Leon Tolstoi e Dostoievski. O que os dois maiores escritores russos de todos os tempos, contemporâneos, têm em comum? Ou melhor: onde está a real diferença entre eles? Vamos por partes.
Com Tolstoi aprendi a ter profundo respeito pelo Ideal de Deus inflexível, absoluto. Os ideais éticos que Tolstoi encontrou nos evangelhos atraíram-no como uma chama, embora o seu fracasso de viver segundo aqueles ideais finalmente o consumisse. Como os anabatistas, Tolstoi lutou para obedecer ao sermão do monte literalmente, e sua intensidade logo levou sua família a sentir-se como que vítima de sua busca pela santidade. Por exemplo, depois de ler a ordem de Jesus ao homem rico de desfazer-se de tudo, Tolstoi decidiu libertar os servos, doar seus direitos autorais e abrir mão do vasto patrimônio. Usava roupas de camponês, fazia os próprios calçados e começou a trabalhar nos campos. Sua esposa, Sonya, vendo que a segurança financeira da família ia vaporizar-se, protestou petulantemente até que ele fez algumas concessões.
Quando li os diários de Tolstoi, vi flashbacks de minhas próprias investidas para o perfeccionismo. Os diários registram muitas lutas entre Tolstoi e sua família, mas muito mais entre Tolstoi e ele mesmo. Na tentativa de alcançar a perfeição, ele continuava planejando novas listas de regras. Ele deixou de caçar, de fumar, de beber e de comer carne. Ele esboçou “Regras para desenvolvimento da vontade emocional. Regras para desenvolvimento de sentimentos elevados e eliminação dos sentimentos baixos”. Mas não conseguia nunca exercer a autodisciplina necessária para seguir as regras. Mais de uma vez, Tolstoi fez um voto público de castidade e pediu quartos separados. Não conseguia manter o voto por muito tempo, e, para grande vergonha sua, as dezesseis vezes que Sonya ficou grávida proclamaram ao mundo a sua incapacidade.
Às vezes Tolstoi conseguia realizar um grande bem. Por exemplo, depois de um longo hiato escreveu seu último romance, Ressurreição, com a idade de 71 anos, em apoio aos doukhobors — grupo anabatista perseguido pelo czar — doando todo o produto da venda do livro para financiar a emigração deles para o Canadá. E, conforme mencionei, a filosofia de Tolstoi de nãoviolência, saída diretamente do sermão do monte, teve um impacto que sobreviveu a ele por muito tempo, em descendentes ideológicos como Gandhi e Martin Luther King, Jr. Entretanto, para cada Gandhi suscitado por tais ideais elevados, há um crítico ou biógrafo repelido pelo fracasso miserável de Tolstoi em alcançar aqueles ideais. Francamente, não conseguiu praticar o que pregava. Sua esposa expressou muito bem (numa narrativa obviamente preconceituosa):
Há tão pouca cordialidade nele; sua bondade não vem do seu coração, mas simplesmente dos seus princípios. Suas biografias vão contar como ele ajudou os trabalhadores a carregar baldes de água, mas ninguém nunca saberá que ele nunca deu à esposa um descanso e nunca deu — em todos esses 32 anos — a seu filho um gole de água ou passou cinco minutos ao lado de sua cama para me dar uma oportunidade de descansar um pouco de todos os meus labores.
Os ardentes avanços de Tolstoi para a perfeição nunca resultaram em semelhança alguma de paz ou de serenidade. Até o momento de sua morte os diários e as cartas continuaram girando de volta ao deplorável tema do fracasso. Quando escrevia acerca de sua fé religiosa, ou tentava viver essa fé, o antagonismo entre a realidade e o ideal assediavam-no como um fantasma. Honesto demais para se enganar, ele não podia silenciar a consciência que o acusava porque sabia que sua consciência tinha razão. Leão Tolstoi era um homem profundamente infeliz. Fulminava a corrupta Igreja Ortodoxa Russa do seu tempo e recebeu dela a sua excomunhão. Seus esquemas para melhorar afundaram todos. Precisou esconder todas as cordas de sua propriedade e desfazer- se de todas as armas a fim de resistir à tentação do suicídio. No final, Tolstoi fugiu de sua fama, de sua família, de sua propriedade, de sua identidade; morreu como um vagabundo em uma estação ferroviária rural.
O que, então, aprendi da vida trágica de Leão Tolstoi? Li muitas de suas obras religiosas, e sem exceção recebi inspiração de sua penetrante visão do Ideal de Deus. Aprendi que, ao contrário dos que dizem que o evangelho resolve nossos problemas, de muitas maneiras o evangelho na verdade aumenta os nossos fardos — nas questões de justiça, nas questões de dinheiro, nas questões de raça. Tolstoi viu isso, e nunca rebaixou os ideais do evangelho. Um homem desejoso de libertar seus servos e desfazer-se de suas propriedades em simples obediência à ordem de Cristo não é fácil de rejeitar. Se tão-somente conseguisse viver segundo aqueles ideais — se tão-somente eu conseguisse vivê-los. A seus críticos Tolstoi respondeu: “Não julguem os santos ideais de Deus pela minha incapacidade de alcançá-los. Não julguem Cristo por aqueles de nós que imperfeitamente usam o seu nome”. Uma passagem especialmente, extraída de uma carta pessoal, mostra como Tolstoi respondeu a tais críticas no final da vida. Ela permanece como um resumo de sua peregrinação espiritual, e ao mesmo tempo é uma afirmação gritante da verdade na qual ele cria de todo o coração e um apelo plangente pela graça que ele nunca entendeu inteiramente.
Sinto-me triste lendo as obras religiosas de Tolstoi. A visão raio-X do coração humano que fez dele um grande romancista também fez dele um cristão torturado. Como um salmão na desova, ele lutou corrente acima a vida inteira, entrando em colapso no final de exaustão moral. Mas também me sinto grato a Tolstoi, pois sua busca incansável de fé autêntica provocou uma impressão indelével sobre mim.
Primeiro passei por seus romances durante um período quando eu estava sofrendo dos efeitos póstumos do “abuso infantil bíblico”. As igrejas nas quais cresci continham fraudes demais, ou pelo menos é o que eu via na arrogância dos jovens. Quando observei o imenso precipício entre os ideais do evangelho e as falhas dos seus seguidores, senti-me penosamente tentado a abandonar esses ideais como desesperadamente inatingíveis. Então descobri Tolstoi. Ele foi o primeiro autor que, para mim, realizou essa dificílima tarefa: tornou o Bem uma coisa tão crível e tão atraente quanto o Mal. Descobri em seus romances, fábulas e contos uma fonte vesuviana de poder moral. De maneira certa ele elevou minha visão.
A. N. Wilson, biógrafo de Tolstoi, observa que Tolstoi sofria de uma “incapacidade teológica fundamental de entender a encarnação. Sua religião era em última análise uma coisa de lei e não de graça, um esquema para melhorar o ser humano e não uma visão de Deus penetrando em um mundo caído”. Com clareza cristalina, Tolstoi podia ver a sua própria incapacidade à luz do Ideal de Deus. Mas não podia dar um passo mais de confiança na graça de Deus para vencer essa incapacidade.
Logo depois de ler Tolstoi, descobri seu conterrâneo Fiodor Dostoievski. Esses dois, os mais famosos e consumados de todos os escritores russos, viveram e trabalharam no mesmo período da história. Estranho é que nunca se conheceram, e talvez fosse bom — eram opostos em tudo. Enquanto Tolstoi escrevia romances animados e luminosos, Dostoievski escrevia histórias tenebrosas e taciturnas. Enquanto Tolstoi tratava de esquemas ascéticos para auto-aperfeiçoamento, Dostoievski periodicamente esbanjava sua saúde e fortuna no álcool e no jogo. Dostoievski fez muitas coisas erradas, mas uma ele fez direito: seus romances comunicavam a graça e o perdão com uma força tolstoiana.
Cedo na vida, Dostoievski passou por uma quase ressurreição. Foi preso por pertencer a um grupo considerado traidor pelo czar Nicolau I, que, para impressionar o gabinete dos jovens radicais sobre os erros deles, condenou-os à morte e realizou uma execução simulada. Os conspiradores foram vestidos com brancas mortalhas e levados a uma praça pública, onde um esquadrão de atiradores os aguardava. Com vendas nos olhos, vestidos em mortalhas brancas, as mãos amarradas atrás, foram exibidos a uma multidão parva e depois amarrados a postes. No instante derradeiro, quando a ordem “Apontar!” foi ouvida e as armas foram engatilhadas e apontadas para o alto, um cavaleiro chegou a galope com uma mensagem do czar arranjada de antemão: ele misericordiosamente convertia as sentenças deles para trabalhos forçados.
Dostoievski jamais se recuperou dessa experiência. Ele havia espiado nas mandíbulas da morte, e daquele momento em diante a vida se tornou preciosa para ele além da imaginação. “Agora minha vida vai mudar”, ele disse; “nascerei de novo de outra forma”. Quando tomou o trem dos condenados para a Sibéria, um homem devoto entregou-lhe um Novo Testamento, o único livro permitido na prisão. Crendo que Deus havia concedido a ele uma segunda oportunidade para atender ao seu chamado, Dostoievski meditou sobre o Novo Testamento durante o seu confinamento. Depois de dez anos saiu do exílio com inabaláveis convicções cristãs, conforme expresso em uma famosa passagem: “Se alguém me provasse que Cristo não estava na verdade […] então eu preferiria permanecer com Cristo a permanecer com a verdade”.
A prisão ofereceu a Dostoievski outra oportunidade também. Ela o forçou a conviver com ladrões, com homicidas e com camponeses beberrões. Sua vida partilhada com a vida dessa gente levou-o mais tarde a caracterizações inigualáveis em seus romances, tais como o assassino Raskolnikov em Crime e castigo. A visão liberal de Dostoievski da bondade inerente na humanidade entrou em choque com o mal granítico que ele encontrou em seus companheiros de cela. Mas com o passar do tempo ele também vislumbrou a imagem de Deus até mesmo no mais indigno prisioneiro. Veio a crer que apenas sendo amado, um ser humano se torna capaz de amar; “Nós o amamos porque ele [Deus] nos amou primeiro”, como diz o apóstolo João.
Encontrei a graça nos romances de Dostoievski. Crime e castigo é um retrato de um ser humano desprezível que comete um crime desprezível. Mas a graça entra na vida de Raskolnikov também, pela pessoa da prostituta Sônia, convertida, que o segue até a Sibéria e o conduz à redenção. Os irmãos Karamazov, talvez o maior romance já escrito, traça um contraste entre Ivan, o brilhante agnóstico, e seu irmão devoto, Alyosha. Ivan pode criticar os fracassos da humanidade e cada sistema político idealizado para lidar com esses fracassos, mas não tem soluções para oferecer. Alyosha não tem soluções para os problemas intelectuais que Ivan suscita, mas tem uma solução para a humanidade: amor. “Não sei a resposta para o problema do mal”, disse Alyosha, “mas conheço o amor”. Finalmente, no mágico romance O idiota, Dostoievski apresenta a figura de Cristo na forma de um príncipe epiléptico. Sossegadamente, misteriosamente, o príncipe Myshkin se movimenta pelos círculos da classe alta da Rússia, denunciando suas hipocrisias enquanto também ilumina suas vidas com bondade e verdade.
Juntos, esses dois russos tornaram-se para mim, num momento crucial de minha peregrinação cristã, meus orientadores espirituais. Ajudaram-me a chegar a um acordo com o paradoxo central da vida cristã. Com Tolstoi aprendi a necessidade de olhar para dentro, para o reino de Deus que está em mim. Vi como falhara miseravelmente nos elevados ideais do evangelho. Mas, com Dostoievski, aprendi a total extensão da graça. Não é apenas o reino de Deus que está em mim; o próprio Cristo habita ali. “Mas onde o pecado abundou, superabundou a graça”, como disse Paulo em Romanos.
Existe apenas um meio para qualquer um de nós resolver a tensão entre os elevados ideais do evangelho e a triste realidade de nós mesmos: aceitar aquilo que nunca conseguiremos medir, mas que não precisamos medir. Somos julgados pela justiça de Cristo que vive em nós, não a nossa justiça. Tolstoi estava certo pela metade: qualquer coisa que me faça sentir à vontade com o padrão moral de Deus, qualquer coisa que me faça pensar “Finalmente consegui” é mentira cruel. Mas Dostoievski tem a outra metade certa: qualquer coisa que me faça sentir mal com o amor perdoador de Deus também é uma mentira cruel. “Portanto, agora nenhuma condenação há para os que estão em Cristo Jesus: essa mensagem, Leão Tolstoi jamais captou plenamente.
Ideais absolutos e graça absoluta: depois de aprender a mensagem dual dos romancistas russos, voltei para Jesus e descobri que ela, essa mensagem, espalha os ensinamentos dele por todo o evangelho e especialmente no sermão do monte. Em sua resposta ao jovem e rico advogado, na parábola do bom samaritano, em seus comentários acerca do divórcio, do dinheiro ou de qualquer outro assunto moral, Jesus nunca rebaixou o ideal de Deus. “Sede vós, pois, perfeitos, como perfeito é o vosso Pai que esta nos céus”, ele disse. “Amarás o Senhor teu Deus de todo o teu coração, de toda a tua alma e de todo o teu entendimento.” Nem Tolstoi, nem Francisco de Assis, nem a madre Teresa, nem ninguém cumpriu completamente esses mandamentos. Mas esse mesmo Jesus ofereceu ternamente a graça absoluta. Jesus perdoou uma adúltera, um ladrão na cruz, um discípulo que negou que o conhecia. Ele preparou esse discípulo traidor, Pedro, para fundar a sua igreja e, para dar o próximo passo, voltou-se para um homem chamado Saulo, que se destacou perseguindo cristãos. A graça é absoluta, inflexível, abrangente. Ela se estende até mesmo às pessoas que pregaram Jesus na cruz: “Pai, perdoa-lhes, pois não sabem o que fazem” foram algumas das últimas palavras de Jesus na terra.
Durante anos me sentia tão indigno diante dos ideais absolutos do sermão do monte que não percebi neles nenhuma noção da graça. Entretanto, quando entendi a mensagem dual, voltei e descobri que a mensagem da graça perpassa todo o sermão. Começa com as bem-aventuranças — bem-aventurados os pobres de espírito, aqueles que choram, os mansos; bem aventurados são os desesperados — e vai até o pai-nosso: “Perdoa-nos as nossas dívidas […] livra-nos do mal”. Jesus começou esse grande sermão com palavras gentis para os necessitados e continuou com uma oração que foi modelo para todos os grupos que trabalham com desafios de doze passos. “Um dia de cada vez”, dizem os alcoólatras dos AA; O pão nosso de cada dia nos dá hoje”, dizem os cristãos. A graça é para os desesperados, os necessitados, os quebrantados, os que não conseguem realizar nada por si mesmos. A graça é para todos nós.
Durante anos pensei que o sermão do monte fosse um modelo para o comportamento humano que ninguém conseguiria seguir. Lendo-o de novo, descobri que Jesus pronunciou essas palavras não para nos sobrecarregar, mas para nos dizer como Deus é. O caráter de Deus é a matriz do sermão do monte. Por que deveríamos amar os nossos inimigos? Porque o Pai clemente faz o seu sol nascer sobre maus e bons. Por que ser perfeito? Porque Deus é perfeito. Por que acumular tesouros no céu? Porque o Pai vive lá e vai nos recompensar prodigamente. Por que viver sem medo e sem preocupações? Porque o mesmo Deus que veste os lírios e a vegetação do campo prometeu cuidar de nós. Por que orar? Se um pai terrestre dá pão e peixe ao filho, quanto mais o Pai no céu dará boas dádivas àqueles que lhe pedirem. Como poderia não ter percebido isso? Jesus não proclamou o sermão do monte para que nós, como Tolstoi, vincássemos a testa em desespero por não conseguirmos alcançar a perfeição. Ele o deu para nos transmitir o Ideal de Deus para o qual não devemos nunca parar de avançar, mas também para nos mostrar que nenhum de nós jamais atingirá esse Ideal. O sermão do monte nos força a reconhecer a grande distância entre Deus e nós, e qualquer tentativa de reduzir essa distância de alguma forma moderando suas exigências nos faz errar o alvo completamente.
A pior tragédia seria transformar o sermão do monte em outra forma de legalismo; ele deveria, antes, acabar com todo o legalismo. O legalismo, como os fariseus, vai sempre falhar, não porque seja severo demais, mas porque não é suficientemente severo. Trovejando, o sermão do monte prova indiscutivelmente que diante de Deus todos estão no mesmo nível: assassinos e “pavios-curtos”, adúlteros e concupiscentes, ladrões e cobiçosos. Todos estamos desesperados, e esse é de fato o único estado apropriado para um ser humano que deseja conhecer a Deus. Tendo-se afastado do Ideal absoluto, não temos onde aterrissar, a não ser na segurança da graça absoluta.
———- Retirado de: Philip Yancey – O Jesus que eu nunca conheci.
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