— Júpiter, meu pai — disse Mercúrio, filho e ágil mensageiro do pai dos deuses. —
Caronte, o barqueiro dos infernos, vem subindo das profundezas do Tártaro para lhe falar.
— Caronte?! — exclamou Júpiter. — O que vem fazer aqui o condutor de almas?
— Boa coisa não há de ser, pois seu semblante está carregado e sua voz, desde longe, ecoa asperamente.
Dentro de instantes o velho barqueiro adentrava o palácio de Júpiter, brandindo com fúria o seu imenso remo.
— Onde está aquele infernal Apolo? — disse Caronte, espumando negro pela boca.
— O que houve, meu delicadíssimo ancião? — inquiriu Júpiter, cofiando a sua imensa barba branca.
— O que há é que Esculápio, filho deste folgazão, anda arrebatando despudoradamente os meus passageiros, que são também os súditos de seu irmão Plutão, isto é que é! — exclamou o barqueiro infernal, sacudindo o punho. -Já há alguns dias vinha notando que minha barca andava inativa, por falta de passageiros, o que já muito me intrigava. Mas agora, definitivamente, a coisa extrapolou de vez, pois desde ontem tenho sido obrigado não só a atravessar o Estige com a barca completamente vazia, como também a trazer de volta da outra margem as almas dos mortos que há muito eu já havia levado para a Morada das Sombras!
— Chame Apolo — disse Júpiter a Mercúrio, ao ver que o caso era grave. Dentro em pouco o luminoso deus adentrava os soberbos paços de Júpiter.
— Eis o tal…! — disse Caronte, com um muxoxo de desdém.
— Apolo, explique já o que seu filho Esculápio anda aprontando lá embaixo — disse Júpiter, pondo uma nota mais forte de autoridade em sua voz.
— É simples, meu pai — disse Apolo, que já estava ao par de tudo, graças à língua eficiente de Mercúrio, que parecia ter asas como suas famosas sandálias. — Esculápio vem adquirindo tamanha eficiência em sua arte curadora, pois deves saber que é o melhor médico de quantos o mundo possa haver um dia gerado, que, além de curar seus pacientes, conseguiu agora descobrir um modo de ressuscitar aqueles que a Morte lhe raptou em embates anteriores.
— Isto é formidável… — exclamou Mercúrio.
— E como faz para realizar tamanho prodígio? — inquiriu Júpiter, francamente alarmado.
— A receita somente ele possui — disse Apolo, com uma ponta de orgulho do filho -, mas sabe-se que se utiliza, dentre outras substâncias, de um filtro poderoso extraído do sangue de Medusa, uma das Górgonas malditas.
— Ah, o sabichão! — exclamou Caronte, tomado pela cólera. — Pretende então subverter a ordem do Universo, misturando mortos com vivos, até esvaziar as regiões subterrâneas de seus habitantes?
— E por que não? — disse Apolo, imaginando, por alguns instantes, um mundo sem velórios nem funerais.
Caronte, escutando isto, falou:
— Ouçam todos! Antes de subir para cá encontrei no caminho a Morte, debruçada miseravelmente sob a carcaça apodrecida de um antigo cipreste. Que figura lastimável apresentava, então! Escutando seu pranto, lhe disse: “Velha amiga, que choradeira toda é esta?”.
Ao erguer sua cabeça vi que um pranto copioso descia de suas duas órbitas vazias. Seu sorriso, que dizem eterno, me pareceu apenas o esgar grotesco das faces golpeadas pela desgraça!
“Caronte, amigo!”, disse-me ela, soluçando sua voz fina e esquálida. “Sinto que finalmente chega para mim, também, o último suspiro!” A Morte frente a frente consigo mesma! Eis ao que meus olhos incrédulos estavam assistindo! Ao lado dela, sob um monte de folhas mortas, vi negrejar o pedaço adunco de sua outrora tão operosa foice. Que lástima! Agora ali estava convertida num pedaço inútil de ferro, que um juntador de trastes atirou para a carroça com um sacrílego bocejo de tédio. Quando me voltei para minha pobre amiga, acreditei-a, então, finalmente acabada. Sua face, sempre sadiamente pálida, agora trazia a lividez espectral dos mortos. “Morte, amiga, vamos, reaja!” Massageei vigorosamente suas costelas proeminentes e consegui, graças aos deuses, chamá-la de volta à vida!’…
— Isto é a sério… ? — cochichou Mercúrio a Júpiter.
— Silêncio, leva-e-traz! — exclamou Caronte, que tinha os olhos cheios de água. — Tão logo a Morte readquiriu um pouco da sua saudável palidez, ergueu um pouco a cabeça e, depois de puxar para trás as suas trancinhas de víboras disse-me: “Caronte, só você pode me ajudar!
Acabe com aquele curador de doenças insolente ou perecerei! E você ficará para sempre sem o seu emprego e seus queridos óbulos!” Eis, Júpiter, o que o filho deste aqui prepara para nós todos!
Júpiter, o deus dos deuses, o juiz supremo, dispensou todos, menos Mercúrio, a quem disse:
— Vá até as forjas e peça aos ciclopes que fabriquem o melhor raio que conseguirem.
Mas atenção, que seja um raio o menos indolor possível…
Mercúrio, entrevendo tudo, lamentou a sorte que se preparava para o pobre Esculápio.
Ainda assim, foi cumprir sua missão. Ao fim do dia retornou com a peça maravilhosamente confeccionada.
— Ótimo! — exclamou Júpiter, admirando o desenho do raio.
Em seguida procurou um bom local para sua pontaria e, mirando no pobre filho de Apolo, aqui na Terra, desferiu sua mortífera seta. Esculápio caiu morto no mesmo instante e logo estava no Olimpo, diante de Júpiter:
— Desculpe, meu neto, mas não havia outro jeito — disse Júpiter, pondo a mão sobre o ombro de Esculápio. — Você estava prestes a provocar uma revolução na terra, no céu e nos infernos. Mas não se preocupe, a partir de agora será imortal como nós, e farei de você uma bela constelação no firmamento!
— Grande coisa… ! — disse Esculápio, já longe dos ouvidos do deus supremo. — O velho ainda acha que tem graça essa brincadeira de transformar alguém em constelação!
Enquanto isto, entre os mortais, o culto de Esculápio apenas começava a germinar.
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