RESUMO
O romance é dividido em duas partes, “Antares” e “O incidente”. Na primeira, narra-se a história da cidade de Antares, no interior do Rio Grande do Sul, localidade dominada pela disputa entre duas famílias poderosas, os Vacariano e os Campolargo. Entre alianças e desavenças, as famílias vivem a história brasileira de uma perspectiva local.
A ação de “O incidente” tem início em 11 de dezembro de 1963, quando é decretada uma greve geral na cidade de Antares, iniciada pelos operários das indústrias da região. Os funcionários do cemitério declaram sua adesão ao movimento. Com isso, ficam sem enterro os corpos de sete mortos: D. Quitéria, matriarca dos Campolargo que morreu de enfarto; Dr. Cícero Branco, advogado envolvido em falcatruas com as duas famílias poderosas; o sapateiro Barcelona; o maestro Menandro, que se suicidou; a velha prostituta Erotildes, vítima de descaso médico; João Paz, agitador político morto depois de ter sido torturado pela polícia; e, por fim, o bêbado Pudim de Cachaça, assassinado pela mulher, cansada de suas bebedeiras e agressões.
Abandonados diante dos cemitérios, os mortos se levantam de seus caixões e se dirigem à cidade, provocando pânico na população. Separam-se, combinando reencontro para o meio-dia no coreto da praça central. Cada um deles visita seus parentes, descobrindo certas circunstâncias de suas mortes, bem como a reação de todos diante delas.
No horário marcado, encontram-se todos no coreto. A população se reúne em torno, curiosa para saber o desenrolar do caso. Os mortos iniciam então uma sucessão de acusações e denúncias envolvendo os moradores. Cícero Branco apresenta provas de enriquecimento ilícito dos poderosos locais, além de denunciar as circunstâncias da morte de João Paz. Barcelona revela os casos de adultério, que ele sabia pelas conversas ouvidas em sua sapataria. Erotildes aponta os nomes de alguns de seus amantes mais notórios. As acusações se desdobram em outras, feitas pelos próprios vivos, trazendo intranquilidade a muitos lares da cidade.
Os grevistas resolvem suspender seu movimento e atacam os defuntos no coreto. Os mortos resolvem então se recolher ao cemitério, onde são finalmente sepultados. Repórteres de diversas localidades visitam a cidade querendo saber detalhes do incidente. Alguns moradores confirmam o ocorrido, mas sem conseguir apresentar provas. As autoridades afirmam que tudo não passa de boato para promover a feira agropecuária local. Essa versão é a que acaba por predominar, relegando ao esquecimento o estranho incidente de Antares.
CONTEXTO
Sobre o autor
Érico Veríssimo pertence à geração cuja estreia literária se deu nos anos 1930. Trata-se do período do neorealismo brasileiro, que colocou em circulação uma literatura regionalista de temática social acentuada. Em sua obra, Érico faz a crônica de costumes do Rio Grande do Sul. De um lado, focaliza os dramas das classes médias urbanas, de outro, conta a história do estado a partir de sagas familiares.
Importância do livro
Incidente em Antares é, antes de tudo, um livro corajoso. Aborda a temática política de maneira aberta e direta em plena ditadura militar dos anos 1960-1970, de franca atuação da censura, à qual o autor não se submeteu. Além disso, trata-se de um exemplo da vertente do realismo fantástico, de grande repercussão na literatura latino-americana, embora mais rara no Brasil.
Período histórico
A ficção do segundo tempo modernista reagiu ao que considerou excessivo nas inovações formais introduzidas pela geração heroica de 1922. Nesse contexto, ganha destaque o teor de denúncia da narrativa. Incidente em Antares, embora tenha sido publicado no início dos anos 1970, carrega ainda as marcas do segundo tempo, ao qual o autor pertenceu originalmente.
ANÁLISE
A sátira menipéia é um gênero literário surgido ainda na Roma antiga, com autores como Luciano de Samósata (125-181). Alguns dos traços fundamentais da sátira menipéia são: o humor, a presença de mortos que se dirigem aos vivos, o tom filosofante e mudanças constantes de tom narrativo.
Levando em conta essa caracterização, Incidente em Antares pode ser inserido nessa tradição, já que há o registro cômico no comportamento e na conduta dos habitantes de Antares. Os mortos fazem a crítica dos costumes locais, certos momentos de fala sentenciosa, de efeito moralizante, e, por fim, ocorre a mudança de tom narrativo, do romance de fundo histórico para o realismo fantástico, entre a primeira e a segunda parte do livro, respectivamente.
A primeira parte do livro reconstitui a evolução social gaúcha nos moldes do romance histórico tradicional, os fatos verídicos servem de fundo para a ação ficcional. No caso do Incidente, a referência fundamental é a história brasileira e sua repercussão local. Ganha destaque a figura de Tibério Vacariano, que possui uma singular capacidade de antecipação das ações que envolvem personagens da política nacional.
A segunda parte envereda pelo realismo fantástico ao relatar o estranho episódio dos mortos que, indignados com sua condição de insepultos, vingam-se apontando os males da sociedade local. O choque entre o realismo da primeira parte e a fantasia da segunda é apenas aparente. Na verdade, há um estreito laço entre eles, a sugerir que a história possui lances tão inacreditáveis quanto o relato mais absurdo.
As personagens são mortos-vivos da sociedade brasileira, simbolizando tanto os vivos que se fingem de mortos diante dos fatos inacreditáveis que presenciam, como o golpe civil-militar de 1964, quanto os mortos e enterrados que, no entanto, continuam a agir e a mandar, como a ação dos líderes locais, de um autoritarismo que se mostra incompatível com as conquistas da liberdade humana.
As personagens são caracterizadas como tipos sociais para melhor realçar seu efeito simbólico. Assim, temos, por exemplo, a manifestação da valentia gaúcha nas falas do coronel Vacariano: “Palavra de honra, se esse moço [Carlos Lacerda, jornalista carioca, opositor de Vargas] tivesse dito na imprensa sobre a minha pessoa a metade do que disse sobre o Getúlio, eu tomava um avião, ia ao Rio e metia-lhe um balaço em cada olho, palavra”. Não falta sequer a nota cômica no perfil de algumas personagens, como o da telefonista Shirley Terezinha: “trinta e cinco anos, solteirona, católica praticante, fã de Frank Sinatra, de novelas de rádio, e leitora de Grande Hotel”.
Como espaço da ação, a cidade de Antares tem efeito metonímico: trata-se da América Latina, com seu sistema político colonizado e corrupto; do Brasil, que acrescenta a esse sistema o dado ditatorial; e, por fim, do Rio Grande do Sul, que contribui com personagens e ideologia fundamentados em uma tradição local coronelista, patriarcalista e machista.
O que os mortos denunciam na praça pública – espaço democrático por excelência – é resultado daquele sistema político colonizado e corrupto, que permite os outros desvios, fazendo com que a metonímia retorne ao seu ponto de partida e complete a alegoria.