper, e teriam os gregos tempo de pegar os desavisados troianos ainda deitados, anestesiados pelo vinho.

Enquanto isto, no palácio real de Tróia, Príamo, depois de ter ido abraçar sua esposa Hécuba, a nora Andrômaca, esposa de seu amado Heitor, e de ter dado mais uma amorosa olhadela em Astíanax, seu belo netinho, foi até a janela que dava para a praça central da sua amada cidade.

Sínon, o sagaz traidor, recém havia passado pela frente do cavalo e feito a sua senha, quando Príamo apontou na janela, que dava direto para o grande monumento. Mais uma vez as Parcas fatais conspiravam contra o rei troiano. Apoiando seus cansados cotovelos sobre o peitoril, Príamo esteve observando por algum tempo o cavalo. Negro, da cor da noite, ainda assim era terrível em sua beleza. Como era imenso! Sua cabeça perdia-se no alto, e apesar de o rei estar na torre do seu castelo, ainda assim estava quase face a face com o tremendo animal de madeira. Os fachos de seus olhos já haviam apagado, de há muito. Mas o clarão da lua, incidindo sobre eles, dava-lhes agora um outro aspecto — não mais ígneo e dourado, mas frio e metálico, que parecia torná-los ainda mais infinitamente ameaçadores.

♦♦♦

Príamo, vencido, afinal, pelo cansaço, foi dormir. Assim que Sínon retornou de sua missão, bateu três vezes com o cabo de sua espada nos pés do cavalo. O ruído ribombou até o estômago do animal.

— Companheiros, é agora! — disse Ulisses, erguendo-se e tomando suas armas.

Epeus, de posse das chaves que abriam o alçapão do ventre do animal, rumou para o local indicado. Num instante uma grande porta se abriu, e diversas cordas foram lançadas para baixo, como uma chuva de cascavéis que se espichavam até alcançar o solo. Agarrados nelas, iam descendo um a um os soldados, com os escudos presos aos ombros e as espadas desembainhadas.

Enquanto isto, lá fora, as tropas comandadas pelo audaz Agamenon já estavam a postos, em absoluto silêncio, aguardando apenas a hora do massacre começar. Pela primeira vez o punho da espada do chefe da expedição grega estava molhado, verdadeiramente encharcado de suor, e de tempos em tempos ele tinha de secá-lo com as vestes. Dez anos de longa espera para serem jogados num única cartada!, pensava ele. Dentro em breve estaria, se Júpiter poderoso lhes fosse favorável, de volta à sua casa, para os braços de sua amada Clitemnestra. Este pensamento animava-o e fazia com que seus dedos se agarrassem com mais força e denodo ao punho da espada.

Agamenon estava entregue a estas divagações, quando percebeu um ruído — um assobio trinado. Era o sinal combinado.

— Soldados, chegou a hora da vingança! — bradou ele.

Um rumor espantoso de armas e de gritos ergueu-se. Todos os homens arremessaram-se às portas escancaradas — que os homens de Ulisses já haviam aberto de par em par -, enquanto outra coluna gigantesca ia em direção à brecha da muralha, como uma onda negra e invencível que absolutamente nada poderia deter.

Os soldados gregos entraram na cidade sem a menor cerimônia. Pequenos grupos de cem homens enveredaram em todas as direções, portando tochas, lanças e achas de dois gumes, prontos para abaterem qualquer coisa que quisesse lhes fazer frente.

Os primeiros soldados troianos, pobres sentinelas abatidas pelo vinho, acordaram, ainda tontos, apenas para receberem em seus ventres o bronze afiado das espadas e das lanças inimigas.

Outros, mais felizes, nem tinham tempo de acordar, sendo abatidos ainda deitados com o peso das achas que desabavam sobre seus corpos.

As primeiras labaredas começaram a iluminar a noite, ofuscando a luz da lua. Pequenas casas e residências senhoris ardiam já incontrolavelmente. Homens deixavam as casas, sem saber direito o que estava ocorrendo, para serem abatidos impiedosamente, diante das esposas e dos filhos. A ordem que havia sido dada pelo cruel Agamenon era de que se poupassem somente as crianças do sexo feminino. Os meninos deveriam também ser mortos, tal como os pais.

Muito em breve toda a cidade despertara, finalmente, para a terrível verdade: Tróia estava perdida — irremediavelmente perdida!

Os grupos de guerreiros invasores seguiam pelas ruas espalhando a morte e a destruição.

As mulheres, únicas inocentes poupadas, ainda assim eram obrigadas a passar pelo flagelo da mais cruel violação. Muitas, vendo os esposos e filhos mortos, e depois de terem passado pela abjeta humilhação, não tinham outro pedido a fazer senão que as matassem também. Algumas lançavam-se de peito desnudo às pontas das espadas, lançando terríveis gritos de dor que varavam o céu.

A defesa troiana, pega de surpresa, não pode obrar muita coisa e se limitou a algumas poucas escaramuças, nas quais pereceram apenas alguns dos invasores. Dentre os defensores, havia um que não media esforços para levar adiante a vingança: era Enéias, filho de Anquises, um dos mais valorosos heróis das hostes de Príamo.

— Adiante, troianos, vendamos nossas vidas a um preço caro! — gritava ele, brandindo a sua acha de dois gumes sobre a cabeça dos invasores.

Enéias e os seus já haviam feito muitos mortos entre os gregos, quando se escutou um tremendo ruído partir do palácio de Príamo.

— Os assassinos vão em busca de nosso rei! — disse ele, arremessando-se com seus homens na direção do castelo.

Quando lá chegaram, assistiram a uma das cenas mais impressionantes que olhos humanos um dia já contemplaram. Postado à entrada do palácio, um grupo cerrado de defensores tentava barrar a entrada dos invasores com longas lanças e chuço afiados, enquanto os outros, empunhando também armas de igual tamanho, arremessavam-se em direção a porta. Dezenas de homens, já mortos, permaneciam espetados nos longos chuços, com as cabeças pendidas, enquanto os combatentes tentavam adiantar-se ou impedir o avanço uns dos outros.

Escadas são encostadas aos muros do castelo e gregos audazes as escalam sob uma chuva de dardos dos troianos. Vendo estes, no entanto, que são insuficientes as suas armas para deter os invasores, arrancam pedaços das vigas que dão sustentação ao teto e arremessam calhaus inteiros sobre os gregos.

O valoroso Enéias, vendo o insucesso da defesa, resolve subir por uma passagem secreta, junto com seus homens, até o topo da mais alta torre do castelo, de onde se avista toda a cidade e o mar adiante. Depois de escalar as centenas de degraus, chegam exaustos ao topo.

— Vamos, arranquemos todos os alicerces! — diz ele, agarrando uma alavanca e tirando pela base a sustentação do madeiramento.

Lá embaixo, os invasores chegam em grupos cada vez maiores, pois sabem que no palácio real estão guardadas as maiores riquezas, além de ser o local de refúgio do rei de Tróia — e não há um só que não deseje ser o primeiro a trazer espetada em sua lança a cabeça do inimigo há tanto tempo odiado.

O processo de desmonte, no entanto, prossegue ao alto, comandado por Enéias. De repente, um fragoroso estrondo anuncia aos defensores que a torre vai desabar. Pulando para outros aposentos, os troianos escapam no último instante ao desabamento; a torre, desmanchando-se em uma miríade de pedaços, vem abaixo, agora cimentada pelo vento, que se imiscui por entre as tremendas pedras que descem assobiando. Enéias ainda tem tempo de assistir aos blocos esmagarem centenas de invasores, espirrando o sangue dos mortos para o alto e em todas as direções.

Mas já dentro, Neoptolemo, filho de Aquiles, e tão feroz quanto o pai, já invadiu com alguns homens a soleira do palácio. Com sua machadinha faz saltar longe os gonzos de bronze da porta que impedia o acesso dos invasores aos aposentos do rei. Um grito de triunfo escapa das gargantas dos invasores, enquanto um uivo de agonia é arremessado pelas gargantas das mulheres que estão presas lá dentro.

Andrômaca, esposa de Heitor, abraçada a seu filho Astíanax, está postada ao lado de sua sogra Hécuba, esposa de Príamo. Todas estão abraçadas ao altar de Minerva, deusa protetora da cidade, buscando nela um último refúgio à sanha dos gregos. Príamo, entretanto, que envergara sua velha armadura, trazia à mão a sua velha espada.

— Meu marido, que loucura pretende cometer? — diz sua esposa Hécuba. — Que proteção você pensa poder oferecer a nós todos com este pobre e cansado braço que mal pode empunhar a espada? Vamos, largue isto e venha buscar refúgio junto aos deuses, únicos que ainda podem mover à piedade o coração desses negros assassinos que aí já vêm.

Neste preciso instante, Polites, um dos filhos restantes de Príamo, tendo escapado à fúria dos inimigos, surgiu de espada em punho por uma entrada lateral. Mas atrás dele vem o cruel filho de Aquiles, que o persegue com denodo incansável. E assim, antes que possa encontrar refúgio junto aos seus, é abatido pela lança de Neoptolemo, que, cego pela fúria, a enfia diversas vezes no peito do jovem agonizante. O sangue encharca o chão, às vistas do pai e da mãe do jovem morto. Príamo, revoltado, brada, então, ao filho de Aquiles:

— Basta, selvagem! Mesmo o seu pai, de sangue ruim e perverso, demonstrou piedade diante de um pai que lhe foi pedir a devolução do corpo do filho morto. Por que demonstrar maior vileza do que ele, homem perverso?

Príamo arremessou sua espada na direção do filho de Aquiles, mas ela ricocheteou no sólido escudo deste, indo cair ao chão com um ruído metálico.

Neoptolemo ruma, então, na direção do velho. Seus dentes rilham e seus olhos não deixam a menor dúvida de que a piedade não encontra abrigo em sua alma.

— Vamos, velho, cale a boca e deixe para dizer todos esses insultos em pessoa a meu nobre pai, que seu filho Pária, mosca de cão, abateu diante das muralhas de Tróia, com o auxílio de um deus.

Neoptolemo sacou, então, o seu punhal e depois de arrastar o velho sobre o sangue do próprio filho morto degolou-o diante da esposa e da nora. Mais tarde seu corpo decapitado foi ainda arrastado pelos pés, tal qual o do filho, pelas ruas de Tróia, sendo entregue em seguida à voracidade dos cães e das aves de rapina.

As duas mulheres cobriram os rostos com as mãos, agarradas mais que nunca ao altar.

Andrômaca, entretanto, sentiu, de repente, que lhe tiravam o filho dos braços.

— Não! Astíanax não! — gritava ela, agarrada aos joelhos do perverso Neoptolemo, que afastou-a com um repelão.

— Nenhum homem desta casa deve permanecer vivo — disse ele, intransigente. — O

filho de Heitor deve ter o mesmo destino do pai.

Em seguida desapareceu em direção a uma das torres e lá do alto fez despencar para a morte o filho do glorioso Heitor.

Hécuba e Andrômaca foram amarradas. A rainha de Tróia e sua nora eram agora escravas dos gregos.

♦♦♦

Enéias, a seu turno, estava entregue à defesa de sua família. Vênus, sua mãe, havia retirado o guerreiro daquele local onde a morte era soberana.

— Vamos, vá defender o seu velho pai, a sua esposa e o seu filho! — disse a deusa. — Lá estão os seus verdadeiros afetos.

Enéias chegou em casa a tempo de recolher todos e partir. Colocou o velho pai sobre as costas e pela outra mão conduziu seu pequenino Iulo em meios às labaredas dos incêndios.

— Vá, não volte os olhos para trás, pois aqui não há mais nada a ser feito! — disse a deusa, com ar severo. — O seu destino é reconstruir a sagrada Tróia em outras terras, muito distantes daqui. Vá e cumpra sempre a sua missão.

Nenhum dos gregos ousou tocar em nenhum dos três — embora a esposa de Enéias tivesse se extraviado no caminho, pois os deuses não quiseram que ela se salvasse. Havia, entretanto, ao redor daqueles três — um homem, um velho, e uma criança — um halo quase divino (pois que ele próprio era filho de uma deusa), que nenhum soldado grego ousou vilipendiar com sua espada. Enéias, um homem maduro, levando pela mão uma criança e carregando nas costas um alquebrado velho, era o retrato mais perfeito e acabado da existência de todos os mortais — pobres seres que também sabiam ser, de vez em quando, imensamente nobres.