Galateia – Mitologia Grega

Ácis e Galateia

Entre as muitas filhas da Oceânide Dóris e do deus do mar Nereu, havia uma Nereida chamada GALATEIA. Com o nome dado por causa de sua pele branca feito leite, ela era adorada por POLIFEMO, um Ciclope. Polifemo não era um dos Ciclopes originais – era o filho selvagem e feio de Poseidon com a Oceânide TEOSA.

A Galateia propriamente dita amava ÁCIS, um pastorzinho siciliano charmoso e de uma beleza simples. Embora fosse filho da ninfa do rio SÍMETIS e do deus Pan, Ácis era um simples mortal. Certo dia, o ciumento Polifemo surpreendeu Ácis e Galateia nos braços um do outro e jogou uma rocha em cima do rapaz, esmagando-o e matando-o. Galateia, aflita, conseguiu reunir suficiente força e recursos, ou talvez tivesse amigos o bastante no Olimpo, para transformar Ácis num espírito imortal do rio, com o qual ela se uniu para a eternidade. A história deles é o tema da ópera pastoral de Händel Ácis e Galateia.

Galateia II

Já que estamos falando de garotas chamadas Galateia, há outras duas que merecem ser conhecidas.

PANDIÃO, de Festo, em Creta, teve um filho, LAMPRO, que se casou com uma Galateia. Lampro não tinha interesse algum em ser pai de meninas e disse à mulher que, se ela desse à luz uma filha, teria de matá-la, e eles continuariam tentando até ela ter o menino que ele tanto queria. Primeiro, tiveram uma linda menina. Galateia não teve coragem de matá-la – e que mãe teria? – e contou ao marido que o bebê tinha nascido um menino saudável, e que queria dar a ele o nome de LEUCIPO (cavalo branco).

Lampro acreditou na palavra da mulher sem se dar ao trabalho de fazer inspeções anatômicas e, portanto, criado como homem, Leucipo cresceu como um menino ótimo, inteligente, universalmente amado e aceito. Entretanto, os anos da adolescência se aproximavam e Galateia ficou cada vez mais temerosa de que as exuberantes curvas naturais de sua amada filha e a evidente falta de penugens no queixo acabariam por revelar o engano para Lampro, que não era do tipo de homem que passava por cima de uma fraude dessa.

Por medida de segurança, Galateia pegou Leucipo e buscou refúgio em um templo de Leto (a Titânide mãe de Apolo e Ártemis), onde rezou para que sua filha pudesse mudar de sexo. Leto respondeu à prece e, naquele instante, Leucipo foi transformada num jovem rapaz. Apareceram pelos onde deveriam em um homem, as protuberâncias corretas surgiram e as incorretas desapareceram. Lampro não ficou sabendo e todos viveram felizes para sempre.

Durante gerações, depois disso, a cidade de Festo celebrou um festival chamado Ekdusia. Nesse ritual, todos os meninos viviam entre mulheres e meninas, usavam roupas femininas e tinham de jurar um voto de cidadania antes de poderem se graduar de sua agela, ou corpo de jovem, e adquirir vestimentas e status de homem feito.

Leucipo II, Dafne e Apolo

Curiosamente, outro mito fala da mudança de sexo de um LEUCIPO diferente – esse, filho de ENOMAU –, que se apaixonou por uma náiade, DAFNE, por quem Apolo também era apaixonado, mas que até então não tinha cortejado ou seduzido.

Para ficar perto de Dafne, esse Leucipo se disfarçou de menina e aderiu à companhia das ninfas. O ciumento Apolo percebeu e fez com que os juncos sussurrassem para Dafne que ela e suas companheiras deviam se banhar no rio. Elas, então, tiraram a roupa e mergulharam nuas. Quando Leucipo, por motivos óbvios, se recusou a tirar suas roupas de donzela, as meninas, de brincadeira, as arrancaram e o deixaram nu, descobrindo seu constrangedor e inequívoco segredo, e raivosamente o mataram a golpes de lança.

A essa altura, o sangue lascivo do próprio Apolo tinha se manifestado. Ele se materializou e começou uma perseguição a Dafne. A garota, aterrorizada, pulou no rio e correu o mais rápido que podia, mas ele rapidamente a alcançou. Tinha quase chegado até ela, quando ela lançou uma prece à mãe dela, Gaia, e ao pai, o deus-rio LADÃO. Exatamente quando Apolo a alcançou e a tocou, sentiu a pele dela mudar sob seus dedos. Uma casca fina se formou sobre os seios, o cabelo começou a resvalar em brilhantes folhas amarelas e verdes, os membros se espiralaram em galhos e os pés lentamente lançaram raízes e se enterraram na acolhedora terra da mãe Gaia. Apolo, estupefato, descobriu que estava abraçando não uma náiade, mas um loureiro.

Pelo menos essa vez na vida o deus foi castigado. O loureiro se tornou sagrado para ele e sua guirlanda daí para a frente coroou a fronte, como eu já disse, dos vencedores dos Jogos Pítios em Delfos. Até hoje o vencedor de um grande prêmio é chamado de laureado.

Galateia III e também Pigmalião

A ilha de Chipre, por ser a terra de desembarque de Afrodite, nascida das espumas, há muito adorava a deusa do amor e da beleza com um fervor especial, fazendo com que os cipriotas ganhassem fama de licenciosidade libertina e libidinosa vida airada. O povo do continente achava que Chipre era um lugar degenerado, uma Ilha do Amor Livre.

Na cidade portuária de Amato, no sul, um grupo de mulheres conhecidas como PROPOÉTIDES, ou “filhas de Propoétus”, ficaram tão indignadas com a quantidade de licença sexual que permeava a cidade que chegaram à temeridade de sugerir que Afrodite não devia mais ser a padroeira da ilha. Como castigo para tal impertinência blasfema, a colérica Afrodite fez com que essas irmãs beatas tivessem impulsos de insaciável luxúria carnal, ao mesmo tempo despindo-as de qualquer noção de recato ou vergonha. Depois dessa praga, as mulheres perderam a capacidade de enrubescer e começaram, ansiosa e indiscriminadamente, a se prostituir pela ilha.

Um jovem escultor sensível e muitíssimo atraente, chamado PIGMALIÃO, viu o comportamento flagrante e desavergonhado das Propoétides e ficou tão enojado que resolveu abrir mão perpetuamente de qualquer amor e sexo.

— Mulheres! — Murmurou para si mesmo ao começar a trabalhar, certa manhã, numa encomenda para reproduzir em mármore o rosto e o corpo de um general de Amantho. — Você não vai me ver perdendo tempo com mulheres. Ah, não. A arte basta. A arte é tudo. O amor não é nada. A arte é tudo. A arte é… Bem, puxa, que estranho…

Pigmalião deu um passo atrás e franziu a testa, surpreso. Seu general estava tomando a forma mais esquisita. Ele podia jurar que o homem tinha barba. Além do mais, o velho guerreiro podia estar meio gordinho, mas Pigmalião tinha certeza de que não apresentava um par de seios exuberantes. Nem eram seu pescoço e a garganta tão delgados, lisos e irresistivelmente…

Pigmalião foi para o pátio e mergulhou a cabeça numa fonte de água fria que havia lá. Ao voltar para o estúdio, refrescado, olhou outra vez para seu trabalho em progresso e só conseguiu sacudir a cabeça, intrigado. Quando teve permissão para ir à vila do general e estudar as feições do grande homem, tinha achado que a estrutura do general era mais parecida com um javali do que qualquer coisa humana e, no entanto, lá estava ele emergindo do mármore como nada menos do que uma beleza refinada e milagrosa. E, ainda por cima, uma beleza distintamente feminina.

Pigmalião apanhou o cinzel, passou um olhar de artista sobre o trabalho e percebeu que, com alguns golpes impiedosos e bem aplicados, poderia facilmente voltar ao curso original e não desperdiçar o valioso bloco de mármore pelo qual pagara seus rendimentos de um mês.

Crack, crack, crack!

Melhor assim.

Tap, tap, tap!

Deve ter sido algum estranho ímpeto subconsciente.

Chip, chip, chip!

Ou talvez, má digestão.

Agora, vamos dar um passo atrás e ver…

Não!!!

Longe de recuperar o trabalho e trazer o olhar masculino e marcial do general de volta ao rosto de sua escultura, ele tinha, de algum modo, dado um jeito de apenas ampliar sua suave feminilidade, graça, carnalidade e – diabos! – sensualidade.

Ele agora estava febril. No íntimo, sabia que não estava mais resgatando o general. Estava na função de ir até o final na loucura que o tinha tomado.

É claro que a loucura era obra de Afrodite. A deusa não tinha gostado quando o jovem mais lindo e desejável de sua ilha resolvera virar as costas ao amor. Além do mais, um jovem cuja morada à beira-mar era, por acaso, exatamente onde Afrodite desembarcara depois de seu nascimento nas ondas e que, por isso, ela raciocinou, devia vibrar com uma intensidade amorosa especial. Amor e beleza, como a maior parte de nós descobre durante nossas vidas, são impiedosos, incansáveis e implacáveis.

Durante dias e noites, Pigmalião trabalhou num ritmo frenético de criatividade, de entusiasmo literal. Gerações de artistas em todas as mídias desde então devem ter reconhecido o êxtase de inspiração agoniado, sem fôlego, que o havia tomado. Não pensou em comida ou bebida – nenhum pensamento consciente veio-lhe à cabeça enquanto batia, martelava e murmurava.

Por fim, quando o rubor róseo de Eos e um lampejo de luz vinda do leste assinalaram o início de seu quinto dia consecutivo de trabalho, ele se afastou com o conhecimento milagroso que só os verdadeiros artistas entendem: de algum modo, sim, com certeza, por fim – estava terminado.

Mal ousou erguer os olhos. Todo o trabalho até ali tinha sido próximo, detalhado: os contornos da imagem completa existiam apenas em algum canto escuro e inacessível de sua mente. Pela primeira vez, ele a veria completa. Respirou fundo e olhou.

Deu um grito de choque e deixou cair o cinzel.

Dos dedinhos dos pés maravilhosamente formados às flores perfeitamente trabalhadas da guirlanda sobre os cabelos na cabeça, a escultura era, de longe, a melhor coisa que ele já fizera. Mais do que isso, era com certeza a obra de arte mais absolutamente linda que já tinha sido vista no mundo. Para um artista verdadeiro como Pigmalião, isso significava que era mais linda do que qualquer pessoa já vista na terra, porque ele sabia que a arte sempre excede o melhor que a natureza consegue fazer.

No entanto, viu que a imagem que representara em mármore a partir de sua imaginação arrebatada era até mais do que a coisa mais absolutamente linda no mundo. Ela era real. Para Pigmalião, era mais real do que o teto sobre sua cabeça e o chão sob seus pés.

O coração batia célere, as pupilas estavam dilatadas, o fôlego, curto, e o próprio âmago de seu ser se agitava do modo mais potente e perturbador. Era ao mesmo tempo dor e alegria. Era amor.

A expressão e a postura da garota – cujo nome ele sabia que tinha de ser Galateia, porque sua beleza de mármore era branca como o leite – foram apreendidas num momento de sublime hesitação, entre despertar e assombro. Ela parecia um pouco surpresa, como se prestes a arquejar. Por quê? Pela beleza do mundo? Pela formosura do jovem artista que a estava comendo com os olhos de forma tão voraz? Suas feições eram regulares e perfeitas, mas assim também eram as feições de várias garotas. Havia, ali, mais do que atração convencional. Uma formosura interior da alma cantava dentro dela. Suas linhas arrebatavam e faziam desmaiar, de tão suaves, flexíveis e sensuais. Seu seios pareciam se projetar suavemente, sua nudez ficava muito mais sedutora pelo modo como a mão tocava a garganta, num gesto de alarme docemente recatado.

Pigmalião deu a volta em torno dela para perceber a emocionante generosidade da curva de suas nádegas e do glorioso volume de suas coxas. Ousaria ele tocar essa carne? Estendeu a mão – delicadamente, para não machucar. Mas seus dedos encontraram o mármore frio. Mármore duro, inflexível. Aos olhos e até as profundezas, Galateia parecia ativa, calorosa e viva, mas, para as mãos acariciadoras de Pigmalião e para o terno rosto que ele apoiava no lado dela, era tão fria quanto a morte.

Ele se sentia ao mesmo tempo doente e sobrecarregado com a vida. Pulava para cima e para baixo. Gritava alto. Gemia. Ria. Cantava. Xingava. Exibia todos os comportamentos selvagens, perturbados, furiosos, eufóricos e desesperadores de um rapaz tempestuosa e assustadoramente apaixonado.

Por fim, ele se atirou sobre Galateia, a rodeou com os braços e com as pernas, se aconchegou a ela, beijando, apalpando e esfregando até que tudo dentro dele explodiu.

A loucura que lhe consumia a alma não diminuiu depois desse primeiro delírio. Ele agora se dedicava a Galateia com todo o ardor e a atenção terna de um verdadeiro amante. Chamava-a de nomes carinhosos. Foi até o mercado e comprou para ela vestidos, guirlandas e adereços. Adornou os pulsos dela com pulseiras e braceletes e a garganta com colares e pingentes de jaspe e de pérolas. Comprou um sofá, que enfeitou com sedas de púrpura tíria. Deitou-a sobre ele e cantou baladas para ela. Como a maior parte dos grandes artistas plásticos, era um músico incompetente e um poeta deplorável.

O amor dele era apaixonado e generoso mas – com exceção de sua imaginação febril em seus humores mais otimistas – inteiramente não correspondido. Era um namoro numa só direção, e no fundo de seu coração prestes a estourar, ele sabia disso.

Chegou o dia do festival de Afrodite. Pigmalião deu um beijo de despedida na linda, mas fria, Galateia e saiu de casa. Chipre inteira e mais milhares de visitantes do continente se reuniam em Amanto para essa festa anual. A grande praça na frente do templo estava repleta de peregrinos, que tinham ido rezar à deusa do amor e da beleza, pedindo sucesso nas questões do coração. Novilhos com guirlandas foram sacrificados, o ar estava espesso com o incenso, e cada coluna do templo estava envolvida com flores. As preces vinham em grande número, rápidas e sonoras.

— Envie-me uma mulher.

— Envie-me um marido.

— Melhore o meu desempenho.

— Faça-me ir mais devagar.

— Tire esses sentimentos de mim.

— Faça Menandro ficar caído por mim.

— Impeça que Xantipa continue me traindo.

Gritos de súplicas e gemidos enchiam o ar.

Pigmalião abriu caminho cegamente através da multidão de pedintes e requerentes. Chegou aos degraus do templo, subornou os guardas, persuadiu as sacerdotisas e, por fim, foi conduzido ao santuário interior, onde apenas os cidadãos mais ricos e mais influentes tinham permissão para orar diretamente na frente da grande estátua de Afrodite. Ele caiu de joelhos ante ela.

— Grande deusa do amor — sussurrou ele. — Dizem que você concede desejos a amantes ardentes nesse seu dia de festa. Conceda o desejo de um pobre artista que implora que possa…

Na grade do altar, homens e mulheres importantes estavam balbuciando suas imprecações a Afrodite e, embora as chances de Pigmalião ser ouvido fossem tênues, algum tipo de recato ou vergonha o impediu de proferir seu desejo real.

— … pobre artista que implora que possa lhe dar uma garota viva de verdade, exatamente igual àquela que ele fabricou de mármore. Conceda isso, venerada deusa, e terá ganho um escravo dedicado, cuja vida e arte serão devotadas para sempre ao serviço e ao louvor do amor.

Entretida, Afrodite compreendeu o que estava por trás da prece. Ela sabia perfeitamente o que Pigmalião realmente queria. As velas no altar à frente dele fulguraram e pularam no ar nove vezes.

Pigmalião voou para casa. Até o dia da sua morte, não teria como dizer qual caminho percorreu ou quanto tempo levou. Pode ter derrubado uma pessoa ou quarenta, enquanto disparava no meio do povo.

A estátua sem vida está lá, deitada em seu magnífico sofá, exatamente como ele a deixara. Nunca uma imagem esculpida pareceu menos acessível ou mais geladamente remota. Mesmo assim, com a fé e a fúria demente dos apaixonados, Pigmalião se ajoelha e beija a testa gelada. Beija uma vez, duas, vinte vezes. Depois, beija o pescoço, as faces e… espere! Será que o fogo de seus beijos aqueceu o mármore ou ele consegue sentir um aumento de calor sob seus lábios frementes? Consegue! Debaixo do toque de sua boca, a pedra dura está se suavizando em carne, em carne viva, cálida, deliciosa!

Repetidamente, ele beija, e como a cera dos favos amolece e derrete ao sol, do mesmo modo, o mármore frio de sua amada amacia com cada carícia delicada de boca e mão.

Ele está assombrado. Não pode acreditar. Põe um dedo nas veias do braço dela e sente a onda e a pulsação de sangue quente, humano! Fica de pé. Pode ser verdade? Poderá ser verdade? Ele aninha Galateia nos braços e sente sua estrutura se expandindo no momento em que ela inala os primeiros alentos de ar. É verdade! Ela vive!

— Afrodite, eu a bendigo! Afrodite, a maior de todos os deuses, eu agradeço e me comprometo a servi-la sempre!

Inclina-se para encontrar os lábios quentes, que, ansiosamente, retribuem seus beijos. Logo, o par está nos braços um do outro, rindo, chorando, suspirando e amando.

Nove luas mudam antes de a união desse feliz casal ser abençoada com o nascimento de uma criança, um menino que eles chamam de PAFOS, e cujo nome será dado à cidade na qual Pigmalião e Galateia morarão pelo resto de suas vidas, amorosos e contentes.

Não passam de uma ou duas as vezes em que os amantes mortais na mitologia grega conseguem um final feliz. Talvez seja essa esperança o que nos anima a acreditar que a nossa busca pela felicidade não será em vão.

Hero e Leandro

O mar Grego, ou “Helesponto”, é chamado hoje de Dardanelos, e ficou muito conhecido como palco de algumas das lutas mais furiosas em torno de Galípoli durante a Primeira Guerra Mundial. Sendo parte dos limites naturais que separam a Europa da Ásia, os estreitos que o limitam têm sido estrategicamente importantes para a guerra e para o comércio. Apesar do tamanho do espaço simbólico entre eles, na realidade, são estreitos o suficiente para serem atravessados por um bom nadador.

LEANDRO morava em Abidos, no lado asiático do Helesponto, mas estava apaixonado por uma sacerdotisa de Afrodite chamada HERO, que morava numa torre em Sesto, no lado europeu. Eles tinham se conhecido durante o festival anual de Afrodite. Muitos jovens tinham sido cativados pelo “prado de rosas em seus membros” e pela face tão pura quanto Selene, mas só o belo Leandro despertava nela uma paixão recíproca. No breve tempo em que estiveram juntos no festival, eles conceberam um plano que lhes permitiria se verem depois de estarem em casa, separados pelos estreitos. Todas as noites, Hero acendia uma lâmpada na janela de sua torre e Leandro, com os olhos fixos nesse ponto de luz na escuridão, enfrentava as correntes do Helesponto, subia e ficava com ela.

Como sacerdotisa, Hero tinha jurado celibato, mas Leandro a convenceu de que a consumação física do amor deles seria uma coisa santa, uma consagração aprovada por Afrodite. Na verdade, disse ele, seria certamente um insulto dedicar-se à deusa do amor e mesmo assim permanecer virgem. Seria como adorar Ares mas se recusar a lutar. Esse excelente argumento convenceu Hero, e todas as noites a lâmpada era acesa, o estreito, atravessado a nado, e o amor, feito. Eram o casal mais feliz do mundo.

Durante todo o verão, prevaleceu esse bem-aventurado estado de coisas, mas o verão logo se transformou em outono e, muito em breve, sopraram as tempestades equinociais. Uma noite, os três ventos, Bóreas, Zéfiro e Noto – os ventos do Norte, Oeste e Sul –, uivavam juntos, enviando tumulto e rajadas por toda parte, uma das quais apagou a lâmpada na janela de Hero. Sem ter como se orientar na travessia do Helesponto, e com os ventos agitando as ondas em enormes muralhas de água, Leandro se perdeu, se encrencou e se afogou.

Hero esperou seu amado a noite inteira. Na manhã seguinte, assim que Eos abriu os portões da alvorada e havia luz suficiente para enxergar, Hero olhou e viu o corpo destroçado de Leandro espalhado sobre as pedras abaixo de sua torre. Numa agonia de desespero, ela pulou da janela e se atirou sobre as mesmas pedras.

Depois de Leandro, muitos outros nadaram o Helesponto. Nenhum mais notável do que o poeta Byron, que o atravessou no dia 3 de maio de 1810 – na segunda tentativa. Em seu diário, ele orgulhosamente registrou o tempo de uma hora e dez minutos.

— Não tive nenhuma dificuldade — notou ele. — Eu me gabo dessa façanha muito mais do que poderia me gabar de qualquer outro tipo de glória, política, poética ou retórica.

Lorde Byron nadou na companhia de certo tenente William Ekenhead, da Marinha Real, que obteve seu próprio quinhão de imortalidade ao ser incluído nesta estrofe da mais épica obra-prima de Byron, Don Juan:

Ele pode, talvez, ter passado o Helesponto,

Como certa vez (um fato do qual nos orgulhamos)

Leandro, Mr. Ekenhead e eu fizemos.

Shakespeare parece que gostava especialmente da história dos antigos amantes, dando a um personagem de Muito barulho por nada o nome de Hero e colocando estas palavras maravilhosamente cínicas, antirromânticas, na boca de Rosalinda em Do jeito que você gosta:

Leandro teria vivido muitos anos felizes apesar de Hero ter se tornado freira, não fosse por uma quente noite de verão, porque, bom jovem, foi se lavar no Helesponto e, tendo sido tomado por câimbras, afogou-se; e os cronistas idiotas da época acharam que era Hero de Sesto. Mas é tudo mentira. Homens morrem de tempos em tempos, e os vermes os comeram, mas não por amor.