Árion, músico favorito de Periandro, rei de Corinto, andava muito aborrecido, perambulando tristemente pelos corredores do palácio.
— O que está havendo, querido Árion? — disse o rei, encontrando-o por acaso. — Por que razão anda tão macambúzio pelos cantos do castelo?
Foi só então que Periandro percebeu que seu músico favorito estava sem a sua amada harpa. Santo Júpiter! A coisa, então, era realmente séria!
— Caro rei e amigo, o que me leva a perambular pelas torres do castelo é a ansiedade e a impaciência — disse Árion, inconsolado. — Há poucos dias fiquei sabendo de uma importante competição musical que ocorrerá na distante Sicília. Poucas coisas desejei na vida tão ardentemente quanto disputar este prêmio…
O rei, entretanto, temendo que pudesse acontecer ao poeta algum desastre no caminho
— pois seria preciso fazer uma longa viagem marítima para se chegar à Sicília -, tentou dissuadi-lo do projeto.
— Não vá, meu amigo, lhe peço! — disse Periandro. — Desista dessa idéia, pois desde já ela me soa fúnebre como a morte. Por que ir buscar tão longe, e a tão alto risco, uma fama de que você já desfruta aqui mesmo?
— Um poeta verdadeiro, caro rei e amigo, é como uma ave de possantes asas — disse Árion, que, como bom poeta, não podia falar sem intercalar imagens no discurso. — Assim como ela precisa de outros ares para expandir a força de suas asas, assim um poeta precisa de outros ouvidos para afinar seu canto. O talento que os deuses me presentearam não deve ficar restrito aos ouvidos das mesmas pessoas, por mais caro que seja ao meu coração alegrar a sua alma com meus versos.
Árion, em pouco tempo, convenceu o rei a liberá-lo para a viagem. Em menos de um dia estava já a bordo, apesar dos protestos que Periandro ainda lhe fazia.
— Árion, pense bem! — gritava o rei, em terra. — Ainda há tempo de desistir! Mas o navio já singrava o alto-mar, e Árion não podia mais escutar suas sombrias advertências. Quando uma glória inédita e ambicionada acena adiante, dificilmente um coração jovem e aventureiro deixará de segui-la, só porque uma advertência costumeira lhe acena às costas para que covardemente retroceda.
O zéfiro de largo fôlego tornou bojudas, noite e dia, as velas possantes de sua nau, impelindo-as decididamente para a frente. E enquanto a quilha cortava as ondas, repartindo-as em duas com a meticulosa precisão de uma navalha, o poeta, abraçado à sua lira, entoava alegres notas.
Os maus presságios, apesar de tudo, não se confirmaram. Árion chegou à Sicília como saíra: alegre, bem-disposto e muito confiante em seu sucesso. E não deu outra: sagrou-se vitorioso na disputa e aplaudido e admirado por todos os habitantes daquele grande reino. Mas apesar de todos os convites para que lá permanecesse, Árion, ainda assim, preferiu retornar à corte de seu amigo Periandro, pois prezava, acima de tudo, a amizade e a lealdade.
Depois de uma semana de festejos, retornou no mesmo barco em que partira, rumo a Corinto. Alguns dias depois de partir, o vento ainda soprava suave e favorável, tal como na viagem de ida.
— Oh, querido Periandro! — disse o poeta, contemplando o espelho liso do mar. —
Quisera que você estivesse agora comigo para ver como foram vã os seus temores e as suas apreensões! Bem, mas não importa. Assim que eu desembarcar no doce solo de Corinto, você vai ver dissipadas todas as suas preocupações, tão certo como vejo agora se desfazerem no céu aquelas alvas tranças, feitas de leves e vaporosas nuvens!
Realmente, nenhuma nuvem cobria o firmamento e nenhum vento forte sacudia as águas plácidas do mar. Entretanto, se tudo ia em paz com o oceano, com o coração dos homens as coisas não se passavam da mesma maneira. Uma tempestade começara a se armar dentro do peito dos marinheiros que conduziam o poeta de volta à casa.
— O desgraçado do versejador traz consigo infinitas riquezas, só para si! -disse um dos revoltosos, cujo coração remordia-se de inveja.
— Trabalhamos uma vida inteira ao leme e na escova para termos de ver depois um poeta efeminado recolher num dia o produto que nem em mil anos de árduo trabalho lograríamos alcançar! — disse outro, mordendo os dedos.
— Sim, os deuses são injustos… — disse ainda outro, menos viril na inveja.
A intriga ferveu durante vários dias até desembocar no seu estuário natural: a sedição.
Reunidos no tombadilho, os cabecilhas da revolta avançaram para o poeta, de ferro em punho e dispostos a tudo. “Tudo” para eles era isto: matar o poeta e se apoderar de suas riquezas.
— Decidimos que deve morrer, cantorzinho! — disse o chefe da revolta, um marinheiro ruivo. — Escolha agora de duas uma: ou morre agora, com um golpe certeiro de meu punhal, ou se joga ao mar.
— Oh, marinheiro, você é ruivo e rude como o fogo que arde em seu peito! — disse o poeta, que nem nesse momento podia fugir ao lirismo.
Vendo, no entanto, que a hora não era para graças, reconsiderou o tom:
— Vamos, deixem-me viver e podem ficar com todo o ouro — disse, tentando apaziguar os ânimos. — É um preço que bem vale a minha vida.
— Nada feito! — rugiu o rude ruivo. — Cedo vai dar com a língua nos dentes e nossos pescoços encompridarão em menos de um mês. E mesmo que nada dissesse, como poderíamos ter a certeza de que, cedo ou tarde, não descobririam nosso ato infame?! Vamos, ilustre poeta, encomende a sua alma, porque o seu corpo já está morto.
— Concedam-me, ao menos, um último pedido — disse Árion. — Uma vez que meu fim já está decretado, que ao menos eu possa chegar a ele como sempre vivi, ou seja, como um verdadeiro poeta. Pegarei minha harpa e entoarei meu canto de morte. Assim, partirei sem queixas desta vida e chegarei cantando à casa dos mortos.
A maioria dos celerados não queria saber de protelações, pois pretendiam empalmar logo os baús cheios de ouro. O comandante, entretanto, curioso para conhecer o canto de tão célebre poeta, disse:
— Está bem, pode cantar, mas que seja um canto breve.
Árion vestiu sua túnica dourada para que Apolo o favorecesse; depois, tomou a sua lira com a mão esquerda e, com a direita, ergueu sua varinha de marfim, com a qual tirava os sons maviosos do seu instrumento. Em sua testa havia uma coroa dourada, enquanto que as dobras da túnica, recamadas de pedras preciosas, balançavam-se sob a brisa do mar. Assim paramentado, Árion deu início ao seu lamento fúnebre, que excedeu a qualquer coisa que já se tivesse executado. Mesmo a natureza ao redor — mar, nuvens aves e peixes — parecia hipnotizada com os divinos acordes da lira e com a voz triste que fluía da boca do poeta que se despedia da vida.
Árion finalmente encerrou seu canto e, avançando até a amurada, disse:
— Agora a vós, divinas nereidas, entrego meu corpo, esperando que minha lira venha a repousar junto à do divino Orfeu, no fundo do mar!
Árion arremessou-se ao mar. Sua túnica abriu-se de par em par, como se fossem duas asas, e ele finalmente desapareceu, engolido pelas ondas. Os marinheiros ficaram ainda alguns minutos a sondar o mar, mas nada veio à tona.
— Acabou-se! — disse o líder da revolta, acreditando-se livre para sempre do importuno poeta.
A música de Árion, porém, tinha atraído para as proximidades uma infinidade de golfinhos, habitantes das profundezas do mar, que saltavam ao redor do navio, encantados pelo som harmonioso que vinha daquele navio. Dentre esses havia um, em especial, que se destacou dos demais e se aproximou do poeta, oferecendo suas costas para carregá-lo. Assim, agarrado à barbatana, Árion chegou à terra firme. Estava de volta à sua amada Corinto, a salvo nas brancas areias da praia.
— Ah, golfinho, meu salvador, que Galatéia, ninfa dos mares, o receba em seu próprio carro, como justa recompensa pelo bem que você me fez! — disse o poeta assim que se separaram, dirigindo-se cada qual para seu elemento.
Árion ficou ainda algum tempo olhando o Golfinho aparecer e desaparecer por entre as ondas e depois sumir nas profundezas do oceano. Afastou-se, então, da praia e em breve se viu diante das torres de Corinto. Cantava enquanto se dirigia ao castelo, cheio de satisfação e felicidade, esquecido dos prejuízos e voltado apenas ao que lhe restava: o rei e amigo Periandro e sua amada lira. Entrou no palácio de Periandro, que o recebeu de braços abertos.
— Ah, meu amigo, quase não posso acreditar que você está aqui, são e salvo, diante dos meus olhos, desafiando meus tolos presságios — disse o rei, com os olhos afogados em lágrimas.
— Nem tão tolos assim, meu amigo — disse Árion, reconhecido. — Graças às Musas, no entanto, pude reverter o curso funesto destes presságios.
Árion empunhou a sua lira, então, e contou, sob a forma de uma bela canção, a narrativa inteira da sua aventura — desde a partida e o triunfo na competição até o feliz resgate das ondas revoltas pelo golfinho salvador.
— Malditos traidores e assassinos! — disse o rei, ao descobrir a perfídia dos marinheiros.
— Quando chegam do mar esses calhordas? Quero lhes dar uma bela recepção!
Assim que o navio atracou no cais, os homens do rei já estavam lá, aguardando para levar os marinheiros à presença de sua alteza. Quando se apresentaram diante de Periandro, que pedira para Árion esconder-se, ele perguntou:
— Onde está o meu amigo Árion? Por que não veio com vocês?
— O tratante deixou-se seduzir pelas promessas dos potentados da Sicília e resolveu ficar por lá com todo o tesouro que amealhou com sua voz melíflua -disse o cínico malfeitor.
O crápula mal havia terminado de dizer suas mentiras quando Árion surgiu vestido em sua dourada e resplandecente túnica. Os marinheiros caíram de joelhos aos seus pés como se um raio os houvesse fulminado.
— Justos céus, eis que o poeta morreu e os deuses o transformaram em um deles! —
disseram os malfeitores, arrependidos.
Periandro falou, então:
— Árion está vivo, patifes! Os deuses decidiram proteger a vida do mais extraordinário dos poetas! Quanto a vocês, escravos da cobiça, agradeçam a Árion por ainda estarem vivos; seu único castigo será viverem bem longe desta terra, sem poderem jamais desfrutar da beleza e do encanto que a poesia infunde às almas superiores.
Um castigo do qual eles fizeram muito pouco caso.
[…] Árion, rei de Corinto […]